Este é o quarto de uma série de textos curtos, de uns poucos parágrafos e alguns links, sobre o que pode acontecer, ou se tornar digno de nota, nos próximos meses e poucos anos. Como há uma tradição de, no fim do ano, pensar sobre as possibilidades do ano que vem, o título fala de… 23 anotações sobre 2023. O primeiro texto [Guerra. Eterna?] está no link bit.ly/3B0mysO, o segundo [Inflação. Recessão? E Investimento?] em… bit.ly/3ir4PUR, o terceiro [Energia e Descarbonização] em… bit.ly/3gUdD5w, o quinto [Pessoas & Costumes] em… bit.ly/3H7CAFb, o sexto [Plataformas & Ecossistemas], em bit.ly/3VEcxK3, o sétimo [Efeitos de Rede, Escala e Sustentabilidade]. em bit.ly/3BjJUK1, o oitavo [O Mundo é Figital], em bit.ly/3FEmMJ2, o nono [Marketing é Estratégia, Figital], em bit.ly/3FfDJrI, o décimo, [5G & Internet das Coisas], em bit.ly/3W8yVLC e o décimo primeiro, [Indústria… 4.0?], em bit.ly/3BpZuUK.
Sociedade & Política
O vídeo a seguir mostra Arthur Clarke, dentro de um CPD [Centro de Processamento de Dados, como se chamava no passado], em 1974 [bit.ly/3UtQepe], dizendo que as pessoas terão, nas suas casas, pelo menos um terminal, um teclado, pra entrar em contato com computadores -e outras pessoas- em qualquer lugar, o que criaria a possibilidade de morar em qualquer lugar [e não em cidades engarrafadas] e trabalhar a partir de qualquer lugar para negócios em qualquer outro lugar. Pelo menos para quem tivesse o papel de processar informação simbólica, como sabemos agora. Sir Arthur Charles Clarke CBE FRAS, [bit.ly/3H9GxZP] vivia no futuro; em 1945, propôs um sistema de comunicação por satélites, usando órbita geoestacionária, que veio a ser a base de tudo o que se fez sobre o assunto depois. E, se não sabia tudo de computadores, sabia quase tudo sobre pessoas… e o que eles iriam fazer usando computação e comunicação.
O próximo vídeo [bit.ly/3gWeXEM] mostra James Burke, em 1985, falando de redes, de cada um e todos tendo acesso a toda informação do mundo, em rede, em “comunidades eletrônicas”, quebrando os moldes sociais que nos prendem desde que deixamos de ser nômades; cada um teria sua opinião ouvida por todos, a “sua” verdade dependeria de suas crenças e visões de mundo, e as tantas narrativas que haveria estariam fora de controle dos governos, que afinal começaram a existir só porque, lá atrás, a opinião de todos não era ouvida por quase ninguém. Uma utopia?… pergunta Burke. Uma “anarquia equilibrada” vista de fora, uma “sociedade aberta”, vista de “dentro”, diz ele. Burke [bit.ly/3upHR3c], o genial criador e apresentador de Connections [o primeiro episósio, The Trigger Effect, vale a pena ver até hoje: youtu.be/NcOb3Dilzjc], ainda avisa que o que pode libertar o mundo pode, também, escravizar. Na verdade, deveria ter dito que toda utopia está, também, no limite da distopia [bit.ly/3W7RorN] e que estas últimas podem ter efeitos radicais em certos tipos [cada vez mais comuns] de cérebros.
Entre os vídeos de Clarke e Burke, no tempo, Jean-François Lyotard [bit.ly/3F0ftJW] havia escrito La Condition postmoderne: rapport sur le savoir, em 1979 [bit.ly/3h1OKET], um estudo emcomendado pelo governo de Quebec sobre a produção de conhecimento em sociedades informatizadas [ou computerizadas, como se dizia à época]. Nele, o grande filósofo anunciava um certo fim do mundo: “simplificando ao extremo, defino o pós-moderno como a falta de crença nas grandes narrativas; o conhecimento científico é [apenas… e talvez só…?] mais um tipo de discurso; a produção de conhecimento não é mais uma aspiração para produzir a verdade”. Burke quase certamente sabia de Clarke e deve ter lido Lyotard, o que pode ter instruído sua visão de possível futuro.
Em 1996, Manoel Castells começou a publicar sua triologia The Information Age: Economy, Society and Culture [bit.ly/3P1drOb ], uma das obras mais influentes para entender as mudanças sociais causadas pela revolução digital que já estava em curso desde os anos 1970, mas onde as redes digitais abertas -a Internet, a Web…- tinham acabado de aparecer. Castells diria, como profecia, que tudo, em rede, seriam fluxos ou …sequências de trocas e interações propositais, repetitivas e programáveis realizadas por atores sociais [pessoas, organizações, coisas…] situados em posições potencialmente disjuntas, sobre as estruturas econômicas, políticas e simbólicas da sociedade. Presto!…
Para surpresa de um total de zero pessoas -das que pensaram no assunto, claro, pois um monte muito maior ainda “vive” e toma decisões em um mundo analógico…-, Castells acertou em cheio. Vivemos em rede, hoje, e as redes são espaços de fluxos, que causamos e onde estamos imersos, com fluxos nos carregando de um lado pra outro, em sistemas de informação que têm, como WhatsApp, 2,5 bilhões de pessoas, cada uma enviando em média 50 mensagens por dia [faça as contas]. Como Burke avisava, o universo de narrativas é um hipermercado de quase infinita possibilidade, onde manipuladores têm, à disposição, uma plêiade de cérebros vazios e receptivos para programar. O que vem acontecendo em escala cada vez mais preocupante, a ponto de pôr em risco as bases do que costumamos chamar, com todos os seus defeitos, de democracia.
Não faz muito tempo, antes das redes abertas, que “a” narrativa -ou as muito poucas que existiam- eram “dadas” à sociedade pelos donos dos escassos canais de comunicação analógicos que nos acompanham desde a revolução industrial, o jornal, o rádio e a televisão. E os governos da hora tinham seu papel no cenário, como nos mostra até hoje “A Voz do Brasil”, obra da ditadura Vargas, no ar desde 1935 [bit.ly/3B9Bhli]. De mais de uma forma, nos perdemos, em todos os níveis, em um embate, uma guerra local e global de narrativas, e isso com tantos problemas a resolver, da crise climática ao câncer, da fome à depleção dos recursos naturais e extinção em massa causada pelo antropoceno. Ainda bem que o blog não tem comentários, aliás; se tivesse, é quase certo que haveria um embate, lá, disputando o trecho… extinção em massa causada pelo antropoceno. O fato é que a hora exige irmos pro futuro; mas não iremos pra lugar nenhum, nem para o presente, atracados em disputas de narrativas.
Muito menos queremos voltar ao “consenso analógico” do séc. XX, ditado pelos poderes [dentro e fora do governo] da hora [bit.ly/3uqscRa]. Mas precisamos de acordos mínimos sobre coisas básicas, como temos [acho!] sobre a lei da gravidade: engenheiros e construtores de todos os tipos de posição ideológica continuam acreditando e usando a mesma lei, simplesmente porque, sobre ela, não há disputa, nem alternativa [bit.ly/3UqWpdr]. Até porque, descarte a lei, os prédios caem. Mas nem tudo que se nega tem tal tipo de consequência, óbvia e quase sempre letal.
Para Jorge Eduardo Simonetti, “el insumo básico y esencial de la democracia es el ciudadano…” [em Crítica de la Razón Idiota, 2018, amzn.to/3Fr5j6A]; Daniel Innerarity vai além e diz que… “la preocupación principal de la política no debe ser la tecnocratización del gobierno sino la administración de la ignorancia…”, por que… “las confrontaciones políticas más importantes son valoraciones distintas del no-saber o de la inseguridad del saber: en la sociedad compiten diferentes valoraciones del miedo, la esperanza, la ilusión, las expectativas, la confianza, las crisis, que no tienen un correlato objetivo indiscutible…” [em La Sociedad de la Ignorancia, 2009, bit.ly/3vCVbRN]. Ao que Simonetti conclui: “la incultura general de la sociedad, como peligro básico de la democracia, sólo puede ser neutralizada con la preparación y la educación de los individuos en tanto ciudadanos…”.
Em 2023 e adiante, este é o grande desafio social, nacional, de Estado, da democracia: administrar a ignorância, preparar e educar os indivíduos enquanto cidadãos, reduzir o índice nacional de distopia, fazer com que cada vez mais pessoas e comunidades consigam concordar com um número de preceitos universais básicos cada vez maior, de interesse do todo, mantendo a liberdade -direito universal- de cada um acreditar no que bem entender. Mesmo de chamar extraterrestres piscando tela de celular para os céus [ou “cada um faz o que quer”]. E desde que não seja para os alienígenas virem nos dar um golpe de estado [“desde que se respeite o todo”]. Simples assim.