relatório do pew internet project [PIP] sobre o futuro da rede, publicado no fim do ano passado, chegou a seis conclusões. para tal, mais de mil especialistas, teóricos e práticos das tecnologias e vida na rede foram consultados. este blog está comentando os achados do projeto e tentando imaginar o cenário equivalente no brasil. o primeiro da nossa série foi sobre MOBILIDADE, o segundo sobre PRIVACIDADE e TRANSPARÊNCIA, o terceiro sobre o futuro das INTERFACES e o quarto sobre PROPRIEDADE INTELECTUAL.
hoje, no penúltimo capítulo desta série, vamos falar das realidades física e virtual [termos do PIP] e sobre o tempo pessoal e do trabalho em tempos de rede. neste contexto, o PIP prevê que... The divisions between personal time and work time and between physical and virtual reality will be further erased for everyone who is connected, and the results will be mixed in their impact on basic social relations… ou seja: as separações entre o tempo pessoal e de trabalho e entre a realidade física e virtual serão ainda mais tênues para quem estiver conectado… e os resultados de tal conjução de fatores, do ponto de vista de seus impactos nas relações sociais, serão bons por alguns lados e nem tanto assim por muitos outros.
primeiro, o que é o virtual? este blog andou falando disso no ano passado: segundo pierre lévy, a humanidade se constituiu através de virtuais. na opinião do filósofo, os três virtuais fundamentais seriam a linguagem, que virtualiza o presente, criando o futuro e o passado e, consequentemente, o tempo; as técnicas abstraem as ações, estendendo o alcance do corpo humano; finalmente, os contratos abstraem a violência, criando as sociedades.
estamos cercados por virtuais, alguns muito antigos, como dinheiro [parte dos contratos], que é um virtual de poder de compra: ao invés de levar uma vaca para a loja e trocar por um celular, levamos papéis que representam nosso poder aquisitivo [resultado, talvez, da venda da vaca…]. mais comumente, pagamos com um plástico que é, em si, um virtual do dinheiro, ou seja, um virtual de segunda ordem.
observando por tal ótica, estamos nos virtualizando há milênios e isso é muito legal: o "virtual" não é nenhum susto que começou ontem; estamos nos aconstumando a ele à medida que nós próprios o estamos construindo e nos virtualizando. e vamos nos virtualizar ainda mais. no caso do dinheiro, não é difícil imaginar um futuro onde poder de compra estará completamente virtualizado. é só imaginar que todos os créditos e transações financeiras tenham sido informatizadas e estejam na rede. tipo… ninguém mais tem ou anda com dinheiro "físico", em notas, moedas e cartões de crédito, débito e o que mais. ao invés, pagar por algo significa transferir créditos meus para alguém [isto é, sua "conta"] que me entregou um bem ou me prestou um serviço qualquer.
parte disso já pode ser percebido agora, quando taxis, em alguns lugares, começam a preferir cartões de débito como forma de pagamento. em brasília, segundo um motorista que ouvi, é muito mais seguro. nada mais óbvio: o assaltante em potencial prefere o motorista que não aceita cartão de débito porque, se este último estiver tendo um sucesso razoável nas suas transações eletrônicas, terá muito menos dinheiro "em caixa". agora generalize isso para toda a economia, da barraca de macaxeira até a loja virtual de música [virtual, também]. resultado?… dinheiro, salário, compras, vendas e empréstimos completamente virtualizados.
vantagens disso? um assaltante pode até forçar alguém a comprar alguma coisa para ou por ele. mas vai ser na rede, virtual, e vai ficar documentado. assaltar pra "pegar" o dinheiro de alguém deixa de ser negócio: o ladrão vai ter que transferir algum valor da minha conta para a dele ou alguma outra. registrado, de novo. pense nas alternativas para tentar extrair dinheiro de alguém sem deixar rastro. vai ser muito mais fácil achar as brechas do sistema e, através delas, tirar do sistema ao invés de alguém em particular.
desvantagens? com as finanças virtualizadas, todos os sistemas de supervisão e controle da sociedade, se quiserem, terão acesso a todas as transações financeiras realizadas por toda e qualquer pessoa, seja pra que for. sem "trocados", mesmo o dinheiro do flanelinha tem que ser transferido através de uma transação em rede, que terá seu local, hora, motivos, valor e envolvidos registrados. para sempre. uma das vantagens da desvantagem é que lavagem de dinheiro se torna quase impossível, se todos os sistemas financeiros estiverem devidamente conectados… inclusive os dos mundos virtuais. olhando para o caos dos sistemas financeiros mundiais, é bem capaz de termos uma parte muito maior deles nesta fora e em rede, em 2020, por razões de controle [sobre as instituições] e sobrevivência [de todos nós].
até aqui tudo bem, você pode dizer, até porque "eu não tenho nada a esconder". já falamos disso nestes textos sobre o futuro da internet e a descoberta -óbvia- é que todo mundo tem muito a esconder [veja texto desta série neste link]. e a humanidade depende, em boa parte, de assimetria de informação, ainda mais quando tratamos de mercados, custos e preços. virtualizar, informatizando tudo, vai ser muito bom, vai simplificar muita coisa. por outro lado, podemos perder uma parte considerável do que se acha que são, hoje, liberdades e direitos humanos fundamentais. e olhe que, até aqui, só falamos de virtualizar, de forma mais radical, o dinheiro, coisa que já é um virtual há milênios.
mas vamos olhar também o outro lado da previsão, que tem a ver com a interface cada vez mais difusa entre o tempo pessoal e o do trabalho. para isso, vamos partir do princípio de que estamos e estaremos vivendo em uma sociedade que, cada vez mais, será da informação e do conhecimento. ou seja: no médio prazo, quem ainda tiver alguma função sócio-econômica que convenhamos relacionar às noções atuais de trabalho e emprego [e renda] estará quase que certamente trabalhando em e com conhecimento.
quando seu trabalho é de conhecimento, seu tempo pessoal, já hoje, não se separa de seu tempo de trabalho. você, na prática, não desliga a parte de seu cérebro que resolve os problemas do trabalho quando, por exemplo, está na praia. aliás, é bem provável que na praia, separado do seu "local" de trabalho, pegando onda em maracaípe, lhe venha alguma idéia sobre como tratar um dos "problemas" do trampo.
e o melhor é que isso não deveria ser nenhuma novidade. imagine um nativo, numa selva ideal, intocada por invasores. de quantas fontes de informação depende, a qualquer momento, a sobrevivência daquele indivíduo e seu grupo? ele sai para caçar e, ao contrário do que pensamos, não está absolutamente concentrado no macaco, no topo da árvore, que ao ser acertado por uma flechada será a proteína do almoço de amanhã. há um amplo contexto ao redor do nosso caçador: sua atenção tem que ser dividida entre uma multitude de sinais, desde pássaros agitados por causa de algum predador [a onça que pode estar atrás] até os estalos, à frente, que podem se transformar num bote mortal de serpente em poucos segundos.
o caçador tem que dispensar ao seu alvo o que passamos a chamar, há pouco tempo, de atenção parcial contínua. o alvo e um monte de outras coisas têm que estar no foco, o tempo todo, um pouquinho de cada vez e simultaneamente. isso vem a ser a base do que a revista TIME denominou da "geração multi-tarefa" e que o professor de educação da ufba, nelson pretto, chama da "geração alt+tab", se referindo ao mecanismo padrão de troca de foco entre as janelas de windows. mão na direção outra na marcha, um ouvido no rádio do carro, juca kfouri -e nós- torcendo pela queda do ricardo teixeira, outro na rua, um olho no trânsito e outro no celular -pra ver quem está chamando- e olha que o sinal vai fechar… nós somos, sempre fomos, multi-tarefa.
mas não é só: a extensão -ou virtualização, usando a rede- dos locais físicos de trabalho, que vai acabar levando à extinção dos locais de trabalho nos casos em que as ferramentas possam ser informatizadas e providas à distância, vai fazer com que o tempo pessoal deixe de ser compartimentalizado em horas "de repouso", versus horas "de trabalho", onde alguém bate ponto e tem sua capacidade de trabalho alugada, por alguma instituição, por hora.
vamos voltar, paulatinamente -e 2020 está antes da metade do caminho- a uma situação em que seremos remunerados por resolver problemas e não por hora de aluguel de nossas capacidades. o trabalho escravo, no passado, obrigava o indivíduo a estar disponível o tempo inteiro, a vida inteira. o trabalho "de ponto" a que nos obriga a legislação trabalhista brasileira em quase todos os casos, reduz tal disponibilidade a cerca de um terço do dia, garantindo férias e mais um bocado de coisas. e, na maioria dos casos, desacopla o empregado do risco e do sucesso do empreendimento.
bater "o ponto" e trabalhar num "local de trabalho" está diretamente associado à escassez das ferramentas com as quais o trabalho é feito e ainda fará sentido, no futuro próximo, para um certo número de profissionais. mesmo quando ambientes são essenciais para o trabalho. olhe para os cirurgiões: a maioria já não "bate ponto", resolve problemas e é remunerado por isso. da mesma forma, não há nenhuma razão para que o professor [sempre] dê aulas "na escola", se houver disponibilidade de ferramentas e infra-estrutura de conexão que integre comunidades de aprendizes,
tenho experimentado, na última meia década, trabalhar de qualquer cidade ou prédio com gente em muitos outros lugares e prédios. às vezes, de um hotel em são paulo, entro em contato, via skype, nimbuzz, emeio, blog, rede social, twitter… com dezenas de pessoas, para resolver problemas, entre 11 da noite de 2 da manhã. e a maioria dos emeios que sai do meu laptop, no hotel, foi composta no vôo recife-guarulhos, que ainda é uma das poucas três horas em que ninguém consegue me encontrar online. por enquanto: vem aí cobertura 3G dentro dos aviões, coisa antecipada por este blog muitos meses atrás.
dá pra notar que os dois temas deste texto estão conectados: quanto mais nos virtualizamos, mais difusa se torna a separação entre os tempos do trabalho e pessoal. isso é bom ou ruim? como tudo na vida, depende…
em 2020, as cidades estarão muito mais conectadas entre si e, dentro delas, seus bairros e prédios estarão mais conectados. será muito mais fácil trabalhar sem ir até o local de trabalho… e você e eu não precisaremos jogar fora quatro horas, por dia, no trânsito, para ir até o lugar onde, no passado, estavam as ferramentas necessárias para realizar nossa tarefa. empresas que continuarem insistindo em trazer as pessoas para um local de trabalho singular poderão ser forçadas a pagar impostos mais altos por isso, para compensar o custo logístico que infligirão à região onde estão situadas.
mas, alguém diria… você pode ficar viciado em trabalho e trabalhar o tempo inteiro, exatamente porque os meios estarão com você [em casa ou perto dela] ou em você [no longo prazo, implantados em você…]. sim, você pode ficar viciado em trabalho. isso pode fazer muito bem à sua empresa, por um tempo, e a você, também por um tempo. mas pode virar um vício radical, uma neurose, daquelas que precisa ser levada a sério e tratada. muita gente pode ficar viciada em trabalho, num cenário como o descrito acima. mas será que isso faria mais mal à sociedade do que as doenças de trabalho causadas pelo trânsito que se enfrenta pra ir trabalhar ou, pior, pelas mazelas pessoais e sociais advindas de práticas de "trabalho" em que uma parte dos empregados bate ponto e não faz nada, gastando o expediente, na sua "repartição", a ver navios e contaminando os companheiros?…
é muito provável que não. mais virtualização, com uma separação bem menor entre o abstrato e o concreto, fundindo ambos em uma [quase] só realidade, tornará possível levar o trabalho às pessoas e não as pessoas ao trabalho. esta é uma parte inevitável do futuro. parte dela já acontece agora e muito mais vai estar rolando daqui a doze anos. neste cenário, e pra quem está começando agora, é bom olhar pro futuro com olhos virtuais e pensar em como se remunerar, num mundo em rede, resolvendo problemas, estejam onde estiverem. este vai ser o jeito do futuro. e já pra muito mais gente e em muito maior parte, daqui a meros doze anos.
pra terminar, uma recomendação de leitura sobre o virtual e os nossos tempos, num futuro mais próximo do que talvez se possa imaginar: idoru, novela escrita por william gibson em 1996. idoru é o japonês para ídolo, que os americanos acham que veio de idol, mas deve ter vindo mesmo de ídolo, em português. o ponto alto da história é o casamento de uma estrela de rock, rez, com um idoru, rei toei, nada mais nada menos do que uma construção virtual, um ídolo sintético ideal que existe na realidade mas que não é… concreto.
a novela deixa claro que todos os ídolos são construções e que tanto faz, mantida uma certa distância, se são concretos ou abstratos. rei toei, um virtual, não separa trabalho e lazer, move montanhas e mundos, tem legiões de fãs e, ainda por cima, vai se casar com alguém de… verdade.
rei toei guarda uma semelhança com as bandas de adolescentes que espocam aqui e ali, onde os participantes saem de uma linha de montagem operada por empresários e produtores [e mídia] e são, quase sempre, vazios. isso não impede que sejam adorados de forma frenética por multidões de outros adolescentes que gostariam muito de estar em seu lugar ou… casar com eles. neste presente, nosso e bem real, já padecemos de uma certa confusão entre estes concretos e abstratos.
o passo à frente de gibson é criar uma celebridade abstrata, idolatrada, capaz de levar um dos maiores roqueiros [digamos] concretos do planeta a querer se casar com ela. ou seria, apenas, uma conjunção de interesses manipulada pelos gestores de ambos os lados? é o futuro, diria um dos personagens, e não vou revelar aqui… vá ler o original. vale a pena.