Aparentemente, vivemos em um sistema onde a sociedade é tutelada por três poderes federais: o executivo, o legislativo e o judiciário. no brasil, como se sabe, o legislativo só funciona vez por outra e seu papel é, há muito tempo e em boa parte, exercido pelo executivo e, mais recentemente, pelo judiciário. mas nem sempre foi assim. havia um equilíbrio entre os três poderes, que costumava ser benéfico para todos, os poderes inclusive.
se houve, durante um tempo, um debate sobre o tamanho do estado, tal página virou e passamos [ou deveríamos passar] a discutir a eficácia [a capacidade de bem resolver problemas] e eficiência [como resolver problemas com celeridade e com menor gasto de energia] da máquina pública. o problema de todos os países, hoje, é que a complexidade do estado, do ponto de vista operacional, se tornou uma grande complicação [veja aqui, sobre leis e aqui, sobre complicação].
o problema global dos estados, em qualquer lugar, é simplificar seus ambientes de negócio para que os agentes econômicos consigam competir em escala global, por um lado, garantindo direitos e liberdades dos indivíduos e instituições, por outro. e isso, claro, não é trivial em lugar algum. aqui no brasil, se a gente pensar nos três poderes clássicos, em todos os níveis, o problema é articular as agendas e ações de mais de 9 milhões de servidores públicos.
no meio deste barulho todo, surgiu um quarto poder, o administrativo, formado por braços do estado capazes de editar e fazer cumprir regras, às vezes ao capricho de seus agentes e de baixo impacto. mas, ao lado destas, há intromissões de porte, prescrevendo o presente e futuro de mercados inteiros, obra e graça de secretarias e agências, às vezes à revelia da legislação para um setor e, quase sempre, emitidas à falta de uma, já que, como se sabe, o congresso [aqui] não funciona.
e isso não é uma síndrome brasileira, apenas, apesar de ser muito grave por aqui. o washington post duvida que o presidente americano comande, de forma efetiva, o governo de lá. o post diz que o congresso dos EUA, em 2007, aprovou 138 leis, mas agências e departamentos que interferem diretamente na economia e na vida de todos editaram 2,926 regras, incluindo 61 de grande impacto. segundo o post, [e por razões diferentes do brasil] o presidente obama não estava a par de decisões recentes tomadas pelo imposto de renda, departamento de estado e muitos outros. e não é por menos. e deve ser o mesmo caso em todo canto. o executivo americano tem 15 ministérios, temos quase 40. lá nos EUA há 69 agências e 383 sub-agências federais civis, onde milhares de burocratas criam novos regimes legais que devem ser cumpridos por todos, sob penas variadas, sem uma discussão maior sobre sua necessidade ou validade. à cidadania, sobra espernear, lutando pelos direitos que deveriam ser seus [como a transparência na criação de novas regras] a posteriori, já com os novos regulamentos sendo executados pelos sistemas de controle social impostos à cidadania e instituições pelo estado.
porque leis e regulamentos são o código da economia e sociedade. há algum tempo, era possível ignorar, por muito tempo e enquanto se lutava contra regras sem sentido, as determinações do estado. não mais: criada uma regra, ela se torna parte de um sistema [de informação] que, literalmente, passa a determinar como cada um sob sua gestão deve se comportar. é a informatização do caos. passo a passo, regra a regra, golpe a golpe [burocratas anônimos e suas ações regulatórias são pequenos golpes de estado, no estado, na cidadania…], o sistema operacional da sociedade se complica a cada dia, os custos aumentam a cada regra e fica cada vez mais difícil, para cada um e todos, cumprir o que o código social manda fazer, sem que ninguém tenha uma noção, sequer, do todo. o que é especialmente grave em países como o brasil, de tradição prescritiva [só se pode fazer o explicitamente permitido] ao invés de descritiva [onde se diz que resultados se quer alcançar, com os agentes livres para escolher meios razoáveis para tal].
que tal um exemplo?… acaba de sair uma nova regra, inserida pela anatel no regulamento do SCM, código de provimento e uso da internet.BR, à revelia do marco civil, parado no congresso até que a casa se dê ao trabalho de votar a proposta, longamente debatida. sim, e daí? no que mais importa aos usuários –a neutralidade de rede- a anatel joga a bola pra frente e define que "as prestadoras devem respeitar a neutralidade conforme a legislação"; no que trata de aumentar o controle do aparelho de estado sobre a rede, a agência não espera pelo marco civil e determina que provedores devem guardar registros de acesso e uso da rede, pois "…não podemos ser complacentes e deixar que as autoridades não tenham instrumento e deixar que aqueles que cometem crimes fiquem acobertados pela falta de regulamentação".
dois pesos, duas medidas. porque a anatel não esperar pelo marco civil para que se defina –ou não- a guarda de registros?… porque alinhar o brasil com países que querem transformar a internet num espaço orwelliano, sem precisar?… de onde virão as garantias de privacidade para os seus, os meus, os dados de todos que os provedores, agora, terão que guardar?… pois é, isso deveria ser assunto, primeiro, do marco civil para, depois, ser regulamentado pela anatel. mas não.
parece que é sempre mais fácil fazer regras contra a cidadania do que a favor. se é para restringir comportamentos, capturar dados, impor regras aos usuários, os mecanismos de tutela do estado, incluindo os administrativos, estão prontos para emitir a regra [prescritiva, lembre-se] que se pensar necessária. ao mesmo tempo, se o caso é a garantia dos seus e dos meus direitos, quem há de?…
algo me diz que se os milhões de servidores públicos fizessem uma reforma no sistema… pensando neles próprios de forma dual, como servidores e cidadãos, ao mesmo tempo, as regras sobre fazer regras mudariam significativamente. parece que está na hora de fazer isso, pois o brasil está ficando complicado demais…