23 anotações sobre 2023 [xiv]

Este é o décimo quarto de uma série de textos curtos, de uns poucos parágrafos e alguns links, sobre o que pode acontecer, ou se tornar digno de nota, nos próximos meses e poucos anos. Como há uma tradição de, no fim do ano, pensar sobre as possibilidades do ano que vem, o título fala de… 23 anotações sobre 2023. O primeiro texto [Guerra. Eterna?] está no link bit.ly/3B0mysO, o segundo [Inflação. Recessão? E Investimento?] em… bit.ly/3ir4PUR, o terceiro [Energia e Descarbonização] em… bit.ly/3gUdD5w, o quarto [Sociedade & Política], em bit.ly/3FrM50P, o quinto [Pessoas & Costumes] em… bit.ly/3H7CAFb, o sexto [Plataformas & Ecossistemas], em bit.ly/3VEcxK3, o sétimo [Efeitos de Rede, Escala e Sustentabilidade]. em bit.ly/3BjJUK1, o oitavo [O Mundo é Figital], em bit.ly/3FEmMJ2, o nono [Marketing é Estratégia, Figital], em bit.ly/3FfDJrI, o décimo, [5G & Internet das Coisas], em bit.ly/3W8yVLC,o décimo primeiro, [Indústria… 4.0?], em bit.ly/3BpZuUK, o décimo segundo, [Inteligência Artificial e Grandes Algoritmos], no link bit.ly/3FJMKdS e o décimo terceiro, [DADOS, Análises e DECISÕES], em https://bit.ly/3VXR678.

Blockchains… e Aplicações

Quando roubaram os dados de vacinação do Ministério da Saúde [em 10/12/2021, bit.ly/3Hyhos5], pouca gente se lembrou de uma notícia muito anterior [de 22/09/2020, bit.ly/3UVdug1], vinda do mesmo ministério, de que a “vacinação contra Coronavírus no Brasil será registrada em blockchain pelo Ministério da Saúde”, com o patriótico subtítulo… “Brasil será o primeiro país do mundo a registrar a vacinação de seus cidadãos contra o coronavírus usando a tecnologia blockchain”.

Na notícia de 2020, não deixava de ser preocupante, na imagem, uma “formiga atômica” [figura abaixo]. Segundo a lenda, havia [houve] mesmo uma blockchain para registro da vacinaçãomas ela –toda ela!- rodava em uma única [!] máquina virtual na nuvem, e com um backup na mesma nuvem. Quando os hackers invadiram a parada, não precisaram nem entender de blockchain pra acabar a festa. Foi só vaporizar o que encontraram, sem perguntar o que havia “dentro”. É a lenda. Mas eu num sei, só sei que foi assim, diria Chicó.

Mas… por que um[a] blockchain não poderia [e nunca deveria] rodar em uma só máquina? Antes de mais nada, é bom definir do que estamos falando, e um ponto de partida é a referência para block chain [foi assim que Satoshi Nakamoto escreveu no original] na Wikipedia [bit.ly/3USjpCr], que uso nos dois parágrafos abaixo.

Um blockchain é um livro-razão [um ledger, sim, da contabilidade] digital [algoritmos, software sobre hardware, computacionais], implementado por uma rede descentralizada [a comunicação entre agentes participantes da rede é direta, não depende de mediação de terceiros], distribuída [os processos de tomada de decisão não dependem de hierarquia, são realizados por todo conjunto de agentes participantes da rede], quase sempre pública [redes abertas, mas podem ser fechadas, internas a uma organização qualquer -como era a do Ministério da Saúde], que consiste em registros chamados blocos, que são usados para registrar transações em muitos agentes computacionais, de modo que qualquer bloco envolvido não possa ser alterado retroativamente, sem a alteração de todos os blocos subsequentes. Isso permite que os participantes [da rede] verifiquem e auditem transações de forma independente.

Um repositório [de] blockchain é gerenciado de forma autônoma usando uma rede entre pares [P2P] e um serviço distribuído de registro de tempo, autenticados pela colaboração em massa alimentada por interesses coletivos, com incerteza marginal dos participantes em relação à segurança de dados. Blockchains podem ser usados para remover a característica de reprodutibilidade infinita de ativos digitais e resolver o problema de gastos duplos.

Pela definição… o registro da vacinação não estava num blockchain, porque não havia, por baixo, uma rede descentralizada e distribuída de agentes independentes. Não é preciso nem considerar as outras partes e peças que faltavam na coisa. Simples assim. Mas pode ser que [e nunca saberemos, será?] que a ideia fosse uma blockchain de Estado, com a participação das secretarias estaduais de saúde e todos os órgãos públicos [em todos os níveis] que tratam dados pessoais do setor… o que tornaria a vida de atacantes muito mais difícil ou até impossível, na prática. Aí… não houve tempo e recursos para dar conta disso tudo, até porque o governo que está sendo evacuado nunca quis ter nem vacinas, quanto mais os registros delas e dos casos de Covid-19.

O problema central de uma contabilidade perfeita [de vacinas ou qualquer outra coisa] é atingir um consenso sobre se algo ou algum evento deve ser registrado ou não. Será -por exemplo- que um pagamento foi realmente feito, para ser gravado como tal? E deve-se chegar a um consenso, para sistemas sociais, na presença de falhas.

Blockchains descentralizam a manutenção de registros, dispensando a confiança em uma entidade centralizadora [como um “banco” central…], mas alguns criam consenso baseado em desperdício de recursos computacionais [bit.ly/3W8261u]. Um método ideal para criação de consenso seria [1] tolerante a falhas, [2] evitaria o desperdício de recursos computacionais e [3] seria capaz de implementar todas as transferências individualmente racionais de valor entre os agentes. O artigo do link acima, de onde saiu este parágrafo, prova um trilema dos blockchains: qualquer método de consenso, centralizado ou descentralizado, deve abrir mão de [1] tolerância a falhas, [2] eficiência de recursos ou [3] transferibilidade total. Complicado mas, ao que parece, definitivo. E não se quer renunciar a tolerância a falhas, pra começar; o registro de vacinação dançou por aí.

Quando excluímos moedas digitais “perfeitas” [ou quase, porque o futuro do “dinheiro” é digital: bit.ly/3FsPVFB], surpreendentes 14 anos depois da versão contemporânea da contabilidade digital perfeita, e mais de 30 depois de suas bases, na década de 1990, ainda não há um uso em larga escala pra algo que era o futuro da rede, que criaria a internet das transações. E qualquer tipo de transação, e não só financeira, como verificar sua identidade e usá-la como chave pra abrir uma porta.

Ah… você diria… mas só as criptomoedas já são suficientes. Já havia 285 milhões de “usuários” de criptomoedas em 12/2021, e se previa nada menos de 1 bilhão deles em 12/2022 [ou seja, agora: bit.ly/3uLP7qz]. Tá certo que isso foi antes do inverno [ou da era do gelo] das criptomoedas; muita gente se assustou, recentemente, a ponto de voltar a guardar dinheiro embaixo do colchão [ou quase: bit.ly/3FrbHtt]. Mas até que ponto ter uns reais em cripto numa bolsa é [pelo menos] “usar” cripto ou entender o que é uma criptomoeda? Na interpretação estrita da pergunta, a resposta é um inequívoco não é. Tratada amplamente, a resposta é sim, que o digam as pessoas que agora sabem o que é ter -e perder- cripomoedas numa FTX da vida [veja em cnn.it/3hq0q4n, bbc.in/3UZigce, bit.ly/3BzK54a].

O fato é que há 1.366 criptomoedas com um market cap acima de US$1M [em 13/12/2022, veja bit.ly/3Pndlkn], entre 10.000 ou muito mais que existem por aí. Logo… dá pra usar, e muito bem, blockchains pra criar moedas digitais. Pouco importa se muitas vezes elas são objeto de intensa especulação [bit.ly/3Hzk7Bz], manipulação [bit.ly/3UWm2mH], bugs [bit.ly/3CiAxKv] ou pura e simples fraude [exemplo? FTX: reut.rs/3YlhglD], independente do custo de uma transação em bitcoin estar em US$0,8181, equivalente a R$4,30 [compare com as taxas de PIX]… o certo é que blockchain e criptomoedas foram feitos um para o outro. Mas e as outras aplicações que iriam revolucionar a rede, economia e sociedade?

Todo o auê sobre blockchain em x, para qualquer x exceto moedas, não deu em quase nada até agora [bit.ly/3BxEX0y]. Provas de conceito, experimentos e pilotos em negociações, comércio, saúde, telecomunicações, infraestrutura em geral, seguros, cartórios…  quase sempre foram encerrados por falta de resultados significativos. Mesmo no setor financeiro [em coisas que não lidam com cripto…] os exercícios começam [no barulho noticiário] e terminam [por inanição, quase sem nenhuma notícia], com muito pouco aprendizado da comunidade.

E coisa de gente grande, como a plataforma baseada em blockchain para cadeia de suprimentos, TradeLens, foi para o espaço. No anúncio, há menos de um mês, a Maersk disse que… infelizmente, embora tenhamos desenvolvido com sucesso uma plataforma viável, a necessidade de colaboração total da indústria global não foi alcançada [bit.ly/3UWpYDZ].

A Bolsa da Austrália cancelou [ao custo de US$172 milhões, e 200 demissões] a troca de seu principal sistema de negociação por uma plataforma habilitada por um DLT [digital ledger technology, ou seja, um blockchain…] depois de concluir que havia desafios “significativos de tecnologia, governança e entrega” com a solução. Em bom português, lascou tudo e perdemos 6 anos [reut.rs/3VU9CwR].

Antes de cair o pano destas duas iniciativas em novembro, we.trade, plataforma de financiamento comercial [essencial para importação e exportação] baseada em blockchain [bit.ly/3uNpZPU], da IBM e grandes bancos, quebrou há uns meses: o business case dizia que… a natureza distribuída de blockchain facilitará verificações que permitiriam conceder mais financiamento comercial, acelerando as transações e abrindo novos mercados para as empresas. Isso num mercado onde até 60% dos pedidos de PMEs são rejeitados pelos bancos.

Pra terminar os exemplos, a B3i –iniciativa de blockchain para o mercado de seguros, liderada por 20+ [re]seguradoras- também se foi; segundo o press release de despedida [bit.ly/3Frs5tJ]… não havia suporte suficiente [leia demanda] para continuar com o empreendimento nesta fase.

Leia de novo a pequena história, nos parágrafos anteriores e nos links associados, destas iniciativas. Será que todos os casos não são falsos negativos? Em nenhum deles, analisando a informação que há na rede, pode-se tirar a conclusão de que blockchain não é a tecnologia apropriada para servir de base para a transformação dos mercados tratados em cada caso. Lembre-se que tecnologia [e seu uso] não necessariamente transforma nada; nunca transformou. Mudanças de comportamento de agentes, no mercado, como fornecedores e consumidores de qualquer coisa, é que são inovação. E transformação é o caso radical de inovação: quando acontece, redesenha mercados, eventualmente destrói uns mercados e cria outros.

No caso de TradeLens, a plataforma estava lá [pelo que dizem…], mas faltou a colaboração total da indústria global. Pra uma plataforma habilitar um ecossistema… não só o problema de partida [do ovo e galinha] tem que ser resolvido, mas efeitos de rede [aprendemos isso nesta série, aqui: bit.ly/3BjJUK1], seu domínio e uso efetivo são tão ou mais importantes do que a tecnologia e seu desenvolvimento e operação. E, em plataformas e ecossistemas, nunca há colaboração total de ninguém [a gente também aprendeu isso nessa série aqui… bit.ly/3VEcxK3 e aqui: bit.ly/3FEmMJ2].

O caso da Bolsa da Austrália parece mais simples: fracasso de um mega projeto do tipo big bang para substituição de um sistema legado e crítico que funciona e vem sendo acrescido e remendado há décadas. Mesmo visto de longe, é o tipo do esforço que tem tudo pra dar errado, do ponto de vista de engenharia de software, e deu. Não precisava ter blockchain na equação, pra piorar.

Os casos de we.trade e B3i são parecidos: num e noutro, o “mercado” não estava pronto para a iniciativa. Isso, de novo, não é um problema “de” blockchain ou da efetividade de seu uso pra resolver problemas em qualquer mercado. Até porque, em 1995, a vasta maioria do mercado não estava pronta pra internet… e hoje ela é o que é.

Fora do setor financeiro [onde estão as CDBCs, moedas digitais de bancos centrais, bit.ly/3VY7BQx], credenciais verificáveis, digitais, à prova de fraude, sob propriedade e controle individual, independente de instituições centrais, ou seja, identidades soberanas podem vir a ser um dos casos fundamentais de uso de blockchain, porque habilitariam todo um novo universo de aplicações. Mas identidade soberana precisa de blockchain, mesmo, e pra que? Um blockchain permitiria que titular, emissor e verificador de identidade tenham a mesma fonte de verdade sobre quais credenciais são válidas e quem autenticou a validade dos dados das credenciais, sem que eles estejam armazenados no blockchain [estariam nas wallets, carteiras digitais das pessoas: bit.ly/3FsWkk7]. Mas pode-se arguir que, na prática e na vida real, não é preciso usar um blockchain para ter uma identidade soberana [bit.ly/3YrXPrE].

Aí voltamos ao problema das aplicações de qualquer tecnologia, inclusive das tentativas e erros que discutimos acima: nada é só técnico; tudo, com tecnologia, é sócio-técnico. A componente social -consequentemente humana- da solução de qualquer problema é sempre muito mais complexa, difícil e relevante do que a faceta tecnológica da mesma solução. Resultado? Não espere que um “case” para blockchain caia no seu colo, nem que “a tecnologia” de blockchain ou qualquer outra resolva qualquer problema por ela própria. Trabalhe pra que suas plataformas realmente habilitem ecossistemas, para que efeitos de rede atraiam e mantenham pessoas neles, para que o valor capturado pelos participantes dos ecossistemas, como um todo, seja maior do que o valor que você -que provê a plataforma- captura e, aí, você terá feito algo com potencial de escala e sustentabilidade. Simples assim. E difícil, dificílimo, assim, também, com ou sem blockchain.

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Silvio Meira é cientista-chefe da TDS.company, professor extraordinário da CESAR.school e presidente do conselho do PortoDigital.org

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