CRIAR um TEMPO
para o FUTURO

em tempos de troca de era, há uma clara percepção de que o tempo se torna mais escasso. porque além de tudo o que fazíamos antes, e continuamos fazendo agora, temos que fazer o que tem que ser feito agora para o futuro, ao mesmo tempo refletindo sobre o que deixar de fazer entre o que fazíamos antes, ainda estamos fazendo agora, mas quase certamente não precisaremos fazer depois. este conflito entre futuro, presente e passado se desenrola no único ponto onde poderia acontecer, o presente. sob múltiplos pontos de vista, o presente é o único tempo que existe, especialmente nos negócios. mas a realidade não é tão simples e o que vamos propor, a seguir, é que -e porque e como- devemos criar um tempo para o futuro, nas instituições, uma proposta que, de resto, vale para a economia e sociedade.

  1. a noção de tempo não é trivial para ninguém. acho que você não ficaria surpreso se eu afirmasse que há debates filosóficos intensos e não resolvidos sobre o que é o tempo. pois há; do ponto de vista do ordenamento dos eventos no tempo, há duas teorias básicas, que por total falta de imaginação foram denominadas… A e B.

    em A, os eventos são ordenados no futuro, presente e passado e, claro, mudam de posição… indo do futuro ao passado, pela via do presente. em B, os eventos são ordenados pelas relações entre eles -como antes ou depois de- e não se movem. sem entrar em detalhe, o presentismo é parte das teorias do tipo A, enquanto o eternalismo é parte das teorias B. mas, claro, tudo muito mais complexo e difícil do que esta simples explicação.

  1. o tempo é tríbio; e o presente é uma máquina de consumir possíveis futuros. o tempo que tratamos aqui pode ser representado em termos de A ou B, e deve ser pensado como o tempo das pessoas, dos negócios, o tempo pragmático. imagine uma máquina pontual, o presente, que tem como entrada um cone virtual de possíveis eventos -sem nenhuma ordem, a priori-, que podemos chamar de futuro.

    lá no futuro, claro, não há ordem nos eventos ou, por outro lado, qualquer ordem pode ser atribuída aos eventos. aqui e agora, por outro lado, a capacidade do presente é finita, do ponto de vista de processamento de eventos que estão no futuro, o que significa que não há como o futuro acontecer como um todo, de repente. inclusive porque o futuro contém um número quase certamente infinito de eventos [talvez aleph-ômega eventos… mas isso é outra história].

    ainda por cima, como há eventos, no futuro, que decaem por múltiplas razões, muitos deles jamais chegarão a ser consumidos pelo presente. ou seja, não vão acontecer. por isso que o futuro é de possibilidades. quando um possível evento do futuro é consumido pelo presente ele se torna realidade -enquanto é consumido- e, imediatamente após, se torna realização, história. e fará parte do passado.

 

  1. as organizações estão contaminadas pelo presente. a vasta maioria dos negócios está permanentemente no modo de consumo de eventos que vêm do futuro… e sobre os quais quase nunca fizeram escolhas ou têm opinião, sequer. sem influência sobre que eventos consome, e em muitos casos, nem como os consome, os negócios quase que funcionam num modo zumbi: operam, ainda, mas nem mortos, tampouco vivos.

    sem capacidade de escolher o que fazer, alguma hora, como que -mas não- de repente, não terão mais futuros para consumir. ou, pior, não terão um presente –sua própria máquina– para consumir os futuros que ainda lhe são direcionados. isso tem relação com um grande número de fatores, inclusive o regime de trimestres que passou a ditar o tempo dos negócios; mas é algo mais fundamental, profundo.

    como sofredores de certos tipos de danos cerebrais que são causados por acidentes, os negócios não se lembram do passado [mesmo muito recente] e, em muitas condições, mesmo quando conseguem imaginar o futuro, não conseguem se imaginar nele.

 

  1. a prática da teoria de cada negócio é a sua máquina de consumir futuros. mas a maioria dos negócios, indagada, não sabe qual é a sua teoria, seus porquês. quase todos sabem executar um conjunto de processos que, estudados, certamente darão origem a uma teoria daquelas práticas, sobre a qual raramente os negócios refletem. se sabe-se fazer x, e se x vende hoje, faz-se x até o mundo se acabar.

    o que complica essa equação é que as evidências do passado –futuros que um dia já foram consumidos pelo presente– dizem que a demanda por x, para qualquer x, quase sempre se acaba antes do mundo. e aí quem se acaba, por não ter imaginado fazer y, um possível futuro, é o negócio.

    e este é o problema: y, uma das próximas demandas do mercado, está no universo de possíveis futuros, mas não necessariamente passará pela máquina do presente do negócio, a menos de um acaso monumental… ou de uma capacidade de prospectar e escolher seus possíveis futuros. mas isso só será possível se o negócio escapar das garras do “presentismo”.

 

  1. a pressa inconsequente é a principal causa e consequência do “presentismo”. eita: presentismo, na filosofia do tempo, não quer dizer o que queremos dizer aqui. pra nós, presentismo significa viver apenas no e do presente, sem consciência, entendimento, percepção e prospecção de possíveis futuros. como diria o matuto, é viver da mão pra boca, como se não houvesse amanhã. e talvez não haja mesmo.

    viver no e do presente cria -e vem de- uma pressa inconsequente, que é uma correria sem estratégia. a falta de estratégia é um dos principais problemas de quase todos os negócios. é por falta de estratégia –ausência da capacidade de fazer escolhas sobre o futuro– que os negócios, em sua maioria, têm apenas a pressa do presente e, quase sempre, nenhum futuro.

    a pressa inconsequente resulta de não se pensar -nem considerar, apropriadamente- o futuro… e não pensar no futuro libera toda a energia do negócio para a pressa da execução, agora, de seja lá o que for, tomando, sobre o como, decisões que parecem ser sobre os quês. é uma armadilha, normalmente fatal. porque por mais x que haja agora… há um suprimento finito de x [os futuros-padrão que o presente consome].

 

  1. quem tem uma teoria para o negócio, tem tempo para o futuro, lá. a teoria de um negócio explicita o problema que o negócio resolve, o contexto onde o problema é resolvido e as competências essenciais para tal; estas facetas da teoria devem estar acopladas entre si e com a rede do negócio, devem ser conhecidas e entendidas por toda a organização e devem ser testadas o tempo todo.

    é aí que entra a análise da capacidade de execução do presente e a prospecção do futuro; o presentismo trava as empresas no que tem que ser feito agora, para agora, em função do que se sabe agora; mas qualquer teoria para o negócio, bem aplicada na prática e testada o tempo todo, certamente testaria a viabilidade do negócio em relação a possíveis futuros, que há de prospectar.

    uma boa teoria para qualquer negócio inclui o futuro e sua execução deve tomar providências práticas para que o futuro seja tratado como parte da execução… o que quer dizer que o presente tem que ser estendido para levar possíveis futuros em conta, porque, sem pensar o futuro, não há tempo para trazê-lo para o presente.

 

  1. e futuros, nos negócios, são experimentos, e não imaginação. ainda mais quando têm o potencial de mudar o negócio de alguma forma. para isso, é preciso estender o presente -a máquina de executar futuros, que os transforma em passados- criando instâncias do presente que não são parte do presentismo do negócio. putz!… como assim?… retorne ao artigo 5º e por favor leia de novo. essas instâncias do presente que não são parte do presentismo são excursões do presente ao futuro, como simulações e laboratórios que testam possíveis futuros, na forma de experimentos, sem incluí-los no presente do negócio.

    as extensões do presente são prospecções e testes de hipóteses que poderiam vir a fazer parte da teoria do negócio, observadas e/ou encantadas como parte de estratégias mínimas viáveis que ainda não fazem parte da máquina do presente do negócio, executadas em baixa resolução e escala, fora do modelo de negócio,… até o ponto em que, validadas, são escolhidas como futuros -pela estratégia– e atraídas pela máquina do presente e executadas lá, no núcleo operacional da organização.

    inovação depende disso tudo, acima. às vezes não há nenhuma nova tecnologia sendo criada ou introduzida no processo ou sistema, porque, mais que tudo, é de mudança de comportamento que estamos tratando. e há um detalhe fundamental a considerar: o que porta os futuros, em qualquer negócio, é muito mais o que acontece fora dele, às vezes muito além de suas portas, do que os episódios experimentais no presentismo. os futuros, quase sempre, vêm do futuro e quase nunca acontecem primeiro no nosso negócio, mas quase sempre com -os clientes de- outros negócios.

 

  1. o tempo que se cria, no presente, para o futuro, cria potencial de inovação. inovação é mudança de comportamento de agentes, no mercado, como fornecedores e consumidores de qualquer coisa. se o presente do negócio consome futuros-x e produz passados-x, e vive [bem…] disso, quase sempre não há incentivo para inovar. porque, afinal, mudar pra que, se tudo está tão bem?

    mas talvez não esteja, caso se considere o presente estendido como parte do tempo e horizontes do negócio. se não conseguimos identificar, lá, um estoque de futuros-x, que equivale a um mercado para presentes-xhello, houston, we have a problem. um problema ainda maior se não temos como identificar o fenômeno, se nosso presente não se estende para o futuro.

    mas, quando estendemos o presente, e conseguimos identificar o fim ou a escassez de futuros-x, quase certamente teríamos como identificar a presença de futuros-w, -h, -y, e começar a transformar nosso presente para consumir estas novas oportunidades. as transformações estratégicas vêm dos possíveis futuros da organização, mas acontecem no seu presente, o que demanda tempo, que só existe no presente.

 

  1. sem estratégias que indiquem porque tempo tem que ser criado, ele não o é. por causa do presentismo, o tempo é um dos recursos mais escassos das empresas. porque a máquina do presente pode se tornar tão estreita quanto o menor tempo para executar as funções básicas do negócio, e quase nenhuma delas, quase nunca, está relacionada a inovação.

    a razão principal é que a miopia do negócio não consegue ver que é inovação quem emite as notas fiscais do futuro. se a estratégia –a capacidade de escolher futuros– do negócio não considera nada além do seu presente… futuros só acontecem por acaso. não que, havendo uma estratégia que leva futuros em conta tenhamos só certezas lá.

    nenhuma organização tem poderes o suficiente para controlar os possíveis futuros a ponto de só passar -no seu presente- pelos que escolhe ou desenha. as estratégias são necessariamente incompletas, e no máximo paraconsistentes. uma imensa parte dos futuros que se tornam presente num negócio qualquer emergem inesperadamente, sem qualquer controle da organização ou mesmo sem ser parte da mais feroz imaginação de seus líderes ou quem quer que esteja encarregado de escolher futuros possíveis.

    mas há um elemento que não pode ser descartado em nenhuma estratégia: deve-se criar tempo, estendendo o presente, para prospectar e experimentar futuros. criar, por outro lado, os por quês para tal, comunicados e entendidos por todo o negócio, é não somente importante e relevante, pode ser -e normalmente é- vital. não por acaso, isso exige mudar a teoria do negócio, o que pouquíssimos negócios conseguem fazer a tempo.

 

  1. criar mais tempo no presente cria mais futuros no futuro. e espaço, também. a máquina do presente dos negócios funciona no seu espaço competitivo e raramente está sozinha, lá. um dos diferenciais competitivos mais sustentáveis de um negócio qualquer é a criação de espaço-tempo, no mercado, que não seja identificado como tal pela competição. porque [quase] todos os movimentos, de todos os competidores, no presente, são imediatamente identificados e contrapostos pela competição que tenha um mínimo de competências.

    estender o presente cria espaço-tempo futuro, aumenta a percepção do negócio sobre si mesmo, a competição e potenciais mudanças de contexto, e faz isso de forma quase sempre imperceptível pelos agentes do mercado. mas não só: aumenta a largura de banda dos movimentos, tentativas e experimentos que a organização poderá realizar, de forma também desapercebida pelo mercado.

    tal espaço-tempo futuro será vital para os ensaios que o negócio realizará como parte do processo de criação das soluções e resultados que têm o potencial de criar as bases para sua sobrevivência às mudanças não só no seu, mas nos mercados como um todo. e isso, em tempos de transição, em que todas as instituições têm que focar boa parte dos seus esforços em sobreviver às rupturas nos seus e em outros mercados, não é pouco. é quase tudo.

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Silvio Meira é cientista-chefe da TDS.company, professor extraordinário da CESAR.school e presidente do conselho do PortoDigital.org

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