Esta entrevista saiu no extinto Jornal da Tarde, do Grupo Estado de São Paulo, no primeiro quadrimestre de 1998. Na época, eu representava os usuários e era secretário executivo da primeira composição do Comitê Gestor da Internet no Brasil, o cgi.br.
Do lado do JT, o entrevistador era José Nêumanne Pinto; veja, no fim da conversa, que ele "explica" ao leitor o que é um "e-mail"…
[o texto está na íntegra, sem qualquer modificação do original; os negritos são nossos].
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Sílvio Meira, representante dos usuários brasileiros na Internet, diz que o Brasil não é subdesenvolvido, mas, sim, subinformado, porque os despossuídos não têm acesso a computadores conectados na Internet. José Nêumanne.
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Como o senhor encara essa onda de protestos em relação ao uso da Internet para pornografia, inclusive infantil?
A Internet é uma espécie de um espaço novo, a ser identificado e até habitado pela sociedade em geral. Na verdade, estamos falando de uma coisa que precisa ser "civilizada" ainda. Então, o que está acontecendo? Não devem ter provocado nenhuma grande revolução na história da humanidade os primeiros desenhos libidinosos impressos? A mesma coisa está ocorrendo com a Internet: a sociedade está fazendo uso de um espaço à disposição dela. Existem coisas obviamente ilegais. Em sã consciência, não conheço ninguém que vá defender a disponibilidade aberta de material de pedofilia na Internet ou coisa realmente agressiva ao que podemos chamar de moral, ética e bons costumes. Por outro lado, a fúria de censura de algumas pessoas também é totalmente desprovida de base. À época da ditadura militar, usava-se tinta para escrever contra o regime, mas isso não levou este regime a prender os fabricantes de tinta nem mandar derrubar todos os muros da cidade para não serem pichados ou destruir as árvores do País para não ter mais matéria-prima para papel.
Ter acesso à Internet seria a mesma coisa, então, que ir ao cinema ou comprar um jornal ou uma revista?
Na Internet, de uma certa forma, você decide o que quer ver, pois o editor é você. Se não quiser ver pornografia, não veja. Há, obviamente, o problema de qualquer mensagem poder entrar na casa das pessoas, tornando, então, necessário cuidar do acesso das crianças. Mas também isso se torna possível com a instalação de sistemas de filtragem existentes em softwares (programas de computador) que filtram Web sites (páginas da Internet) com conteúdo pornográfico. Como sempre, isso não é 100% bullet proof (à prova de bala). Mas é muito bom e tem tido um sucesso bastante razoável nos lugares onde está sendo usado. É muito melhor do que tentar censurar ou controlar a Internet. De resto, tem uma outra coisa aqui que é extremamente interessante para ver nesse espaço em particular: de uma certa forma, a Internet é mais ou menos incontrolável, a menos que você faça uma lei universal para alguma coisa.
Não é possível alcançar a comunicação via Internet pelo direito, uma vez que o direito é nacional e a Internet é transnacional?
Exatamente. Se você me proíbe de fazer alguma coisa, eu procuro um servidor em Lichstenstein. Aí você proíbe lá, eu acho outro em Zâmbia. Aí, você proíbe lá, eu me instalo nas Ilhas Caiman, e por aí vai. A Internet é um sistema exagerado (no bom sentido) de democracia. É interessante o utilizarmos para analisar os limites da democracia, porque, pela primeira vez na história da humanidade, o controle editorial, o poder, está na mão do cliente, e não do fornecedor. Você pode decidir fazer uma entrevista comigo no jornal, ou não, mas eu posso inserir meu pensamento na Internet e, a partir de outro computador conectado, qualquer pessoa terá acesso a ele. A visão do mundo no espaço da Internet é ampla, dispersa e sem controle.
Já dá para sentir algum efeito institucional desse tipo de acesso à democracia?
No caso brasileiro, a penetração ainda é baixa. Aqui, os despossuídos são aqueles que juntamente deviam ter mais acesso ao sistema e ainda não têm. Alguém já teve a idéia do Cyber Café, mas ela é bem burguesa. Por que não pensar no Cyber Boteco? Esta seria uma coisa tão interessante quanto o Cyber Café, mas poderia funcionar em qualquer lugar, onde houvesse uma conexão telefônica ou mesmo um telefone público. Imagine que as companhias do sistema Telebrás dissessem o seguinte: "Para conexões da Internet, vamos deixar as pessoas usarem os telefones públicos de graça". Não sei exatamente como funcionaria, mas isso seria alguma coisa em favor da eqüidade do acesso a novos e modernos meios de comunicação para todo mundo. Hoje, os países são divididos em dois tipos: os informados e os subinformados. O Brasil não é um país subdesenvolvido, pois produz a nona economia do mundo, mas é subinformado, sim, porque não temos acesso a tudo que deveríamos estar tendo em matéria de informação.
Por exemplo: não temos acesso a quê?
Não dispomos no Brasil de um governo transparente, ou seja, que realmente ponha seus problemas e suas informações na Internet. Também não temos empresas transparentes. Há coisas aqui que demandariam muito mais transparência. Dou-lhe o exemplo da Secretaria de Política de Informática do Ministério de Ciência e Tecnologia, um excelente modelo de como começar a fazer a coisa. Ela põe todos os documentos de política (de informática), todas as palestras do secretário, na realidade todas as transparências a sua disposição, se o usuário pedir esse material no Web site deles. Isso é um exemplo de transparência de governo. Mas lá está faltando começar a fazer com que as pessoas possam entrar nela sem necessariamente ter de ir a Brasília. Este será, obviamente, o próximo passo a ser dado.
O governo entrar na Internet?
Essa secretaria já está na Internet: www/mct.gov.br/sepin. Só que seria necessário facilitar seu acesso ao público, com a formação de um processo na rede para atingir o governo diretamente pelo computador conectado, sem precisar preencher papel, ir a Brasília nem perguntar para ninguém. Outro exemplo: se você "acessa" o Web site do IBGE – IBGE.gov.br -, vai tomar conhecimento de uma quantidade de dados impressionante. É um dos mais completos Web sites que eu conheço com dados sobre qualquer país. Outra coisa que está andando de uma forma extremamente rápida no Brasil é a declaração de Imposto de Renda pela Internet. Em nenhum outro país do mundo está sendo feito o que estamos fazendo aqui neste particular. Isso não é trivial. Mas precisamos aumentar a dispersão e a absorção disso tudo pela sociedade. Esta é basicamente a questão da eqüidade. O problema não é unicamente criar redes mais rápidos, com mais multimídia, de maior qualidade, etc., mas, sim, propiciar mais rede para mais gente.
Como se faz isso?
Uma das coisas que se está tentando fazer nessa direção, mas tem sido extremamente criticada, e eu acho que precisava ser vista com olhos diferentes, é a aquisição de computadores ligados em rede para as escolas públicas pelo Ministério da Educação. As pessoas precisavam pensar melhor antes de dizer: "É um absurdo o MEC instalar 100 mil computadores porque as escolas nem têm giz." A escola no futuro não vai ter giz. Se ela não vai ter giz, por que não começamos a testar a escola sem giz agora? Se formarmos, primeiramente, as pessoas que vão formar essas crianças para usar tecnologia digital no aprendizado, teremos uma qualidade muito maior da formação básica, do ensino primário e secundário brasileiros, no curto prazo. É o processo de queimar etapas. Aumentar a eqüidade significa instalar computadores nas escolas, nas bibliotecas e, sobretudo, ligá-los em rede a serviço do cidadão comum. Como é que você diminui a fila do INPS para o cidadão comum? Imagine que tivéssemos, nos centros das grandes cidades brasileiras, nas estações de trem, de Metrô, centros de acesso público à Internet, onde as pessoas pudessem navegar por um conjunto de Web sites mais ou menos limitado. Vamos imaginar que fosse isso. Do ponto de vista tecnológico, não é algo complicado de fazer. O Metrô de São Paulo pode deixar você navegar pelo INPS, pela Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, para reservar um horário para consulta médica, matricular seus filhos pela Internet, entrar no site do IBGE, ver a previsão do tempo para São Paulo, ler as últimas notícias do Jornal da Tarde, para dar alguns exemplos. Na hora em que começássemos a ter instituições do porte do Metrô de São Paulo, associadas à Telesp, dando o pontapé inicial dessa idéia de Internet para mais gente, o que, no fim, vai significar Internet para todo mundo, o próprio espaço de negócios na Internet aumenta. Não haverá mais competição ao provedor de acesso, mas, sim, uma indução de utilização de um novo espaço que vai criar novos usuários, ou seja, pessoas mais capacitadas a lidar com o mundo do jeito como ele está sendo revolucionado agora. É preciso também dotar o País de uma política ativa de informática, uma política capaz de reduzir os preços dos computadores no Brasil. Aliás, acho que isso a política de informática vem fazendo. Tem gente criticando a forma e a velocidade de como isso está sendo feito, mas este processo leva tempo.
Que efeitos este panorama inteiramente novo vai ter na vida das pessoas comuns?
As empresas terão no cliente seu maior parceiro. A abertura das empresas vai desde eu entender à distância qual é o processo que a empresa usa para fazer o tênis que eu calço até poder interferir na condução dos processos daquela empresa, se for o caso. Cada cliente poderá encomendar produtos específicos para seu gosto e seu tamanho. O processo de produção em massa possibilitará tranqüilamente que eu diga o seguinte: "Eu tenho um pé 44 e outro 45." Este é o meu caso particular, por acaso. Então, eu gostaria de entrar no Web site da Reebok e encomendar um tênis 44 e o outro 45. Por outro lado, a responsabilidade das empresas perante os clientes e a sociedade em geral aumentará consideravelmente. Se, em meu computador, eu tiver acesso à Bolsa de São Paulo, posso interferir, fazer minhas aplicações, sem precisar de dealers (negociadores no mercado de capitais), de absolutamente ninguém. Evidentemente, isso poderá nos levar a um data smog (uma neblina de dados).
O que é essa tal neblina de dados?
É um problema gigantesco mas também é a solução. Significa que, se conseguirmos transformar os dados desse data smog em informação e se eu puder ainda processar isso para se tornar conhecimento, ou seja, "está acontecendo essa coisa aqui por causa daqueles dados ali", e eu vou tomar essa decisão em relação ao dinheiro que tenho na Bolsa, ou ao lugar onde vou botar meus filhos na escola, ou à cidade onde vou morar, aí, sim, teremos mudado completamente a sociedade. A Internet não é um meio de comunicação nem uma ferramenta, mas um espaço. Se colonizarmos esse espaço com liberdade e responsabilidade, uma espécie de um ideal da Revolução Francesa redivivo, "liberdade, igualdade e fraternidade", teremos reconstruído o mundo, tornando-o "colapsado", ou seja, sem fronteiras e com tal geografia eu posso estar mais perto de um amigo que esteja em Paris do que de pessoas que morem no meu prédio. Nesse mundo, os interesses políticos, econômicos ou de consumo estarão sendo transacionados efetivamente de maneira global. Eu diria que a Internet é a fronteira limite da globalização e é por isso que há tanto interesse nela hoje, apesar de ela não ser, obviamente, um espaço econômico de porte perante os outros que existem, como a indústria automobilística ou a indústria de defesa, de aviões e assim por diante. Mas eu não tenho a menor dúvida de que está sendo criado um novo mundo, onde muitas instituições que temos hoje serão completamente modificadas, algumas vão até desaparecer.
Vai ser muito mais exigido de sua inteligência e de sua experiência do que na sala de aula?
Exatamente. Aí é que vai entrar a capacidade do homem de definir qual é o nível que ele quer interagir com esse troço. No semestre passado, demos aqui no Recife um curso que estava todo na lnternet. Havia alunos em Londres, em Nova York e num bocado de outros lugares pelo mundo afora. As aulas eram dadas na quarta-feira, mas esses caras as viam na quinta, na sexta e recebíamos e-mails (endereço eletrônicos, via lnternet) com as perguntas deles. Você perde mais ou menos o controle do seu tempo. É como, de repente, ter um telefone celular implantado no seu cérebro, com áudio, vídeo e texto. Se não tomar cuidado, você perde o controle da sua persona. Isso é um troço que vamos ter de estudar sobre esse e-mail no futuro. Não tenho a menor dúvida de que vamos ser submetidos a uma influência gigantesca, muito maior do que o livro impresso de Gutenberg, desse espaço mediático em toda a interação humana daqui para a frente. Eu não vejo nenhuma outra coisa mais radical do que isso acontecendo no mundo.