Por que somos tão poucos na internet brasileira

[Texto da série “Silvio Meira no G1”, publicado originalmente no G1, em 26/09/2006.]

Se fosse o caso de dar um conjunto de respostas simples, mas que não explicam muita coisa, sobre por que o Brasil ainda tem tão pouca gente na internet, a lista de porquês até que não seria muito grande: porque a geografia do Brasil é complexa; porque nossa infra-estrutura é precária; porque a população é pobre; porque nós não estamos fazendo bom uso de soluções sociais para criar mais acesso à comunicação e computação para quem não pode ter, em casa, um PC e um telefone; e, enfim, porque não temos políticas públicas para tratar – com a intensidade devida – o problema de inclusão digital no Brasil.

Esta lista dos porquês, se devidamente explicada, nos diria porque há menos de 15% dos brasileiros na rede, mais de dez anos depois do início de operação da internet comercial [a internet aberta, pois antes a rede só estava nas universidades e centros de pesquisa], um fracasso retumbante frente a outros países em desenvolvimento [o Chile e a Malásia têm mais de 40%]. Antes dos porquês, talvez devêssemos achar algo que deu certo por aqui, pra saber se temos alguma chance de mudar o cenário, no médio ou longo prazo, pois o curto prazo talvez já esteja perdido.

Pensando bem, um sucesso brasileiro muito importante é o controle da poliomielite: os primeiros surtos notificados da doença no país datam de 1911 e, mesmo havendo vacina disponível desde 1955, daí até a década de 1980, surtos de pólio eram sucedidos por “surtos de vacinação”. Vacinava-se parte da população afetada depois que o surto já estava em declínio e, como resultado, seguiam-se mais surtos, no mesmo ou em outros locais, e o ciclo continuava.

Entre 1976 e 1978, segundo dados da Organização Mundial da Saúde, haviam ocorrido no Brasil [cerca de 110 milhões de habitantes, na época] mais casos de pólio do que na Índia [quase 700 milhões de habitantes]. Alguma coisa precisava ser feita, e foi: criou-se, em 1980, o Dia Nacional de Vacinação, uma operação pública, complexa e sofisticada que leva gotinhas a todos os pequenos brasileiros em todos os recantos deste gigantesco, diverso e confuso país. Mas, uma vez que, no fim da década de 1970, todos os lados da moeda resolveram acabar com a poliomielite, a vacinação nacional, no mesmo dia, deu resultado imediato: dos 1290 casos em 1980, caímos para 122 em 1981 e apenas 45 em 1982, o menor número da história registrada da pólio no Brasil. Em 1994, décimo-quinto ano da operação, o Brasil recebeu a Certificação da Erradicação da Poliomielite. Sucesso, aplausos.

Fim da história? Nada disso; continuamos vigilantes e vacinando crianças, país adentro, doze anos depois. O preço da saúde é a eterna vigilância e não acho que, qualquer que seja o governo, se ainda houver algum risco para a população, a interrupção do programa sequer venha a ser considerada, pois bastaria um único caso de pólio para derrubar o governo, mesmo no clima de aceitar quase tudo que uma parte do país parece viver. Se você quiser saber mais, a história da pólio no Brasil está aqui.

Sem entrar na numeralha que explica os detalhes da pobreza e geografia brasileiras, talvez baste dizer que metade da população não tem renda para ter um telefone fixo, que seja, em casa. Só isso já deixa metade do nosso povo fora da internet, se a solução que estiver sendo considerada for “cada um por si”. Do ponto de vista da geografia, o país não é o mesmo em todo lugar: enquanto menos de 250 municípios com mais de 100 mil habitantes têm cerca de metade da população, há uns 40 milhões vivendo em cerca de 4000 cidades que têm menos de 20 mil habitantes. Quantas destas 4000 teriam ADSL de 1 megabit por segundo hoje e quantas, por demanda econômica, terão daqui a dez anos? A pergunta não é menos complexa se a mudarmos, nas cidades de mais de 100 mil que têm banda larga [e não são todas], para: quantos habitantes de suas periferias [e não são poucos!] estão na internet e podem usá-la, no seu dia-a-dia, como mecanismo de acesso a conhecimento, serviços, compras, entretenimento e a oportunidades [de trabalho, inclusive]?

Guardadas as proporções, as deficiências de acesso à informação, hoje, na era da informação e do conhecimento, têm a mesma -ou maior- gravidade dos problemas causados pela pólio antes do nosso sucesso na vacinação. Do meu ponto de vista já vivemos, e viveremos cada vez mais, do que podemos fazer com nossos cérebros; e uma das fontes mais preciosas de material para alimentá-los é a capacidade de busca e análise de informação, aumentada pela internet de maneira jamais conseguida por nenhuma outra ferramenta na história, com exceção da capacidade de ler e escrever.

Aliás, vamos muito mal neste departamento: apenas 25% dos brasileiros com mais de 15 anos domina a habilidade de ler e escrever. Na população, 8% são analfabetos “de pai e mãe”, como se diz em Taperoá, e 38% são analfabetos funcionais [podem até “saber” ler, mas não sabem “o que fazer” com o que lêem]; só 20% dos brasileiros completaram o ensino fundamental e médio. Para cada um de você, caro leitor, há outros três que não conseguiriam chegar até aqui, neste texto. Isso é uma tragédia nacional, pior do que o pólio, e muito pior do que só termos 14% das casas com internet.

A pergunta que poderia responder os porquês é… e então, o que fazemos primeiro? A resposta é… tudo, ao mesmo tempo, e o tempo é agora, antes que percamos para sempre uma vasta maioria dos brasileiros. Em resumo, precisamos botar todo mundo na internet e usá-la – intensamente, e para tudo – como mecanismo educacional; precisamos fazer isso em escala social, o que implica em tratar o problema da pobreza como parte da solução – muitos dos mecanismos de acesso têm que ser compartilhados e subsidiados, para quem não pode pagar; precisamos tratar o problema nacionalmente – um número muito grande de localidades e grupos de indivíduos só poderão entrar na rede, por muito tempo, via satélite, que custa caro e que vai precisar, mais uma vez, ser subsidiado.

E como fazer tudo isso? Nenhum segredo… precisamos de políticas públicas, em larga escala, no país inteiro, para todos os grupos de risco – pessoas e comunidades que, por si próprias, não resolverão seu problema de acesso –, como fizemos, enquanto país, no caso da pólio. Deixado como está, o problema irá “se resolvendo” por si próprio, tão lentamente quanto nos últimos onze anos. Se estivéssemos tentando seriamente, tanto quanto nos quinze anos em que erradicamos a pólio, talvez só faltassem quatro anos para só ficar fora da rede quem realmente quisesse.

E olha que as crianças não deveriam ter escolha, como não tiveram no caso da vacina. Internet na escola deveria ser mandatória, como lápis, papel e livro. A única salvação dos responsáveis pela falta das tais políticas é que os condenados por sua inexistência não sabem que estão condenados e os que sabem não entendem por que… o que deveria levar-nos, nós que achamos que entendemos, a uma campanha tão intensa como a da vacinação, pelo menos. E é isto que esta coluna vai fazer, entre outras muitas coisas.

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