de onde virá o trabalho do futuro?

o problema dos números de emprego de julho, 1.555.298 demitidos e 1.397.393 contratados, é muito mais grave do que a subtração dos dois, que dá uma perda de 157.905 postos de trabalho no mês, o pior resultado da história dos dados [coletados desde 1992]. é muito provável que a intersecção entre os conjuntos de demissões e contratações, comparando os CPF, seja pequena. inclusive quando se considera múltiplos meses na equação… o que pode significar que vai haver muita gente desempregada por muito tempo.

no ano, até julho, o país perdeu 494.386 empregos. em 12 meses, perdemos 778.731 vagas. e isso quando o brasil precisa criar cerca de 1.500.000 novas vagas líquidas por ano, até 2020, só para absorver a população que está atingindo a idade de trabalhar [segundo a OIT].

faça as contas: nos últimos 12 meses, não criamos, no total, perto de 2.3 milhões de empregos. se 2015 continuar como vai, será um deficit de 2.5 milhões de postos de trabalho no ano. e 2016 não aponta para nada melhor. é muito provável que uma crise social de severas proporções esteja batendo à porta. mesmo que eu e você estejamos empregados, desemprego em larga escala afeta todos, inclusive os que estão trabalhando. se vier a se tornar um problema crônico entre os mais jovens, então… o caldo para tensões e crises sociais está formado. isso sem falar de milhões de adolescentes desempregados, em situação de risco, potencialmente à disposição para atividades de alto risco.

enquanto isso, depois de negar o problema por anos, pois que ele estava se instalando desde a crise de 2008, artificialmente transformada numa marolinha… o governo federal e os políticos no poder começam a descer do altar e reconhecer que temos problemas. sim, temos problemas, e não é de agora. e eles são muito mais graves do que os políticos de plantão estão querendo reconhecer. e, sim, não há solução para o problema dentro do arcabouço no qual ele foi criado.

o mito do desenvolvimento baseado quase só no mercado interno é parte do nosso problema. se origina numa visão limitada de mundo, que desde a ditadura vargas Capturegera políticas de substituição de importações ou de “conteúdo nacional”. os negócios sustentados por tais esquemas estão fadados ao fracasso, como agora, atrelados à sorte dos vôos de galinha do consumo interno. sem investimento estrutural em educação -que é a infraestrutura das pessoas, que são o substrato lógico dos negócios- energia, comunicações, vias terrestres, marítimas, ferroviárias, aéreas… -que são a infraestrutura física do país, e o substrato concreto dos negócios-, o nosso negócio, como país, parece ser uma aposta eterna em que tudo vai dar certo, que todas as estrelas hão de se alinhar e nós seremos os escolhidos para vencer. não é bem assim que acontece. não é assim que tem acontecido, e vez por outra, com essa linha de pensamento, rola um 7 a 1. até porque não há como evitar: veja, ao lado, onde está a infraestrutura brasileira, entre 148 países analisados no global competitiveness report [2013/2014]. se não acreditar, pegue uma rodovia federal por aí. e boa sorte.

ou nós trabalhamos para resolver muitos dos nossos problemas estruturais ou não teremos tantos empregos como deveríamos ter no curto, médio e longo prazos. e isso, como já se disse, terá consequências não triviais. até porque podemos estar no ponto de partida de uma revolução a mais, derivada das ondas de inovação em TICs, que já duram 5 décadas. depois de hardware [anos 70, medindo numa escala de penetração econômica, e não de disponibilidade nos laboratórios], software [anos 80, idem], redes [anos 90; a internet comercial é de 1995], móvel [anos 2000, o iPhone é de 2007] e de internet das coisas [esta década], há claras evidências de que podemos estar no começo de uma revolução de robótica. se for verdade, isso quer dizer que a indústria que sobreviverá será cada vez mais automatizada, porque terá que ter mais qualidade e performance a custos mais baixos, porque objetos produzidos pela indústria, quer ela queira ou não, são commodities, hoje.

dados da inglaterra [entre 1871 e 2011] mostram que, no longo prazo, as mudanças causadas por novas tecnologias criam mais trabalho do que destroem. Captureacontece que, na maior parte deste período, os ingleses estavam à frente do processo global de destruição criativa; desde o século 17, já tentavam estabelecer um regime de ampla competição industrial interna, com variados graus de sucesso. a revolução industrial não foi “só” uma mudança econômica, mas uma transformação social radical, que levou dezenas de anos para se estabelecer. seus resultados são tão dramáticos quanto: trabalhadores braçais eram 23.7% da força de trabalho em 1871, contra 8.3% em 2011, queda de quase 2/3, ao mesmo tempo em que professores, profissionais de saúde e de cuidados pessoas saíram de 1.1% para 12.2%, um múltiplo de 11 no período. houve muita gente que conseguiu, face ao período de tempo em que o trabalho braçal foi se extinguindo, sair de um para outro trabalho que exigia força física. mas é bem provável que as condições e a remuneração relativa de tal trabalho tenha piorado mesmo no curto prazo, de lá pra cá.

enquanto isso, aqui, a indústria enfrenta, primeiro, um problema de conteúdo: a intensidade tecnológica do que a indústria brasileira produz [o conhecimento embutido nos seus produtos] está caindo há duas décadas, como mostra o gráfico abaixo.

Capture

esse é mais um daqueles índices que o governo de plantão, qualquer que seja, costuma refutar, dizendo algo como “é claramente impossível que o brasil esteja abaixo da jordânia em complexidade industrial”. claro que é. em tese. mas a avaliação é independente e, mesmo com seus problemas, se a gente aparecesse em sexto lugar, logo abaixo da suécia [dois milhões de habitantes a menos do que a cidade de são paulo; gasto em educação, como porcentagem do PIB, igual ao brasil;complexidade industrial 18 vezes maior], haveria fogos em brasília. país semi-desenvolvido tende a rejeitar todas as avaliações em que sai mal na foto. fato.

o maior sucesso comercial do brasil, alardeado aos quatro ventos internos e externos, é o agronegócio. sabe quanto é o agronegócio no PIB brasileiro? olhe a foto abaixo, tirada em algum lugar do cerrado e se pergunte quantos trabalhadores estão envolvidos nela. mais ou menos de 50? pois é. negócios de classe global, no campo, não geram emprego. não é de lá que vai vir a solução para geração dos postos de trabalho que o futuro do país precisa.

colheitadeiras plantadeiras cerrado

em números redondos, o agronegócio responde por cerca de 5.5% do PIB nacional em 2014; era 7.5%, há dez anos. no mesmo período, a indústria caiu de 30 para 23.5%; dentro do setor industrial, a parte de transformação [fábricas, em oposição construção civil, por exemplo] caiu de 18% para menos de 13%. e serviços cresceu quase 5% no período, para 71%. nos empregos formais do país, quem emprega quantos? dos cerca de 50 milhões de empregos formais de 2013, o agronegócio empregava 3%, a indústria [incluindo construção civil], 24% e serviços, 73%. considerando apenas transformação, a indústria representava 16% do emprego formal em 2013.

é razoável assumir que, por mais que o agronegócio brasileiro cresça, não é ele que vai gerar empregos de qualidade, formais ou não, na quantidade que o país precisa; afinal de contas, só há cerca de 1.5 milhão de postos de trabalho por lá, hoje, que é o que precisamos por ano, a mais. também é razoável assumir que, em função de novos e melhores níveis de automação no campo, tal número de empregos diminuirá, ao invés de aumentar. nos EUA, a fração de empregos em agricultura é, hoje, 1.6% da força de trabalho e a previsão é de 1.2% em 2022. vamos nos preparar, então, para perder empregos no campo. e nas fábricas?… bem, nos EUA, hoje, a indústria gera perto de 16% do emprego. aqui, são 8 pontos percentuais a mais. mesmo se a gente olhar só as fábricas, são mais de 5 pontos a mais. e eles estão prevendo uma queda de 30% do trabalho fabril por lá até 2022. má notícia pra quem, aqui, acha que vai gerar mais emprego nas fábricas brasileiras, dentro das amarras de falta de competitividade -estruturais, diga-se de passagem, que o país tem hoje e que, se tudo correr como parece, podem piorar muito no futuro próximo. onde é que o emprego vai aumentar nos EUA [e na inglaterra, e no mundo]? no setor de serviços. nos EUA, vai chegar em 80.1% de todo o trabalho em 2022.

o setor de serviços, nos EUA e inglaterra, fala inglês. é muito mais educado e tem uma infraestrutura muito melhor do que o brasil. em parte, provê serviços para o mundo. como, no caso dos EUA, de quase todo o software que eu e você usamos. a apple não é uma empresa de hardware. ela não fabrica nada. o mesmo vale para google. ambas são serviços que desenham produtos e serviços; os abstratos eles mesmo implementam, os concretos alguém -competitivo globalmente- faz para eles, para o mundo, para nós. com a marca deles. o mesmo vale para facebook, salesforce, microsoft, amazon… e quem mais você pensar. a inglaterra é a capital dos serviços financeiros globais e o centro da revolução de serviços financeiros inovadores baseados em TICs [procure por #fintech]. e, só pra você ter uma ideia, cerca de seis bilhões de pounds [ou R$33B] foram investidos em pesquisa e desenvolvimento no reino unido, em 2013, por agentes externos ao país. pesquisa realizada para terceiros, mundo afora, como serviço. funciona, lá. e emprega um monte de gente. compare tal feito com esta entrevista da suzana herculano-houzel e as dificuldades de manter um laboratório no brasil. eu conheço o problema de perto, vivi décadas na academia, ainda estou lá. é um inferno.

a índia descobriu o setor de serviços de conhecimento há décadas. e criou e implementou uma política de serviços globais de, e intensivos em software que, hoje, representa 32% de todas as suas exportações. a índia exporta mais serviços do que os EUA, em porcentagem do total de negócios com o exterior. e mais que 3 vezes o total do brasil. e agora eles decidiram que vão fabricar coisas. e que a indústria deles será tão competitiva como a da china. pra começar, a foxconn [maior empregador privado chinês] está prometendo investir US$5B em 12 fábricas que empregariam até 1 milhão de pessoas até 2020. na índia, a indústria é 31% do PIB. hoje. imagina se o tal do make in india dá certo.

enquanto isso, o brasil tem uma política industrial de informática [tocada no ministério de ciência e tecnologia, que nunca teve poderes de fato para tal…] desde 1972 que, até aqui, gerou… déficits de dezenas de bilhões de dólares anuais balança comercial. só nos últimos três anos foram mais de US$100 bilhões. a razão? não há quase nenhum produto [no setor de TICs] brasileiro competitivo globalmente. e não há quase nenhum “desenho” brasileiro, pensado aqui, que possa ser feito da china [ou qualquer outro lugar] para o mundo e gerar resultados para seus criadores brasileiros. e, pra cereja do bolo, não há nada, desenhado no mundo, que possa ser feito no brasil, para o mundo, a menos que situações cambiais altamente favoráveis [?] depreciem o real de tal forma que se compense as múltiplas fontes de falta de competitividade nacional.

somando tudo o que já foi dito… conclui-se que [a menos que alguém tenha dados e provas em contrário] estamos numa grande enrascada. deitados sobre o berço nada esplêndido de uma política industrial da ditadura vargas [1937-1945], atrelada a uma legislação trabalhista da mesma era, remendada até se tornar cada vez menos consistente e cada vez mais um empecilho à competitividade do trabalho brasileiro, ela mesma apenas uma pequena parte do imenso emaranhado legal nacional, que ainda conta com o precioso auxílio de nossa histórica falta de educação e infraestrutura, associadas a um estado sofre de problemas estruturais de incompetência na formulação de políticas e estratégias, de gestão, operação, governança, contratação, acompanhamento e avaliação… e que ainda assim consome 40% do PIB… temos tudo para dar errado.

só falta perdermos o resto da década lembrando o passado [e getúlio, e outros populistas] e peronizando o país, deixando de gerar 10 milhões de postos de trabalho, achando que o mundo inteiro está errado e, no fim, todos vão entender que somos nós que estamos certos, e que todos devem se alinhar ao nosso nível de ineficiência, ineficácia e incompetência, em geral, para serem tão felizes como somos [quase empatados com os EUA!… mas vá ver onde está o méxico, lá…]. e deixar essa coisa de performance e competitividade pra lá. afinal, pra que tudo isso?

sei não. em algum lugar, tem uma armadilha no parágrafo anterior. nossa sorte é que o mercosul, este arranjo supostamente econômico é um corpo sem espírito, segundo o ministro mangabeira unger, é uma espécie de rede de zumbis. se uma argentina acordasse de seu pesadelo histórico, resolvesse se tornar o que poderia ser, o que até já foi, iria passar a perna na gente de uma hora pra outra. mas, como getúlio e perón pareciam acreditar que “vencer não era superar os inimigos e sim adaptar-se ao ambiente”… vai ver nosso negócio é se adaptar ao contexto que aí está. e ver o que acontece. e quem não estiver afim que se mude. brasil, ame-0 [como é] ou deixe-o [como está]. não sei porque eu acho que isso [também] não vai dar dar certo. nunca deu. principalmente para a galera que verdadeiramente ama o lugar e sabe que deixá-lo como está não é uma opção a ser considerada.

getulio-vargas-petroleo

o desenvolvimento industrial liderado pelo estado, na ditadura vargas e depois, quando o brasil talvez não tivesse outro meio para criar uma base industrial, não pode ser considerado um erro. a china fez o mesmo. o erro é insistir numa política que dá sinais de exaustão há décadas e que, mesmo assim, é seguida como se tivesse sido trazida da montanha como tábuas da lei, a nunca serem desobedecidas. tanto quanto negar o valor e resultado de avaliações independentes, sejam quais forem, os países semidesenvolvidos tendem a 1. não entender o que está acontecendo e o que vai acontecer [como e ao mesmo tempo do que os desenvolvidos] e, mesmo quando entendem, 2. começam a agir sobre o contexto que deveriam ter visto em 1. tarde demais [ou nunca] e quase sempre na forma de alguma lei e, por fim, 3. persistir na ação tardia e, aí, imutável porque lei, quase impossível de mudar dentro de seus emaranhados legais, mesmo quando os agentes que provocaram a ação já deixaram de fazê-la há muito, porque descobriram outros objetivos e formas e meios de chegar lá.

sob tal ótica, não foi um erro criar uma estatal de petróleo. erro, parece claro, é a petrobrás 1. continuar estatal [sem qualquer mecanismo acompanhamento, avaliação e responsabilização, como sabemos agora] e 2. focada em petróleo e não em energia [do que petróleo é uma pequena parte, com boa probabilidade de desaparecer nas próximas décadas]. vargas acertou. quem errou foram todos os que tiveram a oportunidade, desde então, de redefinir o modelo e o papel da petrobrás e não o fizeram.

o mesmo vale para os correios: o nosso, estatal, teve um lucro de R$9.9 milhões em 2014 [depois de uma manobra contábil para esconder um provisionamento de R$1.08 bilhões]; seu fundo de pensão, aparelhado por um partido político, tem um rombo de R$5.6 bilhões [que será pago pela empresa e trabalhadores]; o correio inglês, privado, dá lucro [R$3,7 bilhões, o último], competindo até na entrega de cartas. faz o mesmo que o correio estatal fazia, e mais. quem serve melhor à sociedade?… os nossos correios ou o royal mail?

e por aí vai. não são estatais como os correios, petrobrás e eletrobrás que hão de criar os empregos que precisamos. muito menos estatais focadas no mercado interno. ou indústrias [privadas!…] de substituição de importações. ou mesmo indústrias de classe global: estas, cada vez mais automatizadas, tendem a gerar, como já vimos, menos, e não mais empregos. para um ponto de vista interessante sobre o tema, leia Why Are There Still So Many Jobs? The History and Future of Workplace Automation.

pra terminar, que já se disse muito, parece que há uma saída, pelo menos: tornarmo-nos muito competitivos em serviços de classe global. isso vai levar tempo e depende de muitas mudanças por aqui, a começar por educação. como é uma política e estratégia de longo prazo, não vai ser resolvida no mandato de A, B ou C. não será política de partido ou de governo; para funcionar, tem que ser de estado, de sociedade. e longo prazo, aqui, é décadas. umas duas ou três, que é o tempo que se gasta para montar e operar um sistema educacional de classe global. coisa que a gente não está fazendo agora. e que, pra cada dia, mês e ano que a gente atrasar… vai levar duas ou três décadas a partir do dia em que a gente começar, a sério e de uma vez por todas. é daí que virá o trabalho e os empregos do futuro.

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Este é o quarto post de uma série dedicada ao metaverso. É muito melhor começar lendo o primeiro [aqui: bit.ly/3yTWa3g], que tem um link pro

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Silvio Meira é cientista-chefe da TDS.company, professor extraordinário da CESAR.school e presidente do conselho do PortoDigital.org

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