a câmara aprovou ontem à noite uma versão do projeto do marco civil para a internet [veja o texto final neste link] que mantém boa parte do ideário que originalmente norteava o projeto. se o senado aprovar o texto e a presidência o sancionar [o que parece muito provável, no momento], o brasil será o quarto país a ter uma lei específica sobre neutralidade de rede para a internet, precedido por eslovênia, holanda e chile. e o marco civil é sobre bem mais do que neutralidade de rede, e talvez por isso tenha levado cinco longos anos desde o começo dos debates sobre o tema até a primeira votação na câmara, e assim mesmo por força de urgência determinada pelo executivo, que teve que desistir de artigos de sua autoria, sob pena de ver o projeto reprovado.
se o senado não modificar o texto da câmara, como a coisa ficou na última? primeiro, a neutralidade de rede foi aprovada sem que houvesse a necessidade de decreto do executivo para definir o que ela é e como deveria ser implementada; se fosse por decreto, era o mesmo que dar um cheque em branco pro executivo decidir o que quisesse [e com quem quisesse] sobre o assunto. ao mesmo tempo, não se restringiu a liberdade dos modelos de negócios dos provedores de acesso, o que possibilita a oferta de serviços de variados degraus de velocidade e qualidade de serviço, o que está sendo comemorado pelas operadoras. a conjunção de neutralidade com liberdade de modelos de negócio quer dizer, em termos simples, que a operadora deve ser neutra [em relação a todos os tipos de acesso e conteúdo] dentro do mesmo pacote de serviços, mas podem ofertar uma gama variada de tipos de acesso, com velocidades e qualidades variadas [e preços também]. a combinação deverá ser aprovada pelo senado como saiu da câmara, a menos que alguma novidade radical apareça.
a liberdade de expressão e acesso à informação estão garantidas e as duas exceções são a obrigatoriedade da exclusão de material pornográfico [de provedores de serviços] no caso em que um [ou mais] dos participantes discorde de sua veiculação e o controle do acesso dos filhos pelos pais ou responsáveis. aqui não há nada que cause sério embate de posições e os dois preceitos também deverão ser aprovados pelo senado.
a resposta do governo brasileiro às denúncias de snowden [veja este, este e este links] era um artigo do marco civil dando ao executivo o direito de ordenar que sites que prestassem serviços a usuários brasileiros a guarda dos dados [e transações] destes usuários em território brasileiro. o artigo foi trocado por uma cláusula dizendo que seja lá onde estiverem os dados, valem, para os usuários brasileiros, as leis do brasil. o senado não deverá alterar este item, também; vai ser interessante ver como irão se desenrolar os primeiros processos que envolva um serviço fora do brasil [como weibo, o twitter chinês, ou vKontakte, o faceBook russo], sem escritórios no brasil… pra descobrir como tal dispositivo legal será usado [e que consequências terá].
por fim, a guarda dos registros: os provedores de acesso devem manter todos os dados arquivados por um ano e os de serviço por seis meses; os primeiros não podem guardar dados relativos ao uso dos segundos e, entre os segundos, uns não podem guardar dados dos outros. os dados devem ser mantidos em sigilo, e só podem ser liberados para fins específicos, por demanda judicial. a captura de todos os dados, de todos os usuários, de acesso e uso de serviços na rede, é um ponto de partida para criar um “big brother” oficial, uma grande base de dados de uso da rede e seus serviços [distribuída entre os provedores], à disposição do estado. os provedores passam a ter o problema de manter os dados sob sigilo; considerando o estado de segurança de informação mesmo nas melhores empresas da rede, sei não… acho que vamos ter problemas. e serão muitos.
talvez o senado devesse rever os termos dos artigos relativos à guarda de dados, determinando [por exemplo] que os provedores, instados por ordem judicial, teriam um dado prazo para começar a guardar os registros de determinados usuários [por um certo tempo], por suspeitas decorrentes de investigação formal em andamento. do jeito que está, parece que estamos criando algo muito parecido com o que snowden denunciou nos EUA: a capacidade de identificar o comportamento digital de todo e qualquer indivíduo, a partir de demandas do estado, com dados capturados a priori da investigação se iniciar. se isso não é parecido com o que a NSA faz nos EUA, não sei o que seria. em regimes [de vieses] totalitários… que a sorte nos livre de um, por sinal, seria um presente para os paranóicos lá das agências de informação. estivesse no senado, eu olharia o problema de guarda de registros muito de perto, junto com filósofos e juristas, pra gente, lá na frente, não se arrepender do que comemora que aprovou agora.
acima, minhas notas para a conversa com cristina coghi no CBN BITS DA NOITE de ontem, a n-ésima vez que discutimos o vai-e-vem do marco civil no rádio, programa que você pode ouvir clicando neste link. lá na votação do senado a gente volta ao assunto, que pode estar longe de se resolver de vez.