o governo [defunto] do presidente bush acaba de transformar em lei a proposta de proteção de propriedade intelectual -principalmente de música e filmes- chamada pro-ip. a coisa foi apoiada pela recording industry association of america [RIAA] e motion picture association of america [MPAA], além da u.s chamber of commerce. segundo esta última, aliás, as "perdas" americanas com pirataria chegam a US$250B por ano.
além de todos os problemas que o assunto levanta sempre que vem à tona, há um, especialmente interessante, por trás da argumentação que levou o governo americano a assinar a lei. e não é coisa menor. trata-se da veracidade dos dados, históricos, usados por associações como RIAA e MPAA para defender um maior combate à pirataria. segundo artigo publicado na arstechnica, as perdas de emprego e renda por causa da pirataria são meros chutes, velhos e sem qualquer sustentação. ou seja, a guerra contra a pirataria continua e as mentiras sobre o tema… também.
a indústria [lá nos eua] diz, há anos [décadas!], que o número de empregos perdidos nos setores afetados por pirataria de áudio e vídeo é um mitológico "750.000". julian sanchez descobriu a fonte: trata-se de um chute, radical, feito em -imagine!- 1986 pelo secretário de comércio do governo reagan, malcom baldridge, e publicado pelo christian science monitor. segundo balridge, o impacto de pirataria em toda a indústria americana [na época] seria… "anywhere from 130,000 to 750,000 [jobs]". e isso era de bolsas louis vuitton falsificadas até vídeos copiados sem autorização. o número foi pro limite e referem-se a ele, agora, como se fosse a quantidade de postos de trabalho afetados pela pirataria sobre a indústria de mídia.
aqui pra nós, será que alguém realmente pensa que quem só pode comprar uma cópia de vuitton está no mesmo público de quem compra os originais? e será que é razoável que alguém tenha a patente das letras LV? mas isso é uma outra, muito longa conversa. tamos aqui, hoje, só pra dizer que os dados usados pelos apoiadores da nova legislação americana de proteção à propriedade intelectual são, no mínimo, um chute radical e sem nenhuma sustentação no mercado. isso neste blog. há quem diga que é mentira, pura e simples.
o "outro" número da discussão americana sobre pirataria são os fantásticos US$250B de perdas para os negócios. depois de muuuita busca, arstechnica descobriu a fonte: um artigo da forbes, em 1993, citado num debate do congresso americano em 1995. lá atrás, dizia-se que a pirataria que entrava no mercado americano era "um negócio mundial de cerca de US$200B", incluindo as tais bolsas da louis vuitton. sem fontes adicionais, sem dados baseados em apreensões e, de resto, nada que pudesse ser provado ou contestado de maneira minimamente formal. e os US$250B [atuais, ajustados pela inflação ou coisa que o valha], mesmo por tais contas, seria a estimativa da pirataria, ou ilegalidade, de todo tipo e mundo afora, exportada para os estados unidos. acabou se tornando, por repetição, a verdade sobre as perdas dos estúdios e gravadoras…
na guerra pra proteger propriedade intelectual vale absolutamente tudo. inclusive assumir que o mundo não mudou. na indústria de mídia, o que protegia o material das grandes casas de produção e distribuição era o custo, no passado, de gravar, produzir e distribuir o material. no presente, os estúdios são caseiros e o custo do suporte e distribuição se aproximam de zero. resultado? voltamos à era da performance. seu "material" sai por aí, grátis, fazendo propaganda de você, a "performance".
uma parte da indústria que outrora chamávamos "de mídia" ainda não entendeu o recado. e continua na briga, por leis que não fazem nada mais do que adiar o inevitável fim de um modelo de produção-cópia-distribuição de material criativo que faliu desde que a digitalização e a internet mudaram o mundo. da mesma forma que a prensa de gutenberg detonou o modelo de negócios dos monges copistas e seus mosteiros. é só ler a história do texto e sua replicação entre 1450 e 1500 pra entender o que está acontecendo agora.
ainda não chegamos no nível de radicalismo legal que bush vai deixar, nos eua, pra seus financiadores, mas pode não demorar a termos a mesma situação por aqui. por que? porque os dados usados para preparar o cenário, aqui no brasil, são ainda mais astronômicos do que nos eua, especialmente quando se leva em conta que a economia de lá, com ou sem crise, é dez vezes maior que a nossa. segundo o presidente do conselho nacional de combate à pirataria, "a pirataria provoca uma redução de dois milhões de postos de trabalho no mercado formal". é assustador. se nos estados unidos, o impacto [chutado] seria de 750.000 empregos, como é que aqui ronda os 2.000.000?… e ainda mais considerando que eles têm uma vez e meia nossa população, e um mercado de trabalho que é duas vezes o tamanho do nosso? segundo o mesmo conselho [noutro veículo] cada emprego informal elimina seis empregos formais. se for isso mesmo, a coisa é imbatível e impossível de erradicar: pense numa economia onde uma "forma" de emprego é seis vezes mais produtiva do que a outra. o estado pode fazer a força que quiser, mas não vai conseguir frear a primeira "forma"… ou vai?
pesquisa do instituto akatu mostra que 75% [isso mesmo, três quartos] dos brasileiros compra produtos piratas… e sabe que está comprando pirataria e tem boas razões pra isso, incluindo uma noção bem precisa do que é custo benefício do produto em si e uma ampla desconfiança [quando o argumento contra a pirataria é sonegação] sobre o destino dos impostos que paga. sobre este assunto, aliás, tenho ouvido de mais de um jurista que a sociedade brasileira está no limiar de encontrar e usar justificativas filosóficas, éticas e morais para sonegar impostos. e não vai ser quem está quase pensando assim que vai dar ouvidos [de novo] ao conselho nacional de combate à pirataria, a nos dizer que o país perde, por ano, com pirataria, R$30B em arrecadação de impostos. junte tais "dados" com outros tão bons quanto, como o depoimento de um dos deputados que apóiam o fórum nacional contra a pirataria, de que "só no ano passado o prejuízo foi de 700 bilhões de reais, quase um terço do PIB do Brasil", que aí é que não vai se conseguir montar uma argumentação sólida contra pirataria, seja ela concreta, das tais bolsas louis vuitton ou relógios rolex da feira do paraguai até música e software na internet.
este texto, claro, não é uma defesa aberta da pirataria e dos piratas de todos os tipos. pirataria pode ser letal. basta lembrar que há remédios piratas no mercado, cuja fórmula pouco tem a ver com a original… e cujas conseqüências podem ser fatais. mas o fato é que o brasil tem sido muito, mas muito ingênuo quando o negócio é copiar e imitar os outros, coisa que se faz entre países desde o início dos tempos. a maioria dos países emergentes [de qualquer época] só assina tratados internacionais que regulam mercados ricos e elaborados quando chega lá, quando se é rico e elaborado. nós não. educados na boa escola do imperador pedro II, que tirava uma onda de cidadão do mundo, fingimo-nos de civilizados e assinamos antes de chegar em qualquer lugar, garantindo um status quo normalmente contra nossos interesses.
claro que precisamos formalizar muitos dos nossos mercados. mas porque será que na finlândia, um dos países mais educados do planeta, a pirataria de software é de 25%? e porque será que lá mesmo, apesar de apenas 15% das pessoas reconhecer que copia música da internet, 85% do tráfego de saída das universidades corresponde a P2P?… será que isso tem a ver com os modelos [atuais] de negócio de software e música? aqui, agora, precisamos de uma discussão inteligente [e usando dados reais, confiáveis] sobre o que formalizar, pra que formalizar, pra atender que interesses, quando, e se isso é ou não o melhor para fazer agora. é preciso até entender, de perto, qual a função da pirataria no mercado. além de termos que lembrar, a todos os envolvidos, que em tempos onde as tecnologias de suporte estão mudando muito radical e velozmente, como é o caso dos setores da indústria "de mídia" agora "protegidos" pelo pro-ip americano [e só lá, por enquanto], congelar o passado em legislação e ação federal é suicídio puro. de postos de trabalho, de receitas e impostos, no futuro.