SILVIO MEIRA

Pessoas, Games, Gamers, Cavalos…

Cartas de Pokémon voltaram à moda na pandemia e os preços foram para a estratosfera. Uma Charizard holográfica, da primeira edição, vale dezenas de milhares de reais. Uma delas, especial e verificada, saiu por R$1.630.980[1]. O que Walter Benjamin diria disso? Nunca saberemos, mas o filósofo escreveu que “mesmo na reprodução mais perfeita, falta uma coisa: o aqui e agora da obra de arte -sua existência única em um determinado lugar”. De muitas maneiras, a Charizard milionária é uma reprodução única, que tem seu próprio aqui e agora.

Pokémon, o jogo, completa 25 anos em 2021 e suas oito gerações venderam 360 milhões de unidades, atrás apenas de Mario, Tetris e Call of Duty. Quando se considera todas as facetas do negócio, de games a cartas e vídeos, Pokémon é primeiro, com vendas globais de US$92 bilhões desde o lançamento. Nada mal.

Estudo recente mostra que 2,7 bilhões de pessoas são gamers, um mercado global de US$300 bilhões por ano, maior do que a soma de filmes e música[2]. Jogos digitais vão muito além da economia; seus impactos educacionais e culturais são imensos, assim como os sociais: o lugar de muitos, hoje, é uma é uma plataforma de games. Para 84% dos gamers, jogos ajudam nas conexões pessoais; 80% acredita que eles ajudam a fazer amizades e 77% usam jogos para se manter em contato com os amigos. E amigas: mulheres já são 46% dos gamers globais.

Algum observador diria… homens, mulheres e… crianças. Roblox é uma plataforma e sistema de criação de jogos online onde 54% dos 36,2 milhões de gamers tem 13 anos ou menos. Lá, 8 milhões de pessoas já criaram algum jogo e quase meio milhão delas comprou Robux, a moeda do lugar, em 2020, gerando US$1 bilhão de receita. Há negócios digitais de US$100 mil ou mais por ano, que só existem em Roblox, que fez um IPO em março e vale duas vezes e meia mais do que o Banco do Brasil[3]. É isso.

Mas “isso” é, eu diria, absolutamente normal. Até porque o mercado de games não está somando, até agora, plataformas como Zed Run, que mudam completamente o jogo. Zed se descreve como “um aplicativo distribuído executado na rede Ethereum, usando contratos inteligentes desenvolvidos exclusivamente para permitir que os usuários comprem, vendam, criem e corram puros-sangues digitais estatisticamente únicos”. Ou seja, um “cavalo”, em Zed, é um ERC-721 NFT, um bem digital infungível, um modo de negociar que dia destes estava sendo usado para “comprar” de tweets a imagens digitais animadas, por uma fortuna.

Pois bem. Essa moda passou: 11.000 “animais” da primeira geração de 38.000 “cavalos” de Zed já foram vendidos, a maioria por algumas moedas, mas um deles saiu por US$125.000. Em Zed, a plataforma, você cria, compra, inscreve e assiste [seus] cavalos em corridas, aposta… o tempo todo. Não é um jogo, é o Jockey, o clube, on a blockchain[4].

Mas o que é um jogo, afinal? Para Salen e Zimmerman, seguindo Huizinga, jogar é entrar num círculo mágico, um espaço delimitado para brincar, formalmente separado da vida cotidiana. Ao cruzar tal fronteira, estritamente definida, gamers entram em um mundo alternativo, com suas próprias leis e regras e onde ações e objetos adquirem novos significados[5]. Uma definição problemática, do ponto de vista social, econômico e bem mais. O espaço e os cavalos de Zed têm suas próprias leis e regras[6], mas Zed “vaza” para o mundo e sofre a influência do ambiente externo. Senão, como aquele “cavalo” seria sido comprado por mais de cem mil dólares?

Segundo Stenros, por ser um contrato social criado numa negociação e comunicação fora do jogo -e para jogar, o círculo mágico não é impermeável, mas uma norma de impermeabilidade, onde os participantes deveriam tratar eventos do jogo como desconectados do mundo externo e descartar as motivações externas. Na vida real, não é isso que acontece, muito ao contrário, como mostram -entre muitos exemplos- os times de LoL dos times de futebol e suas torcidas [in]comuns.

Por fim, jogos são mágicos. Jogos digitais são plataformas mágicas que formam redes, bases para ecossistemas de encantamento, universos virtuais permeáveis, que são englobados pela realidade e ao mesmo tempo a englobam. Jogos criam novos significados e ressignificam o que, lá fora, é normal e lá, dentro dos jogos, também. Com outras normas. A mágica dos jogos é não só a das redes de pessoas que os criam e que eles, jogos, criam, mas o enredamento das pessoas pelas redes dos jogos e a captura, pelas pessoas, dos jogos e suas redes.

Ao ponto de, em algum lugar do futuro, talvez tudo venha a ser um jogo. Figital, no caso.

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Uma versão editada deste texto foi publicada no ESTADÃO em 05/05/21.
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[1] I Need to Explain to You Just How Dire America’s Pokémon Card Crisis Is, Vice, ABR/2021: http://bit.ly/3ea4FNi.

[2] Gaming: The next super platform, Accenture, ABR/2021: http://accntu.re/33cMm3y.

[3] Putting Roblox’s incredible $45 billion IPO in context, Ars Technica, MAR/2021, http://bit.ly/3rJzht4.

[4] What Is Zed Run? Ethereum, NFTs And Horses…, Benzinga, ABR/2021, http://bit.ly/3nPQal3.

[5] Philosophy of games, C. Thi Nguyen, Philosophy Compass, AUG/2017: https://bit.ly/3nK9gst.

[6] BETA ZED Terms of Use, Zed, MAI/2021, https://bit.ly/3gZLBDk.

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Silvio Meira é cientista-chefe da TDS.company, professor extraordinário da CESAR.school e presidente do conselho do PortoDigital.org

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