depois de aprovado na câmara, o marco civil da internet brasileira está no senado, em três de suas comissões, e recebeu 41 emendas. a maior parte das intervenções dos senadores só ajusta o texto dos deputados, mas algumas tornam mais radical o espírito de certos artigos, como o aumento do prazo de coleta de dados de acesso e serviço por cinco anos, e não um ano [acesso] e seis meses [serviço] como está no projeto que saiu da câmara, que já é ruim neste aspecto. e por que é ruim? nós já falamos disso neste texto, publicado logo depois da votação da câmara. a coleta massiva, indiscriminada, de informação sobre acesso à rede e utilização de sistemas de informação é uma dupla afronta à constituição brasileira, que garante, ao indivíduo, privacidade e intimidade.
poderíamos rezar uma novena inteira, aqui, sobre as bases legais –constitucionais, no caso- para proteção da privacidade e intimidade. mas talvez seja pouco, porque, afinal, a lei pode ser mudada [e é isso, exatamente, que está fazendo o marco civil, mudando o contexto legal]. é muito melhor, logo na partida, pensar como amartya sen: é a demanda pública que tem que inspirar a legislação, e não o contrário. segundo sen…
…direitos humanos podem ser vistos como demandas éticas; não são primariamente “legais”, apesar de inspirarem legislação… [e] sua implementação pode ir muito além da legislação; [além disso,] uma teoria de direitos humanos não pode ser confinada no modelo jurídico em que frequentemente se tenta encarcerá-la.
dito isto, a proteção à intimidade é um direito fundamental, segundo o artigo 12 da declaração universal dos direitos humanos e o artigo 11 da convenção americana dos direitos humanos, ambas assinadas pelo brasil. nossa constituição de 1988 declara invioláveis a intimidade, a vida privada, honra, imagem, casa e dados [no sentido amplo] das pessoas, salvo “ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.
a o detalhamento deste “salvo” constitucional é dado pela lei 9.296, de 1996, época em que nem se pensava em internet, web, redes sociais e comunicações móveis, especialmente na escala corrente. mesmo assim, a referida lei já parte dizendo, no seu artigo 1, que…
A interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigação criminal e em instrução processual penal, observará o disposto nesta Lei e dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça.
este parágrafo foi escrito noutra era de mediação tecnológica das interações humanas à distância; do ponto de vista das atuais infraestrutura, serviços e aplicações que definem a rede e as conexões, relacionamentos, interações e os processos [em rede, na rede, com a rede, para a rede] de criação de significados e conhecimento, não há dúvida de que “comunicação telefônica”, fosse escrita hoje, cobriria todos os dados relacionados a todos os termos em azul neste parágrafo.
como se não bastasse, a lei 9.296 continua, no parágrafo único do mesmo artigo 1, dizendo que…
O disposto nesta Lei aplica-se à interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática.
nos termos “daqueles tempos”, este parágrafo certamente inclui a internet como um todo, em todas suas formas, interpretações e usos… e isso certamente é verdade se tal interpretação for estendida para os “nossos tempos”. e aí entra o artigo 2 da mesma lei, onde está escrito que…
Não será admitida a interceptação de comunicações telefônicas quando ocorrer qualquer das seguintes hipóteses: I – não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal; II – a prova puder ser feita por outros meios disponíveis; III – o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de detenção.
a parte em azul do texto acima é suficiente para entender que a lei 9.296, quando cria as condições [dentro do contexto de “comunicações telefônicas”] para defender a sociedade de potenciais ilícitos cuida, ao mesmo tempo, de proteger aqueles contra os quais não haja qualquer presunção de culpa. no marco civil que veio da câmara, os artigos 13 e 15 obrigam provedores de acesso e aplicações a capturar, guardar [por um ano e seis meses, respectivamente] e manter sob sigilo os registros de conexões à rede e ao uso de aplicações [respectiva e exclusivamente].
lá em 1996, a interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática só era admitida se houvesse indícios; hoje, no marco civil pelo qual lutamos, a coisa foi generalizada, o que em tese coloca todo mundo sob suspeita [nos termos da lei de 1996], invade a privacidade e intimidade de todos e cada um… e parece que ninguém [ou pouca gente] está aí pra isso.
há algo errado, muito errado no ar, a ponto do veterano senador pedro simon, ícone da luta pela democracia, liberdade e privacidade… ser o proponente da emenda que aumenta a coleta de dados de acesso e uso de um para cinco anos!…
sabe o que foi que a europa decidiu, recentemente, em relação a um assunto parecidíssimo com este, a guarda de registros de ligações telefônicas por dois anos? que a diretiva 2006/24/EC, que obrigava operadoras a guardar dados de tráfego e localização para o acesso à rede e os serviços de emeio e telefonia por um período entre 6 e 24 meses [semelhanças com o marco civil não são mera coincidência]…
…excedia os limites da proporcionalidade [o equilíbrio entre uma ameaça e a severidade da medida tomada para mitigá-la]…
porque, ao…
…requerer a retenção de dos dados de acesso e uso e permitir que autoridades competentes de cada país a eles tivessem acesso, a diretiva interferia, de forma particularmente séria, com os direitos fundamentais da privacidade e proteção de dados pessoais.
tal resultado era pedra cantada há tempos, como mostra uma detalhada análise de lukas feiler [The Legality of the Data Retention Directive in Light of the Fundamental Rights to Privacy and Data Protection, European Journal of Law and Technology, Vol. 1, Issue 3, 2010] na qual se chega a uma conclusão rigorosamente igual àquela do tribunal de justiça da união europeia, ao detonar a diretiva. não me resta muita dúvida que, levantando aqui o mesmo questionamento que se fez na europa, e dada a similaridade dos marcos de proteção à privacidade e intimidade no país, o STF chegará à mesma conclusão que seu similar europeu.
será que nós deveríamos passar o marco como está, só porque há uma reunião mundial em são paulo, depois da páscoa? e chegar lá com um texto que tem [entre outros problemas] dois longos artigos, aprovados e sancionados pela presidência, cujos similares [de 2006…] acabaram de ser repelidos pelo tribunal de justiça da união europeia, anteontem?… seria o nosso um caso de pressa demais, depois de esperar muito tempo para agir, como está sendo o processo legislativo que gera o marco civil? será que a gente não aprende?
será que, no brasil, tutelados pelo estado qual bebês por babás, não aprendemos a viver, cada um, sua vida e, especialmente em rede, como parece que vai ser daqui pra frente, pra todo o sempre, criar e manter a vida de cada um e, entre e com todos, a sociedade? será que temos, ou teremos, sempre, que renunciar ao cada um pra ter um todo?… não, acho que não.
sem um cada um, privado e, ainda mais, íntimo, não vai haver um todo sustentável. parece que a humanidade, como conhecemos, foi construída inteira a partir de assimetria de informação [nem todos –só uns poucos- sabem quase tudo sobre alguns] e esquecimento [informação desaparece, com o tempo]. tecnologias e sistemas de informação e comunicação interferem nisso e nos deixam quase paralisados, como se a perda da privacidade e intimidade fosse um preço natural a pagar pelo admirável mundo novo das facilidades tecnológicas. não é, não tem que ser, não pode ser; o que as denúncias de snowden trazem à ribalta não é a supervisão como norma, mas a privacidade como tal.
e, só pra você saber o que nos espera se ficarmos parados, esperando, e ainda assim como um mero exemplo -pois muito mais informação sobre seu comportamento será armazenada se a coisa passar como está- toda vez que você acessar a rede seu provedor vai gravar um registro similar a este…
…e cada vez que você mandar um emeio [um serviço na rede, como muitos outros], seu provedor de serviço guardará um registro como o mostrado abaixo, que ficará por anos a fio [dependendo do que for aprovado] à disposição de quem de direito… e sujeito a vazamentos muitos. isso inclui, claro, a mineração dos seus dados por gente que você nem imagina quem é… mas que tem todo o interesse do mundo, em você.
se você chegou aqui e passou o texto inteiro se perguntando… mas o que é mesmo privacidade e intimidade?… e sem entrar em detalhe de leis que as definem? o professor josé cavero diz que…
privacidade leva em conta a esfera da vida individual na ausência do público, ou seja, onde as relações sociais exteriores ao núcleo familiar permanecem resguardadas, confinadas no núcleo familiar, repugnando qualquer intromissão alheia; a intimidade, ainda mais restrita que a privacidade, é o espaço [considerado por cada pessoa] como impenetrável, intransponível, indevassável e que, portanto, diz respeito único e exclusivamente à pessoa.
e o que é que dados têm a ver com isso, em especial os seus dados, os dados que podem resultar de suas ações no espaço político, econômico, social, cultural, digital? tudo. de acordo com andrés ollero tassara…
Sea cual sea el alcance del derecho fundamental a la protección de datos de carácter personal, parece ya poco dudosa su condición de derecho autónomo; difícilmente cabría reducirlo a recurso instrumental en beneficio de otros derechos. Si inicialmente llegó a considerárselo como una ocasional dimensión específica del clásico derecho a la intimidad, ahora más bien pudiera ocurrir lo contrario, al ser en gran medida las exigencias de la intimidad reconducibles a la protección que el nuevo derecho ofrece.Todo ello resalta la indudable dimensión histórica de la delimitación, o incluso surgimiento, de los derechos.
um resumo, rápido? a proteção dos seus, meus, dos nossos dados pessoais, a garantia do sigilo da presença e atividade em rede é um direito autônomo e, ao invés de subsidiário, é gerador do direito à privacidade e intimidade. simples assim. o que torna os artigos 13 e 15 do marco civil uma afronta, como já dissemos, à constituição brasileira e à demanda pública por privacidade e intimidade. faria bem, o senado, em repudiá-los. feito isso, pra começar, a gente começa a discutir e revisar os detalhes do resto do texto.