Efeitos de Rede e Ecossistemas Figitais [v]

Uma série, aqui no blog [o primeiro texto está em… bit.ly/3zkj5EE, o segundo em bit.ly/3sWWI4E, o terceiro em bit.ly/3ycYbX6, o quarto em… bit.ly/3ycyDtd, o quinto em bit.ly/3J51vZc, o sexto em… bit.ly/3Jkd8vC, o sétimo em… bit.ly/3JTlBHM e o oitavo em… bit.ly/42z6sT1], sobre Efeitos de Rede e Ecossistemas Figitais, com a co-autoria de André Neves. Esse texto é o rascunho de um documento que será publicado como um ebook pela TDS.company.

Os poderes das redes.
Programadores, conectores e seus efeitos.

Separando duas noções companheiras de sempre, poder é influência em potencial e autoridade é o poder temporário associado a um papel específico numa instituição ou organização. Redes sociais digitais, ao transformar as relações espaciais em conexões abstratas que possibilitam redefinir o poder em termos de fluxos de ação e informação que  passam a existir nas redes, redesenham as arquiteturas de relacionamentos e as interações econômicas e sociais.

Dois tipos de mecanismos habilitam a mobilização e eventual controle de uns por outros em redes: a capacidade de programar os objetivos e protocolos das redes e outra, a de conectar e garantir a colaboração em e entre redes, associando recursos, enquanto eventualmente se isola terceiros. Daí vêm os poderes das redes[1]: o de formar redes, privilégio de atores e organizações que definem as bases sobre as quais as redes são formadas; o poder da rede, dos padrões requeridos para inclusão e pertencimento nas redes sociais; o poder em rede, de uns sobre outros agentes numa rede, e a poder de criar redes, aquela dos agentes que criam, definem implementam e regulam as regras que todos os outros são obrigados a usar para participar de uma rede e do mercado como um todo.

O primeiro poder é o networking power, que se refere ao poder dos atores e organizações que estão inseridos nas redes que constituem o cerne da sociedade em rede. Esse tipo de poder está originalmente associado ao conceito de redes sociais[2] [muito anterior ao de redes sociais online], que são definidas como as relações entre indivíduos e grupos que se formam por meio de interações sociais. Estas redes tendem a ser exclusivas e se caracterizam por elevados níveis de coordenação e colaboração entre membros. Como resultado, quem não está nessas redes fica em desvantagem, pois seu acesso aos recursos e oportunidades que fluem nas redes é restrito.

Para entender networking power, considere este exemplo do mercado de trabalho: muitas vagas de emprego [segundo especialistas, 80%][3] nunca são anunciadas publicamente e são preenchidas por meio de redes pessoais e referências. Resultado? Quem não faz parte das redes onde a informação sobre vagas circula pode estar em desvantagem na procura de emprego, dado que não tem acesso às mesmas oportunidades dos que fazem parte das mesmas redes.

No caso das plataformas digitais-sociais, as empresas que estabelecem fortes conexões e parcerias com outras criam vantagens competitivas em relação aos players menores. Grandes negócios de tecnologia como Google e Facebook têm redes estabelecidas de anunciantes e parceiros que lhes dão uma posição dominante no mercado de publicidade, que por sinal querem manter como “de” publicidade e não de conexões, relacionamentos e interações. Empresas menores têm dificuldade em competir com as grandes, pois não têm acesso às mesmas redes e parcerias.

Uma lei destas redes é que o valor de pertencer a elas aumenta exponencialmente com o tamanho da rede e a desvalorização causada à exclusão das redes também aumenta exponencialmente e em ritmo mais rápido do que o aumento do valor de estar nas redes. As consequências são enormes.

O segundo é network power, associado aos padrões exigidos para criar e coordenar as conexões, relacionamentos e interações nas redes. Nesse caso, se exerce poder não pela exclusão das redes, mas pela imposição das regras de inclusão. As plataformas digitais geralmente estabelecem padrões e protocolos que regem o comportamento e a interação de usuários e parceiros e tais regras podem ser usadas para promover certos tipos de comportamento e excluir outros, moldando os efeitos de rede que surgem na plataforma.

A imposição de regras de inclusão é comum em redes sociais, que têm diretrizes claras para reger o comportamento e tipo de conteúdo que pode ser compartilhado. Essas diretrizes servem como um meio para a plataforma promover comportamentos específicos e excluir outros. Nos marketplaces, há padrões a serem seguidos por buyers e sellers, com imposição de regras para reger as conexões, relacionamentos, interações e transações entre eles, promovendo certas condutas e excluindo os que não cumprem as diretivas. Por exemplo, políticas de proteção ao comprador dão a garantia de receber um produto em boas condições, o que promover a confiança do comprador na plataforma e exclui vendedores que não cumprem as condições estabelecidas.

Um aspecto importante do network power é que plataformas podem mudar as regras de inclusão e exclusão a qualquer hora, o que lhes dá o poder de moldar qualquer efeito de rede de acordo com seus objetivos estratégicos. Por exemplo, Airbnb mudou as políticas de cancelamento de reservas para beneficiar os anfitriões, aumentando a confiança dos mesmos e incentivando-os a continuar a usar a plataforma. Essa mudança nas políticas pode ser vista como uma forma de exercer network power, já que moldou a dinâmica da rede de acordo com os interesses da empresa.

Por fim, network power é essencial para entender as relações de poder nas plataformas digitais; seu poder de criar e coordenar conexões e relacionamentos entre usuários e parceiros e, por meio da imposição de regras de inclusão, moldar efeitos de rede que surgem na plataforma, promovendo comportamentos específicos e excluindo outros, de acordo com os objetivos da plataforma, o que estabelece a dinâmica própria das plataformas digitais e o impacto que elas têm na sociedade.

O terceiro é networked power, que se refere ao poder de uns atores sociais sobre outros, na rede. Nas plataformas, tal poder se manifesta de várias formas, seja através da influência de certos tipos de usuários, influenciadores ou algoritmos que determinam que conteúdo é exibido, e quando, aos usuários. Esse poder também pode ser usado -e é- para promover ou suprimir certos pontos de vista, moldando o discurso na plataforma.

Influenciadores são agentes que, ao compartilhar conteúdo que ressoa com certos tiposd e público, criaram comunidades nas plataformas. Ao combinar público e credibilidade, são capazes de moldar opiniões e promover mudanças de comportamento. Influenciadores surgiram como atores-chave no marketing, onde trabalham em colaboração com marcas para promover produtos e serviços a seus seguidores.

Algoritmos usam funções matemáticas que classificam e filtram conteúdo em plataformas digitais, para personalizar a experiência de uso, mostrando aos usuários conteúdos com maior probabilidade de envolvê-los. No contexto do poder em rede, os algoritmos podem ser usados para amplificar as vozes de atores influentes enquanto suprimem vozes dissidentes. Por exemplo, algoritmos de redes podem ser usados para promover conteúdo alinhado a valores e interesses de atores dominantes, ao mesmo tempo em que suprimem conteúdo que desafie o status quo. É assim que se formam as câmaras de eco, onde usuários são expostos apenas a conteúdos que reforçam conjuntos de crenças e preconceitos pré-existentes.

Além de moldar comportamentos, algoritmos também podem determinar a distribuição de poder numa rede. Ao determinar qual conteúdo é mostrado aos usuários, os algoritmos têm o poder de elevar as vozes de atores influentes enquanto suprimem as vozes de atores menos influentes. Isso pode ter implicações significativas para a distribuição de poder e influência dentro de uma rede.

No contexto do poder em rede, tanto influenciadores quanto os algoritmos podem ser usados para amplificar as vozes dos atores dominantes enquanto suprimem vozes dissidentes. Ao compreender o papel de influenciadores e algoritmos na formação do fluxo de informações dentro de uma rede, é possível criar estratégias para alavancar tais forças para acelerar mudanças de comportamento e|ou redirecionar e criar fluxos que definem fluxos, influência e poderes das redes.

Finalmente, network-making power é a capacidade de projetar, programar e manipular redes de acordo com interesses e valores dos programadores, exercido por quem tem conhecimento técnico e recursos para criar e controlar a arquitetura da rede. O poder de criação de redes está relacionado às outras três formas de poder nas redes, pois pode influenciar as regras de inclusão, coordenação da interação social e o poder dos atores sociais sobre outros atores na rede.

O poder de criar redes é visto em plataformas onde programadores definem arquitetura, regras e algoritmos, controlam design e funcionalidades, moldam a experiência do usuário e influenciam os tipos de efeitos de rede que surgem -ou não- na plataforma. O poder de criar de redes, aí, é usado para garantir que as plataformas beneficiem seus interesses e valores. Um exemplo é o algoritmo de busca de Google que, ao ser modificado pela empresa, impactaa a classificação dos resultados de busca, promovendo ou rebaixando sites, afetando potencialmente sua visibilidade, tráfego e receita.

Outros exemplos são algoritmos que definem as regras em redes sociais como Twitter, afetando a inclusão, coordenação das interações e influenciando poder de uns sobre outros atores sociais. Tal poder é usado para promover ou suprimir certos conteúdos, influenciando até a opinião pública e resultados de interesse político. E o poder de criar redes não se limita às plataformas digitais-sociais: se aplica a redes físicas, como comércio e indústria. Uma empresa que tem uma posição dominante numa rede de suprimentos pode usar seu poder de criação para ditar os termos de troca e exercer influência sobre outros atores da mesma cadeia de valor… o que estamos cansados de ver em todos os mercados.

Esse é o resumo dos poderes das redes. Como eles definem quase toda a sociedade e economia da atualidade, é claro que enciclopédias inteiras são necessárias para dar conta de sua influência no nosso mundo. Mas não temos nem a competência, nem o tempo pra tal esforço aqui. Fica assim. Mas podemos dizer mais duas ou três coisas.

É comum ouvir que a maioria ou todas as redes -em especial digitais, formadas com e para pessoas- são livres de escala e descritas pela mesma teoria. Nelas, a regra geral seria um winner takes all -o volume de nós com muitas conexões seria uma pequena fração do total de nós. Mas o mundo real é mais complexo –ainda bem, e as redes também. As redes sem escala não são universais e podem ser raras, segundo Broido e Clauset[4]. Uma análise recente de 185 redes[5] aponta para 27% fortemente livres de escala, 23% fracamente livres e para 50% fora da classificação “sem escala”.

A consequência é preciosa: como nem toda rede é sem escala, não é naturalmente o caso que um ou poucos ganhadores levem tudo nos mercados em rede; a dinâmica das redes sobre plataformas figitais não é tão simples e tampouco vive em equilíbrio permanente[6]. Quando acontece, muitas vezes, quase sempre, é porque a rede do poder fez tal desenho e a sociedade aceitou[7], como vimos no faroeste digital em alguns países, em particular nos EUA. Depois do fait accompli é muito difícil lidar com os poderes das redes, que a essa altura extrapolaram as redes digitais de origem e criaram o poder de manipular qualquer poder.

Aliás, o esforço legislativo para regular e limitar o poder de grandes empresas de tecnologia dos EUA corre o risco de fracassar, detonado por um esforço de lobby que já gastou mais de meio bilhão de reais só em 2021 e 2022[8]. O problema central de certas redes do poder é um fundamentalismo de mercado acima de tudo, inclusive e principalmente dos direitos individuais e do bem comum[9].

Isso cria uma demanda simples e objetiva: nosso entendimento dos poderes das redes tem que ser aprofundado e usado, diuturnamente, para tentar impor que os poderes das redes sejam exercidos, sempre, a favor dos indivíduos e seus direitos, da cidadania e dos mercados abertos e competitivos, sem o que continuaremos vendo e vivendo imprensados por empresas que valem trilhões e definem o que é não só o espaço social mas a esfera pública[10]. E esse não pode continuar a ser o caso; se for, é sinal de que nossos problemas, inclusive para a democracia, vão aumentar muito com o tempo.


[1] Castells, M., “A network theory of power.” Int J of Comm, 2011, bit.ly/3xHKlLd.

[2] Durkheim + Tönnies, 1890s: a ideia de redes sociais vem de suas teorias e sobre grupos sociais: bit.ly/3JeRGsX.

[3] “The hidden job market”, CNNMoney.com, 2009, cnn.it/3mm198R.

[4] Broido, A. D., A. Clauset. “Scale-free networks are rare.” Nat Comm, 2019, go.nature.com/3E4Risg.

[5] Serafino, M. et al., “True scale-free networks hidden by finite size effects”, PNAS, 2020, bit.ly/3C4PxNy.

[6] Evans, D., R. Schmalensee, “Winner-Takes-All Doesn’t Apply to the Platform…”, HBR, 2016, bit.ly/3bZXtoq.

[7] Cennamo, C., “Value Preserving Platform Regulation”, SSRN, 2020, em bit.ly/3w4YQZV.

[8] “Big Tech’s $95 Million Spending Spree Leaves Antitrust Bill on Brink of Defeat”. Bloomberg, 2022, bloom.bg/3TMCK8J.

[9] Moss, E., J. Metcalf. “The Ethical Dilemma at the Heart of Big Tech Companies”. HBR, 2019, bit.ly/3RxzIDN.

[10] Meira, S., “Narrativas, Distopias, Extremismo: Soluções?”, silvio.meira.com, 2023, https://bit.ly/3Dsx2lP.

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Silvio Meira é cientista-chefe da TDS.company, professor extraordinário da CESAR.school e presidente do conselho do PortoDigital.org

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