Silvio Meira
vez por outra a gente é tentado a fazer previsões para o ano que vem, como se houvesse uma descontinuidade radical entre o que está acontecendo agora e o que poderá vir a rolar depois do 31 de dezembro. nunca gostei de pensar o futuro nestes termos. o futuro –qualquer futuro que vai acontecer- já está rolando, em parte, agora. seja como imaginação, ou planos, ou protótipo ou, quem sabe, já tenha até acontecido há algum tempo e ninguém tenha notado. ou, em muitos casos, tenha acontecido, mas não era seu tempo ainda –deu errado- e, de repente, vai voltar a acontecer. aí, é melhor a gente falar do futuro imediato, e não do ano que vem. qual é a diferença entre o futuro imediato e o futuro, só? é que o imediato é o que vai se dar nos próximos poucos anos, digamos 1, 3, ou 5. e o futuro pode se dar a qualquer tempo, entre amanhã e o fim do mundo. de qualquer forma, mesmo que se tenha um certo grau de certeza sobre o que poderia vir a acontecer daqui a algum tempo, quem faz previsões sempre se arrisca muito, pois um grande número de coisas pode atrapalhar o desenrolar das ideias, projetos, processos, tecnologias, tudo. a eleição de um presidente aqui, a queda de outro acolá, um tsunami lá. ou pode não haver futuro nenhum, se depender de stephen hawking. mas isso já é outra história.
neste e nos próximos textos vamos apostar nos futuros mais próximos que dependem –de uma ou outra forma- de tecnologias da informação e comunicação. neste, vamos olhar rapidamente um dos gráficos que a galera de TICs mais analisa, todo ano, procurando sinais de possíveis futuros, o hype cycle for emerging technologies do gartner group. a versão 2016 desta visão de mundo é mostrada na imagem abaixo.
se você clicar na imagem, vai para uma explicação do próprio gartner sobre seus detalhes e o contexto de 2016, em particular; se clicar aqui, vai para uma explicação sobre o gráfico, em si, e seu processo de construção. como você está vendo, a primeira “coisa” que aparece na imagem, como um triângulo –que quer dizem adoção em escala em10 anos ou mais…- é “smart dust”. e isso nos leva a explicar algo relevante sobre o gráfico: ele não trata de tecnologias, em si, mas de tecnologias que têm um potencial de mudança, no mercado.
smart dust está no começo da subida do innovation trigger; isso não quer dizer que a tecnologia é nova [o conceito é de 2001; a primeira implementação prática é de 2007] ou que está sendo testada; mas que as primeiras aplicações práticas que têm grande potencial estão a caminho. no caso, como mostra a imagem abaixo, já se consegue colar smart dust nos nervos de um modelo animal [um rato, no caso] e tanto enviar como retirar informação de lá. o potencial, como discutido no artigo Sprinkling of neural dust opens door to electroceuticals, de agosto de 2016, é imenso. mas está dez ou [muito] mais anos de aparecer num nervo humano, meu, pra testar ou controlar alguma coisa.
o segundo ponto da curva do gartner é 4D printing. que é uma forma de 3D printing que resulta em objetos que têm um comportamento armazenado, que será ativado quando for combinado com alguma coisa. como água, por exemplo, ou os fluidos do seu trato intestinal. é interessante notar que quase tudo que se chama de impressão 3D, hoje, é na verdade impressão 2D aditiva; múltiplos nível de impressão em duas dimensões criando um objeto em três dimensões. elementar e rudimentar, ainda, para o pode vir a ser a síntese de objetos tridimensionais complexos de grande porte e em muito larga escala, como drones militares, usando um chemputer, ficção que você pode ver clicando no vídeo abaixo. essa aí não está em lugar nenhum do gráfico do gartner… e talvez não esteja, nem tão cedo.
é bom dizer que um grande número de pontos que aparece no gráfico do gartner desaparece sem deixar rastro, pois não resiste à passagem pelo pico das expectativas inflacionadas, o cume do gráfico, onde muita gente acha que aquilo vai resolver tudo… e depois vê que não resolve quase nada. e aí não tem mercado. não acho que este é -ou será- o caso do nosso primeiro sinal do futuro imediato, a internet das coisas, que aparece no início do pico do gráfico, como IoT Platforms, plataformas para a internet das coisas.
coisas, aqui, são dispositivos que têm, em alguma intensidade, capacidades de computação, comunicaçãoe controle, simultaneamente, como indica o gráfico abaixo. se não tem sensores ou atuadores que lhe permitem características de controle, um objeto está no plano de computação e comunicação, é uma máquina em rede; se não tem capacidade de comunicação, é um sistema de controle digital; se não tem capacidades computacionais, é o que antigamente se chamava [e ainda existem, hoje] sistemas de telemetria. coisas, aqui pra nós, têm as três características, e todas elas digitais. a gente até poderia dizer que coisas, no sentido de internet das coisas, são objetos digitais completos.
mas é preciso dizer que as coisas, no verdadeiro sentido da internet das coisas, são na verdade outras coisas -objetos físicos, sem qualquer das características acima, que são envelopados por uma camada digital que tem as características da imagem. e isso vai de uma lâmpada e uma fechadura até uma turbina e um veículo inteiro. daqui pra frente, neste texto, coisas são a combinação de objetos físicos quaisquer com sua camada digital, normalmente inseparáveis. lá na frente, pode ser que tal inseparabilidade seja uma propriedade dos objetos digitais nativos, mas isso fica pra outras história.
há um conjunto de características desejáveis para uma coisa em rede, que este autor descreveu há anos. uma combinação dos conceitos de everyware, de adam greenfield, e spime, de bruce sterling; tais características são mais uma vez revistas, aqui, e são: 1. cada e toda coisa está [obviamente, mas não necessariamente de forma permanente] na rede; 2. a forma de uma coisa se conectar à rede é [quase sempre] wireless; 3. a vasta maioria das coisas é múltipla [pode haver uma infinidade de cópias] mas 4.cada coisa é identificável de forma única [ou seja, pode ser endereçada] e 5. obedece ao princípio SFO [search, find, obtain; dá pra procurar, encontrar e obter uma cópia dela, se existir]; mas 6. as características de computação, comunicação e controle de tais coisas são [quase sempre] imperceptíveis [a “olho nu”] porque 7. as coisas estão embarcadas, embutidas, associadas ou, de resto, fazem parte de objetos físicos e, também por causa disso, 8. as coisas têm interface [quase sempre] “invisível”. ainda mais, coisas 9. carregam seu próprio plano de construção, uso e reciclagem e, por fim 10. uma coisa guarda ou deposita na rede seu rastro histórico.
1 – 10, acima, não são uma definição de como as coisas são, agora, mas de como elas deveriam ser -ou serão- quando derem certo. “dar certo”, aqui, quer dizer ter uma penetração -ali no futuro- como celulares e smartphones têm, hoje, aqui. isso vai levar alguma coisa entre 5 a 15 anos. o que quer dizer que a lista de 10 “desejos”, acima, é uma grande oportunidade para criar, inovar e empreender. e isso não vai se dar, necessariamente, no mercado de pessoas e casas, primeiro. é muito mais provável que comece -em escala, porque começar já começou…- pelas empresas e, em particular, pelas grandes empresas. a imagem abaixo é o chute da forrester para o potencial de IoT na indústria e empresas: o quadro ainda é muito disperso, mas já dá pra ver que produção industrial -fábricas- e logística são duas áreas muito quentes agora e no futuro próximo.
é quase certo, também, que não haverá um BYOT [bring your own thing…] nos ambientes corporativos, de uma hora pra outra. você não vai levar sua câmera IP, ou sensores de temperatura e humidade, para o prédio em que trabalha. nem os caminhões de entrega do seu trabalho serão informatizados -em parte- por coisas que os próprios trabalhadores vão inserir no processo. isso pode até funcionar na partida, de forma ingênua, mas não vão passar pelo crivo dos dez princípios sistêmicos que mostramos a seguir, que tendem a definir o que as coisas -quer no trabalho, nas lojas e ruas, em casa ou em você- vão ser.
as coisas não existem soltas, por aí. e não são, ou não deveriam ser, simplesmente, sensores e atuadores em rede. isso seria diminuir muito o que se espera de #IoT, the internet of things, e reduzir seu potencial ao da velha e boa telemetria. para que todo seu potencial possa ser capturado, as coisas têm que fazer parte de um sistema, de uma ou de um conjunto articulado de plataformas.
mas uma das tendências, para tudo que se faz em informática, desde sempre, é olhar e pensar primeiro do ponto de vista físico. e deixar as consequências para depois. mas o que acontece quando vemos coisas como parte [possivelmente virtual] de um sistema? essa é a verdadeira tendência que está começando a emergir agora, na gênese da internet das coisas. sem medo de errar, pode-se dizer que as coisas-como-tal, descritas acima, passarão muito em breve a ser vistas como coisas-num-sistema, o que vai possibilitar arranjos e soluções muito mais interessantes, sofisticados e sustentáveis.
pra isso, teríamos que olhar para as propriedades de cada coisa, vistas como parte de um sistema e cada uma delas, não por acaso, como um sistema de informação e suas propriedades. e tudo isso em rede, claro. aí… cada coisa tem [ou deveria ter] 1.um conjunto de funcionalidades bem definidas; 2. a tais funcionalidades se atribui certas características de disponibilidade e 3. performance; estas características quase sempre estarão associadas tanto ao substrato físico de uma coisa quanto ao seu invólucro digital… e normalmente só farão sentido em tal combinação; ainda por cima, 1+2+3 devem ser fornecidas de forma 4. segura.
aqui a gente faz uma pausa nesta lista de propriedades para dizer que segura é tudo o que a internet das coisas não é. e que a tentativa de levar ao mercado serviços -baseados em coisas- que não passam pelos mínimos testes de segurança vai levar a muitos problemas, gerar desconfiança e embates legais que deverão prejudicar, severamente, muitos fornecedores. porque os clientes e usuários já estão vivendo parte do caos e tendo prejuízos. um experimento feito por um especialista, há pouco, mostra o estado de [in]segurança da internet das coisas: uma câmera IP foi infectada 98 segundos depois de “entrar no ar” [na rede] e, cinco minutos depois, estava programada para ser um agente de um botnet da classe mirai. um destes botnets, em outubro passado, derrubou o provedor DYN DNS, no maior ataque DDoS de [por enquanto] todos os tempos, com cerca de 1.1 terabit por segundo de tráfego.
imagine seu negócio saindo do ar durante horas por causa de um grupo de adolescentes que assumiu o controle de uma miríade de máquinas de lavar e secar, TVs, fechaduras e roteadores, sem falar em lâmpadas e câmeras. pra você e as dezenas de milhões de usuários afetados, não terá a menor graça e pode, sim, haver prejuízo e riscos reais como efeito colateral. com vidas em jogo, inclusive. pode não ter graça, mesmo. tudo porque as coisas dominadas pelos garotos eram inseguras. muito inseguras.
se dermos conta disso, então teremos que ter 5. usabilidade, combinada com 6. resiliência. usabilidade é um conceito intuitivo; no fundo, diz que o uso de uma coisa não deve demandar capacidades intelectuais e conhecimento incomuns do seu público alvo, que poderá, de forma simples e satisfatória, usar algum objeto de forma eficaz e eficiente. e isso tem que se aplicar ao ciclo de vida do objeto, concreto ou virtual. pense na usabilidade dos seus objetos e dê uma nota de zero a dez, pra ver como ainda não temos a usabilidade que deveríamos ter [nos smartphones, por exemplo]. resiliência é a habilidade de, mesmo diante de certos tipos de falhas, manter uma parte da funcionalidade a serviço do usuário. combinar usabilidade e resiliência -ao mesmo tempo- não é trivial. e quase nada no mercado consegue chegar nem perto disso. e não vai ser fácil na internet das coisas.
a sétima propriedade das nossas coisas em rede deveria ser 7. manutenibilidade e evolução: coisas dispersas por aí precisam -ou precisarão- ser mantidas e evoluir, como parte e no contexto de um sistema. olhe para o que aconteceu nos smartphones e imagine o tamanho do problema que teremos com coisas. embarcadas, embutidas, associadas ou, de resto, fazendo parte de objetos físicos. por causa disso, as coisas terão bugs como qualquer outro objeto digital. muitos destes bugs terão consequências lá atrás, no nosso item 4, causando problemas de segurança. e você certamente vai querer que o seu fornecedor conserte o backdoor da fechadura da sua casa. e a empresa que fornece sua água encanada vai querer que se corrijam as falhas de segurança em válvulas, bombas e sistemas que custaram cem, mil vezes mais do que sua fechadura mas que foram, do ponto de vista de engenharia de software, projetados e construídos com o mesmo cuidado. ou falta dele. isso quer dizer que as coisas que darão certo, do ponto de vista prático e tanto nos ambientes industriais e de negócios como nas casas e para as pessoas, têm que ser pensadas e construídas primordialmente dos pontos de vista de segurança, manutenção e evolução. falta muito pra gente chegar lá.
e ainda temos mais três pontos, quando se olha para coisas como sistema, para dar conta. primeiro, 8. escalabilidade: de um lado, das coisas em si, da possibilidade de haver muitos objetos digitais do mesmo tipo, em muitos lugares, sem qualquer tipo de conflito; por outro lado, quando se trata coisas-como-sistema, da necessidade da plataforma [vamos falar disso em um próximo texto] que sustenta as coisas dar conta do eventual sucesso -ou seja, de haver muitos, muitos deles na rede- de uma certa classe de objetos digitais. o pior que pode acontecer, pra quem vai ter coisas de todos os tipos ao seu redor, é elas terem problemas de performance ou indisponibilidade porque a parte de sua funcionalidade [por exemplo] que depende de sua plataforma não está disponível.
se tudo der certo, o número de coisas na rede vai crescer muito, como mostra a previsão da IHS, abaixo. nada menos do que cinco vezes em uma década. e como o nome internet das coisas já diz, isso é em rede. e escala é o que vai contar. mesmo que seu negócio, hoje, só seja a plataforma [mesmo sem você saber] para dezenas ou centenas de coisas em rede, ele só vai sobreviver se você ganhar escala. imaginando que tudo, na rede das coisas, vai crescer por fatores de 5, 10, 15, 100… 1000, nos próximos dez anos, essa é a sua chance de ganhar escala, se você tiver uma plataforma para tal.
depois a gente fala de impacto da internet das coisas nos modelos de negócios, porque este vai ser um novo capítulo da história dos mercados, de impacto talvez tão grande quanto o da própria internet. agora, só pra gente tentar entender o que vai acontecer no mercado de coisas, é olhar a imagem abaixo, da zinnov...
…que mostra uma duplicação do investimento em IoT em cinco anos, e quase tudo em hardware, por sinal, o que é natural na construção de uma infraestrutura de informação [como é o caso de uma que, ainda por cima, tem uma alta densidade de sensores e atuadores na periferia].
aqui vale um lembrete pra nós, brasileiros [especialmente os que vão tentar empreender em IoT]: por um número de razões de nossa própria construção e [in]competência históricas, o brasil é inviável como produtor e fornecedor -de classe mundial- de qualquer classe de hardware. não entre nessa. mesmo que o governo [qualquer que seja…] apareça com um discurso sobre a importância de hardware na internet das coisas, e diga que tem uma política pra isso… saiba que o brasil não fez [e não está fazendo, e não deverá fazer… infelizmente] o dever de casa para ser competitivo no setor, seja em computadores, smartphones ou… coisas. chips, nem pensar. e boa parte das razões descritas em um texto que eu escrevi para “comemorar” os 40 anos da reserva de mercado, em 2012, continua valendo. tá aqui neste link, vá ler. depois não diga que eu não avisei.
nosso penúltimo ponto para que as coisas funcionem como sistema é uma combinação, a fusão dos fatores que, em cada [nicho de] mercado, fará as coisas entrarem lá e, em última análise, darem certo, fazerem sentido naquele cenário em particular: 9. investimento estrutural, custo/benefício, time to market, roll out, tempo [esperado] de vida, tempo [esperado] de evolução para um patamar de custo/performance/benefício muito mais atrativo…
por fim, mas não menos importante ou relevante, 10. as coisas que serão inseridas em contextos de negócios não aterrissam em um vazio informacional, um campo plano para se construir tudo do zero; de padarias a fábricas de automóveis e aviões [e às coisas que estes fabricam] já há sistemas de informação nos lugares, tanto hardware como software e, em muitos casos, há vastas operações de “telemetria” que se confundem, na cabeça de quem as tem, com uma certa -talvez mais simples e rudimentar- internet das coisas. em tais cenários e contextos, a integração com objetos, produtos, serviços e sistemas legadosserá absolutamente fundamental para garantir o sucesso de iniciativas relacionadas à internet das coisas.
taí. dez pontos sobre como as coisas-em-si terão que ser e, mais detalhadamente, dez pontos como as coisas-como-sistema provavelmente serão, para “dar certo”. se você achou que ficou longo e complexo… é porque o problema é não só de muito grande dimensão e complexidade, ele também é complicado e será caótico em muitas organizações e ambientes de negócio. e eu nem contei 10% do que acho que pode vir a acontecer neste cenário das coisas, no futuro, porque o tempo é curto e, quem sabe, a paciência, do leitor, também.
no próximo texto sobre os sinais do futuro, vamos falar sobre plataformas e mercados em rede, que serão essenciais para que a própria internet das coisas aconteça. até lá.