O título do artigo pode ser lido, também, de uma outra forma, acentuando uma letra e introduzindo pontuação: a escola é a virtualização do aprendizado? Nesta segunda leitura, mais antiga, mais profunda, a pergunta se refere à caracterização da escola propriamente dita.
Segundo Pierre Lévy, no seu livro “O que é o virtual”, o humano se constituiu (e se constitui) através de virtualizações. Na verdade, através de três virtualizações básicas, facilmente explicáveis.
O tempo, de importância fundamental para nosso entendimento do passado e planejamento do futuro, foi criado pela virtualização do presente por via da linguagem, possibilitando, através do discurso, o passado e o futuro. A tecnologia da fala nos torna completamente diferentes de qualquer outro tipo de ser vivo até agora identificado no universo.
A segunda virtualização é a que atinge as ações, realizada através das técnicas: as “invenções” humanas, ultrapassando em muito a utilização rudimentar de ferramentas por outros seres, criou um mundo de possibilidades que nos diferenciou ainda mais do resto do planeta. Os conceitos subjacentes à roda, por exemplo, podem ser tratados, em conjunto, como a virtualização do movimento, da ação de nos movermos de um ponto a outro. Para o que, hoje, rodas são fundamentais, até no espaço sideral, onde nada se move sobre rodas, mas tudo usa rodas (de uma forma ou de outra) para se mover.
Finalmente, os contratos, que criam éticas e instituições, por exemplo, virtualizam a violência, criam o que possamos talvez imaginar como sendo a sociedade moderna, onde nada se resolve “na porrada”. E quando alguém o faz, assim, o “contrato social” estipula a reação pública aos infratores. O livro está disponível, grátis e em português, neste link.
Coisas mais esotéricas do que tais explicações primárias estão escondidas nas virtualizações de Lévy, que aparecem na roda, por exemplo: as virtualizações criam “conceitos” que, normalmente, podem ser concretizados novamente. O conceito de roda, virtual do movimento (real ou virtual?) pode ser construído de tantas formas quantas o usuário queira. Imagine só as rodas que você conhece.
E há muitos outros virtuais, dos quais um muito, muito antigo é o dinheiro, a virtualização do poder de aquisição ou troca de valores. Ao invés de andar com 10 vacas pelo país afora, para trocar por passagens aéreas, hospedagem ou viagens de táxi, o fazendeiro usa cartões de crédito e pedaços de papel que representam seu poder aquisitivo, através de contratos sociais, no caso do dinheiro, e privados, para o cartão.
A década passada cuidou de associar o “virtual”, na maioria das vezes de forma muito pouco coerente, a quase tudo o que já conhecíamos antes: mercado, reuniões, espaços, realidade, modelos, empresas e, como sabemos, faturamento e até clientes virtuais. Mas esta noção de “virtual” não resiste a uma crítica mais profunda, posto que o virtual não é oposto ao real; o virtual é real, também, e oposto, isso sim, ao concreto.
Virtual, na acepção de Lévy, é o mesmo que abstrato; o contrário do real é o irreal. Associando a pergunta do primeiro parágrafo ao título, teríamos, portanto… “a escola (real, ali da esquina) é a implementação concreta que corresponde à virtualização do processo (pessoal, familiar, grupal, social) de aprendizado? E, neste contexto, o que mais pode ser virtualizado através das tecnologias de informação e comunicação e quais são as concretizações correspondentes?”
A primeira parte da pergunta leva, certamente, a inúmeras teorias, maiores e menores, para o aprendizado e sua virtualização (a educação), desde a decoreba mais básica (com suas recompensas e castigos pavlovianos), até o holístico, possível realização de um ideal de ensino do todo, antes ou concomitante com as partes. Este é o território das ciências cognitivas, onde muito há de se fazer antes que se possa passar um atestado de competência para a educação mundial, em qualquer nível, em qualquer área ou país.
A segunda parte está sendo respondida, e antes de termos respostas para a primeira, pela tecnologia. Ora, a tecnologia é o domínio das possibilidades, se preocupa muito mais em criar oportunidades e estabelecer paradigmas do que em explicar o mundo e refletir sobre ele e as coisas que nele existem. Um resultado deste processo é que, na educação como em outros cenários da atividade humana, são os especialistas em tecnologias da informação e comunicação que andam a decidir que infra-estrutura, serviços, aplicações e, mais grave, o conteúdo e contexto em que a tecnologia interfere na educação.
Até aqui, nada demais, pois o mesmo vem acontecendo nas empresas, no mundo todo, com poucos sinais alvissareiros de mudança na última década. Hardware é comprado porque foi lançado, software é trocado porque a versão mais nova tem mais 153 funcionalidades inúteis e 571 novos bugs, sistemas que pouco contribuem para adicionar valor ao negócio são comprados ou desenvolvidos sem que se saiba, em muitos casos, porque e para que… em suma, as possibilidades criadas pela tecnologia geram uma falsa expectativa, muitas vezes, que o último grito dos laboratórios é o progresso. O que me faz lembrar, vez por outra, do aumento do número de asas dos aviões, no começo do século passado, como um sinal de modernidade. Assim fosse, um ERJ-145 teria umas duzentas asas…
As empresas, no mundo inteiro, estão tomando providências para que seus executivos de tecnologia de informação entendam pelo menos tanto do negócio e contexto da empresa quanto tentam fazer com que seus executivos e operadores dos negócios, propriamente ditos, da corporação, entendam das possibilidades oferecidas pelas tecnologias da informação e comunicação. Só assim criam situações onde os múltiplos lados da operação sabem o que, por que, para que e para quem estão fazendo. Na educação não poderia ser diferente. Mas é, está sendo, de fato, muito diferente.
Dados coletados nos EUA mostram que, ano que vem, todas as escolas públicas e quase todas as salas de aulas, nestas instituições, estarão na rede, com menos de 10 alunos por computador, em média. Isso a um custo anual de pouco mais de duzentos reais por aluno por ano. Ótimo. Só que o investimento em habilitação docente para enfrentar os desafios das novas tecnologias estão em cerca de 20 reais por aluno por ano, contra o sugerido pelo Departamento (Ministério) de Educação de lá, cerca de 60 reais por ano. Como resultado, apenas 10% dos professores se acham muito bem preparados para usar as tecnologias na sala de aula.
É claro que o problema em pauta é mais uma instância do ovo-galinha; sem computadores, não adianta habilitar os mestres. Mas o processo, sem treinar os professores, poderá ter sua eficiência muito comprometida e até mesmo ser inviabilizado. Instalar computadores em sala de aula e laboratórios para usar processadores de texto, software de apresentações e mandar mensagens, além de navegar na rede, é um avanço gigantesco. Mas é apenas alfabetização, e muito elementar.
Para que se criem novas virtualizações no ambiente educacional, capazes mudar, efetivamente, seus conceitos, capacidade e conexões, modernizando-o e tornando-o de classe mundial, par e passo com as demandas do mundo que nos cerca, é preciso fazer muito mais do que instalar máquinas, rede e software. É preciso criar cultura. Nem antes, nem depois. Ao mesmo tempo. Este não é o problema aqui, é o problema em todo lugar. Mas bem que nós poderíamos dar o exemplo, tentando resolver o todo e não a parte mais fácil.
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Este texto foi atualizado em 25/06/2024, apenas para introduzir uma referência aberta e recente para o livro de Lévy.