Uma das fases mais perigosas e certamente mais danosas para analisar e|ou entender o nosso país é a de que “O Brasil é o país do futuro”. Imediatamente passamos a achar que esse futuro é, ou seria, de um Brasil que haveria de se comparar com a China, a Rússia, os Estados Unidos da América e a Europa. E não é.
Este blog tem um texto em 2018, absolutamente atual, de título “Uma Classe para o Brasil” no link bit.ly/2PUu0S1], onde se compara indicadores globais sobre educação, inovação, economia, violência e outros mais. Numa combinação de território, população e índices, descobre-se que não estamos na classe de nenhum país europeu, nem do Japão, ou China, Austrália ou da Nova Zelândia. O Brasil está na classe do México, da Malásia, Filipinas, da Indonésia, Tailândia,e da África do Sul. Essa é a, ou no mínimo uma, classe do Brasil.
Nessa classe, o Brasil tem futuro. Desta classe inteira, temos a segunda maior população. Mas quando a gente pega Malásia, Indonésia e Filipinas, esses países andaram fazendo coisas absolutamente miraculosas nos últimos 50 anos, enquanto basicamente andamos para trás. Ou ficamos parados. Nossa nação tem futuro não porque o futuro dela parece com a Europa. Não é porque vamos construir uma Paris no Recife, em Belo Horizonte ou em Taperoá, PB.
O Brasil tem futuro porque é grande. Tem futuro porque são 8,5 milhões de quilômetros quadrados. Porque são 211 milhões de habitantes. Por ter o potencial de 211 milhões de pessoas. Se as pessoas aprenderem qualquer coisa que tenha um valor, algum tipo de valor, no grande encontro global de contas – seja de filosofia, sociologia, economia, tecnologia digital… Se tivéssemos 10 milhões de brasileiros que escrevessem software, hoje, e falassem inglês, certamente exportaríamos pelo menos US$ 100 bilhões em software para o mundo, por ano. Duas vezes e meia a exportação do complexo de soja em 2020. Sem derrubar uma só árvore.
Para fazer isso, no entanto, e mantendo só o fato pequeno, minúsculo talvez, desse espaço-tempo digital no qual estamos agora, precisamos enfrentar grandes desafios. Eu não vi e não conheço, na história da humanidade, até agora, nenhum mecanismo de auto-articulação em rede (e a internet que existe hoje não é exatamente uma rede como gostaríamos que fosse) de alguma coisa do tamanho do Brasil: 211 milhões de agentes independentes, contando só as pessoas.
Isso talvez queira nos dizer que, para formar redes que querem alguma coisa ou redes que serão alguma coisa, temos que nos articular de alguma forma. A melhor forma conhecida na história da humanidade desde sempre -e não há nenhuma inovação nisso- é estabelecer grandes desafios. O Brasil sabe fazer isso e já fez bem mais de uma vez. Podemos citar pelo menos cinco grandes desafios sociais com os quais lidamos nos últimos 50 anos e equacionamos e resolvemos todos. Isso é muito pouco reconhecido por nós, brasileiros, que somos sempre o país do futuro mas também, ao mesmo tempo, somos os derrotados do presente. Aí não dá: é megalomania associada a complexo de inferioridade, ao mesmo tempo; tenso demais.
Na década de 1970, o Brasil resolveu que iria domar a epidemia de pólio, porque na década de 1950 e 1960, em números absolutos, o país tinha tido mais casos do que a Índia. E a Índia já tinha uma população muitas vezes maior do que a nossa. Um conjunto de epidemiologistas, sanitaristas, agentes de saúde, políticos de todos os vieses -e estávamos numa ditadura militar- trabalhou em conjunto e resolvemos a questão em três décadas: 1970, 1980 e 1990. Não foi um milagre, apesar de parecer. Foi resultado de um grande desafio que tinha uma grande estratégia para ter grandes resultados.
Também na década de 1970, outro desafio real do Brasil era não ter moeda forte suficiente para comprar comida, que não conseguia produzir toda aqui, apesar de ter 8,5 milhões de quilômetros quadrados – do quais pelo menos 2 milhões são agricultáveis. Aí criou-se a Embrapa. Com o grande desafio de autossustentação e exportação alimentar, tendo a Embrapa como base uma estratégia para tal. Também demos conta disso, a ponto da exportação de soja ter chegado, em 2020, a US$43 bilhões.
O Brasil, hoje, é basicamente exportador de fragmentos de superfície: na forma de terra, mesmo, e como grãos e proteína animal. As minas, obviamente, não vieram da Embrapa, mas o agronegócio, que sustenta boa parte da dinâmica competitiva brasileira no mercado internacional, veio da Embrapa diretamente. A Embrapa custa ao Brasil, hoje, o equivalente a soma dos orçamentos das duas maiores universidades do país. E achamos isso muito, quando é mínimo. Se a Embrapa tivesse investimentos de R$ 30 bilhões por ano, quase 10 vezes mais do que investe hoje, talvez conseguíssemos, por exemplo, olhar para o futuro e dizer: “O Brasil não vai precisar transformar capim em picanha porque nós saberemos como (e em escala) transformar proteína vegetal em proteína “parecida com animal”, exportar isso globalmente e ainda por cima recuperar todo o ecossistema que destruímos para plantar capim”. Mas nós fizemos a Embrapa. É bom poder dizer isso.
Em saúde, fizemos três coisas que quase ninguém no mundo conseguiu na nossa escala. Primeiro, a partir da década de 1980, reduzimos em 2/3 o número de fumantes no país, reduzindo drasticamente o custo humano, social e econômico do tabagismo. Segundo, tratamos a epidemia de HIV/AIDS, para qual até hoje não existe vacina, com uma política pública que pouquíssimos países, mesmo os ricos, têm e, num país que teria o potencial de 10% da população com a síndrome, temos menos de 0,5%. Estes dois feitos tiveram na sua base o terceiro, um Sistema Único de Saúde, criado como instruído pela constituição de 1988. O SUS é único em mais de um sentido da palavra, é quase único no mundo em vários sentidos. No país que queria ser “do futuro”, mas não é, e é de terceiro mundo como somos, se o SUS não existisse, o sofrimento e mortes causados pela pandemia quase certamente teriam sido estratosfericamente maiores.
Pólio, Embrapa, AIDS, fumo e SUS. Nós conseguimos fazer isso porque nós nos impusemos os desafios. Construir um país do futuro, onde [só por exemplo] 10 milhões de brasileiros, daqui a 20 anos, programem computadores, falem inglês fluentemente e estejam inseridos no mercado de trabalho internacional da economia do conhecimento –que é deslocalizada e dessincronizada e independe de fronteiras–, vai depender, quase certamente, de nós nos impormos o desafio de criar e manter um sistema único de educação.
Um sistema único de educação que não esteja olhando para melhorar a nota da nossa própria avaliação –de 3,5 para 4,5 numa escala que vai até 10 pontos– e achar que foi um grande progresso global. Foi um grande progresso local. O que era horrível ficou muito ruim. Não é nem apenas ruim ainda. Mas precisamos nos avaliar, também, pelo nosso tamanho e complexidade. Aí, mesmo com todas as dificuldades que temos, muita coisa está acontecendo na educação, do ponto de vista estrutural. Por isso mesmo que, quanto mais articularmos as competências e habilidades que há no Brasil ao redor de grandes desafios estruturais, mais chance temos de, mais rápido, criar algum país do futuro.
Os grandes desafios que começam na educação se perpetuam em todas as facetas da sociedade brasileira. Cerca de 40% da força de trabalho do Brasil é informal. Como é que conseguiremos ser “o país do futuro” se nos mantivermos assim? Desde que se fundou o Brasil, o país tem problemas que são intratáveis, como esse, porque tentamos apenas tratar o emprego informal, que é apenas uma febre, sintoma de doenças muito mais graves e profundas na sociedade como um todo.
Na base de muitas das febres do Brasil, está uma causa-raiz que nos recusamos atacar como deveríamos, porque muitos, quase todos, acham muito complicado: educação. Ou nos impomos um desafio nacional de grande porte para resolver o problema da educação do Brasil -e não é com escolas piloto, não é com experimentos para ganhar prêmios que conseguiremos- ou não sairemos do lugar. Precisamos resolver o problema dos 85% dos alunos do ensino fundamental e médio que estão matriculados em escolas públicas. Elas custam muito caro e entregam muito pouco. Se quisermos resolver o Brasil e preparar o país para aquela economia que está logo ali na frente -onde digital vai ser só um suporte para fazermos engenharia genética, para fazermos tratamentos que são absolutamente ficção hoje- teremos que resolver a educação em escala e qualidade.
Aí seremos um dos países mais competitivos do mundo por uma razão única, básica e simples: temos muita gente. Mas já perdemos o bônus populacional que tínhamos. E não dá para recuperar porque não vamos recuperar as taxas de fertilidade. Para o Brasil dar um salto, tem que dar um salto de performance. E isso não vai acontecer aleatoriamente, esperando que uma coisa aqui e outra coisa ali se juntem por acaso. Claro que uma parte significativa das grandes estratégias é emergente e teremos que aproveitar muito do que já está acontecendo.
Mas outra parte, talvez maior, certamente muito maior, tem que ser determinada. Tem que ser escolhida, induzida. Porque, entre muitas outras coisas, há para isso. A Receita Federal acabou de recuperar créditos fiscais R$100 bilhões que eram dados por perdidos. Imagine se usássemos tal receita e investíssemos, nos próximos 10 anos, R$10 bilhões a mais, por ano, focados exclusivamente em educação, R$10 bilhões a mais, por ano, num sistema único de educação. Mas único mesmo. Com alta performance. Onde, por exemplo, todos os diretores de escola –que até poderiam ser indicação do prefeito, de quem fosse– teriam que ter as competências e habilidades de diretores de escola e serem certificados como tal. Teriam obrigatoriamente que entender o que é uma escola. O que é um projeto educacional. O que é um sistema educacional. O que são competências e habilidades e porquê as pessoas estudam. Que não é para fazer provas. É para resolver problemas.
Se criássemos, de verdade, um sistema único de educação, mudaríamos o Brasil para sempre.
E isso leva de 30, 50 a 100 anos para ser criado, escalar e se tornar sustentável, porque inquestionável. Mas, se não começarmos algum dia… todo dia em que não começamos perdemos dois dias. O dia em que não fizemos nada e o dia que teremos que fazer alguma coisa na frente. E o Brasil, se continuar assim, como vem sendo para tratar alguns de seus maiores problemas estruturais não há anos ou décadas, mas há séculos, pode até ser o país do futuro. Mas do futuro do pretérito.
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[Este texto é baseado em um debate no Hack’Inverno – Dia 3, encontro online {vídeo no link… bit.ly/3wFniym} organizado pelo RenaSCidade, um grupo que adota governança holocrática para repensar modelos para cidades e criar experiências e projetos transformadores da realidade.]