Acabou parte do sonho. depois de um tempo em que o homem, edward snowden, era a notícia e preocupação por trás do que o próprio revelou… chegou a hora de refletir mais profundamente sobre as revelações, que apontam para um esquema de espionagem em escala jamais imaginada, feito pelos EUA. e com ramificações globais, a ponto de incluir, pelo que se diz, a compra de informação digital, em larga escala, de outros serviços de espionagem, como o inglês GCHQ, que teria recebido £100 milhões da NSA nos últimos três anos como parte de um acordo de “cooperação”.
além de tornar claro que, do ponto de vista dos serviços de segurança, o GCHQ é capaz de estar sendo operado como uma franquia europeia da NSA, a “doação” de 350 milhões de reais em 3 anos levanta a suspeitas de que outros países, além do reino unido, podem estar sendo financiados para cooperar com a espionagem dos EUA. além e acima das reclamações brasileiras sobre estarmos sendo espionados, como se pode ver neste link, a esperança, aqui, é de que não estejamos sendo comprados ou que nossos dados não estejam sendo vendidos, como serviço, que é o que parece que os espiões de sua majestade estão fazendo por lá.
a conclusão mais elementar que se pode extrair do efeito snowden é que um país, seja qual for, não pode confiar em outro do ponto de vista de segurança de dados. isso sempre foi verdade e pode ter sido esquecido por algum tempo, mas agora é uma obviedade. uma conclusão mais radical é que nenhum cidadão deve confiar em qualquer estado, inclusive o seu, em relação à privacidade de seus dados, em seja lá que sistemas estiverem armazenados, em posse do estado ou privada.
ainda mais, não se pode imputar o atual estado de coisas, do ponto de vista de captura de informação que deveria ser pessoal e privada e o subsequente vazamento de sua captura e de quem o faz, a um ou outro agente, que teria sido o vilão ou mocinho de um episódio especial. vivemos em tempos que parecem ser regidos por uma conjectura manning/snowden: em sociedades onde a abundância de informação é a norma, a curiosidade do estado [e empresas] sobre os indivíduos não tem limites e ambos irão capturar toda a informação que possam, sobre pessoas e seu comportamento, sempre que houver oportunidade; ao mesmo tempo, sempre haverá indivíduos, parte de tal sistema estatal [e de negócios], que irão vazar tais operações para a sociedade, na medida que um indivíduo, pessoalmente, identificar que tais processos de captura de informação [e seu uso contra indivíduos ou grupos, naquela sociedade] estão fora do contrato social para privacidade, de forma ampla. e não há nada que os estados façam, agora ou daqui pra frente, que mude esta situação.
o estado contemporâneo, tanto quanto as empresas, é dataholic. e vai tentar, de todas as formas, mais cedo ou tarde, obter dados relativos ao comportamento dos cidadãos em todas as facetas da sua vida. bem vindo, pois à realidade, você que ia vivendo calmamente na e da ilusão da internet como um paraíso de serviços. mas, por um tempo, vamos deixar estas preocupações mais pessoais prá lá e nos ligar no que importa daqui pra frente, que é o futuro da internet.
john naughton escreveu sobre isso no domingo 23, no observer e os tres pontos de seu texto são expandidos abaixo na forma de teses curtas, comentadas.
1. o efeito snowden divide a rede em dois tempos, AS e PS. se havia um certo desconforto com a predominância americana na condução dos destinos da rede ante snowden, demonstrada pela constante arenga ao redor da ICANN [que vem de tempos imemoriais, como mostra este link], a rede post snowden sabe que o papel americano deve ser reavaliado e um novo arranjo global, na e para a rede, tem que ser construído.
2. a internet una, global, que fingíamos existir AS, acabou. porque a fragmentação da rede sempre foi uma ameaça, e a gente [eu, inclusive] sempre se defendeu disso promovendo um certo conjunto de direitos universais para uma cidadania da [ou na] web [e correspondentes possibilidades empreendedoras], que deveria ser um espaço global, sem limites geográficos e suas consequências. isso até que foi verdade por um tempo, mas não pode mais ser o caso, de forma ampla, na internet PS. o discurso dos EUA, de uma rede livre, aberta e fora do controle dos estados nacionais, tornou-se, face às revelações de snowden, pura e simples hipocrisia. e insustentável, daqui pra frente, nos foros internacionais.
3. a governança da nova internet, PS, será um desafio monumental. se nunca foi trivial manter um mínimo de coordenação na rede global, agora é onde o bicho vai pegar. se os EUA [ou corporações sob sua jurisdição] não devem exercer o domínio de parte significativa de decisões sobre o presente e futuro da rede, não se quer –tampouco- que outros governos, ao redor de agendas como a do eG-8 ou similar, detenham o controle ou influência decisiva sobre a rede e seus destinos. e aí, se não dá –e não dá- pra confiar em governos?
4. a internet PS não deveria ser governada pela ITU ou similar. a ITU é um organismo hierárquico de gestão de conflitos para um sistema hierárquico, de controle centralizado, como a telefonia e os espectros eletromagnéticos nacionais. não dá para imaginar que a rede, que por definição, construção e propriedades, é distribuída, descentralizada, seja gerida por um sistema cujas bases conceituais e de arquitetura ainda são as que foram usadas para ordenar telefonia e telegrafia. é um delírio. mas a ITU vem agindo qual camaleão quando o assunto é a internet. seu monopólio de 150 anos sobre as telecomunicações não pode e não deve, pura e simplesmente, ser estendido para a rede, que desde o princípio transformou tudo o que era domínio natural da ITU em meras aplicações sobre as infraestruturas e serviços de rede. e sem qualquer contribuição da ITU para tal.
5. a discussão sobre governança global da internet PS é inadiável. sem a primazia dos EUA no direcionamento da internet global AS, pela via da ICANN e outros mecanismos mais técnicos do que políticos, e sem a autoridade da ITU para gerir os destinos da internet PS, torna-se essencial discutir e criar um novo foro de amplitude global, que não seja exclusivamente governamental [ou seja, não deverá ser a ITU ou como a ITU] onde o presente e da evolução da rede sejam discutidos de forma aberta e transparente, com a representação de múltiplos pontos de vista, aí incluídos a sociedade civil organizada, global. abandonar a rede à gestão de uma organização internacional hierárquica como a ITU levará à redução da rede global a um conjunto de redes nacionais, geográficas, limitadas pelo espectro político de embate de forças que têm caracterizado o cenário político internacional. gerenciar a internet é algo muito mais complexo do que atingir o equilíbrio de forças entre as redes nacionais e sua interligação de acordo com visões locais e limitadas e de sede de poder local: a internet que queremos é global, assim como seus fluxos de dados, conexões, relacionamentos, interações e significados. por muito tempo, a internet era a esperança de que haveria um planeta uno, a TERRA, de todos, para todos, e não um monte de territórios quasi-tribais, cada um sob uma bandeira e interesses que não conduzem, no longo prazo, a uma civilização planetária interconectada e capaz de lutar pela sobrevivência dos ideias humanistas e, quem sabe, da própria vida humana na TERRA.
enquanto não é possível equacionar as teses 1-5, acima… o que não se dará no campo político/jurídico [apenas], mas vai exigir mudanças fundamentais na arquitetura da rede e em como propriedade e privacidade de dados é tratada…
6. todas empresas americanas de internet estão sob suspeita. e não por causa delas, mas porque o governo de lá pode lhes pedir qualquer coisa, sob sigilo total, e elas têm que entregar. leia este longo texto para ver como a máquina de espionagem dos EUA tem acesso a tudo que quer e este outro pra ver que ainda querem muito mais do que têm. eu e você podemos tentar nos esconder atrás do não temos nada a esconder, falácia usada por quem tem muito a esconder e não sabe, mas não vai demorar muito para que contratos públicos e privados passem a exigir que prestadores de serviço e provedores de produtos se comprometam, na forma da lei [e sujeitos a auditoria] a não usar sistemas de informação como google docs e office365 ou armazenar dados em dropbox e similares, não utilizar sistemas e provedores de informática-como-serviço sob controle de interesses americanos ou situados em território americano para prover serviços de qualquer tipo a partir deles e por aí vai. nada além do que a china já faz do ponto de vista de sistemas e dados de governo [além de vigiar toda sua web de perto] e que o irã faz pra tudo.
como consequência de 6, e enquanto não se restaurar o que se pensava ser alguma normalidade e neutralidade –ampla, sob todos aspectos, inclusive a propriedade e privacidade de dados na web global…
7. a oportunidade para o resto do mundo é imensa. economias de escala associadas ao alto grau de inovação [relativo ao resto do mundo] da economia de redes nos EUA praticamente excluíram os países periféricos [a europa está nesta classe] da possibilidade de criação de negócios web de classe mundial. a transição AS ~> PS reabre esta arena e, para os espaços que conseguirem, rapidamente, se articular para investir em soluções web [especialmente a corporativas] de classe global para seus espaços nacionais e regionais [geográficos ou políticos] há toda uma nova corrida competitiva em aberto, sem vencedores a priori. aqui é onde mora a oportunidade para conhecimento, tecnologia e capacidade realizadora de países como o brasil, se formos rápidos o suficiente para entender e aproveitar o novo cenário, enquanto ele perdura. tomara.
sobre o homem, snowden, o próprio pai diz que ele deveria ficar na rússia, que seria o lugar mais seguro. também acho [e qualquer um que já esteve em moscow deve sentir o mesmo]. dá pra imaginar uma vertente qualquer da espionagem dos EUA sequestrando snowden na bolívia e aparecendo com ele pouco tempo depois numa corte militar. é de se imaginar, ao mesmo tempo, que tal feito não seria um passeio ali perto do kremlin. e a rússia, afinal, deu um ano de asilo a snowden, o que nos leva de volta aos tempos de smiley’s people, digitais e conectados.
a seguir, cenas dos próximos capítulos. é esperar pra ver. enquanto isso, se você tem algo, digital, que quer manter só pra você, criptografe seus arquivos.
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o blog publicou uma série de textos, nas últimas semanas, sobre este assunto: governo dos EUA vigia todo mundo, EUA vigia todo mundo: e agora?, BRASIL, EUA, espionagem, problemas e oportunidades e, por último, privacidade, política, infraestrutura. boa leitura.