[Post da série “Silvio Meira no G1”, publicado originalmente no G1, em 19/09/2006.]
Parece que foi ontem, mas já vivemos mais de uma década de internet. Lá atrás, teóricos enchiam a boca para falar do “ciberespaço”, termo cunhado por William Gibson em 1982 e popularizado dois anos depois em seu famoso “Neuromancer”, o romance que criou o gênero cyber-punk. No livro, o ciberespaço é uma alucinação coletiva, consentida, por operadores, por crianças aprendendo matemática… uma representação gráfica, abstrata, dos dados extraídos dos bancos de todos os computadores do sistema humano… Daí pra metáfora do “ciberespaço” representar a internet foi um pulo.
Faz um certo tempo que não ouço ninguém de tecnologia falar de “ciberespaço”; ainda há filósofos, sociólogos e outros analistas se referindo ao mundo conectado como tal, mas parece que eles não estão entre os mais alucinados usuários da internet. Esta, a rede de todas as redes, que junta a que está instalada na minha casa com a do meu escritório, a sala em que eu dou aula na universidade, as máquinas e software deste portal e a sua máquina, de onde você, agora, tenta entender onde eu quero chegar… a internet simplesmente chegou e começou a conectar o mundo. De uma certa forma, ela, que era muito presente no começo [ao ponto de muitas bandas usarem a cacofonia dos modems de 14, 28… kilobits por segundo discando para os provedores!] está começando a desaparecer no cenário contemporâneo.
Banda larga, sempre ligada, que cada vez mais gente tem e que em breve será a única forma de nos conectarmos, muda nossa visão e experiência da rede. Entramos em farmácias, lanchonetes, livrarias, YouTube, MySpace e Globo Media Center abrindo, displicente, múltiplos tabs no browser… seu navegador não tem isso ainda? Mude para Internet Explorer 7 ou Firefox, hoje! Chego no aeroporto, abro meu laptop e não só tenho banda larga, mas sem fio, em todo Brasil e no mundo, como se estivesse em casa. Vez por outra, dá até mais trabalho em casa, porque lá o suporte -o cara que desenrolar quando o sistema dá pau- sou eu mesmo. A Internet pública, a que todos temos acesso, migra rapidamente para a dimensão das infra-estruturas da sociedade, como a energia elétrica, e nós só precisamos nos preocupar com ela quando há algum problema. Quando “dá pau”…
Mas quase sempre tudo está funcionando e os consoles de jogos estão conectados; os melhores jogos são contra [ou com] outros seres humanos, que estão por aí, entre os mais de seis bilhões de terráqueos. Todos os celulares vão começar a funcionar do mesmo jeito, pela e na internet, algum dia, mais cedo do que tarde, e nós vamos poder filmar aquele guarda pedindo propina e mandar direto pros sites de notícias, a rede servindo de prova do crime. Pode até não dar em nada, no começo, mas dentro de algum tempo os vigiados [nós] vão se revoltar contra os vigias [os múltiplos pedaços do Estado] e exigir-lhes uma conduta minimamente apropriada, como nossos empregados que são. Capaz até de conseguirmos vigiar de perto os representantes do povo, expelindo os caídos on-line, real time… cassando mandatos por voto popular, na rede, na lata!…
No curto prazo, é uma utopia. Mas olhe daqui a cinqüenta anos e imagine uma só coisa que não vai estar na rede. Uma. Seu tênis vai estar, a câmera da porta da sua casa, seu carro [e várias partes dele, independentemente], os sinais de trânsito, os aviões, barcos, navios, animais de estimação, fogões, geladeiras… e, dentro dela e também na rede, o cacho de uvas comprado no supermercado. O selo do produtor estará na rede, será percebido e identificado como tal e poderemos descobrir um bocado de coisas sobre aquelas uvas que parecem tão belas e saudáveis… como a quantidade de agrotóxicos [se eles existirem, então] a que elas foram submetidas.
Talvez tenhamos muito mais coisas na rede. Dia destes eu pensei num olho artificial, nem tão punk assim, que tivesse uma resolução tão boa ou melhor do que um olho normal e pudesse ser colado, de alguma forma inteligente [pra não embaralhar a imagem!] no nervo ótico. Pra quem é muito míope ou tem outros problemas visuais mais severos, este olho teria caído do céu, desde que você quisesse trocar seu velho olho por um novo em folha, digital. Mas ele teria mais: poderia [pois é um sistema computacional] ter zoom e infra-vermelho. Quem não iria querer?… E mais: estaria conectado [sem fios!] na rede e poderia upload tudo o que visse pros servidores onde estivessem suas contas… gravando, on-line, sua vida. Pra que tirar fotos? Pra que prestar atenção em algo que não sei quando e se vou precisar? Gravado na rede, pelo nosso olho conectado, tudo poderia ser recuperado sob demanda… como o nome daquela pessoa que encontramos em algum lugar, que nos foi apresentada mas, na hora, estávamos com a atenção grudada noutra coisa. Ah, sim: como não poderia deixar de ser, este olho ouviria, também, e ultra-som, porque é multimídia. Claro.
Utopia? Previsão? Não, provável desenvolvimento das tecnologias da informação e comunicação, casadas com as ciências da vida, várias partes do que, em diversos graus de qualidade e completude, está começando a tomar forma em laboratórios mundo afora. Isso e muito, muito mais, que nos vai dar um trabalho muito grande quando formos pensar nas implicações para a vida, os seres humanos, seu comportamento privado e público e talvez até para a redefinição do eu, da noção de corpo, espaço e tempo. E da vida. Vai ser complicado, interessante e, acima de tudo, divertido.
Esta coluna vai ser sobre a sociedade da informação, que está começando a se tornar “a” sociedade em que vivemos, o espaço-tempo em que muitas das coisas descritas acima -e outras tantas que nem imaginamos, hoje – estão acontecendo ou vão acontecer. Não vamos falar de tecnologia pura; quando algum artefato, sistema, teoria ou aplicação aparecer por aqui, será sempre um motivo pra discutir seus possíveis impactos em nosso meio, o que seu uso vai mudar em nossas vidas, como o mundo vai [ou não] mudar por causa dele. O que vamos ganhar, o que perderemos e o que as pessoas que nem estão na rede estarão -e o que já estão- perdendo.
Uma vez por semana, sempre às terças, vamos nos encontrar por aqui. Terça que vem, pra começar, pra discutir porque somos tão poucos, no Brasil, se começamos, em 1995, no começo da internet comercial aqui, tão bem. Coisas do Brasil, que vamos discutir aqui com um distinto, e nem tão discreto assim, olhar da periferia.