muito gentilmente, numa carta que contém todas as informações para que eu renove minha carteira, o detran de pernambuco me informa que neste fim de mês tenho que fazer provas [informatizadas], pagar taxas e o que for necessário para ter de volta uma licença para guiar automóveis. fantástico, não? parece a eficência e eficácia da informática, em particular do governo eletrônico, capaz de ir atás de meus dados e me avisar, antes que algum guardinha me multe [na melhor das hipóteses], que preciso cumprir com as minhas obrigações.
parece um bom exemplo de governo eletrônico, não?. pois é, só parece um bom governo eletrônico: na verdade, é a informatização do caos. e o leitor atento perguntaria: como assim?
assim: tenho duas carteiras de motorista, uma brasileira, que vence nos próximos dias, e outra inglesa, que vence quando eu completar 70 anos, em 2025. esta última é de 1981: há exatos 29 anos eu não piso em um órgão do governo inglês que tenha qualquer relação com dirigir veículos e, lá, continuo habilitado a dirigir. primeiro, porque já estava; segundo, porque não cometi nenhuma infração grave nestes anos todos e, depois, porque nada me aconteceu, fisicamente, que tenha diminuido significativamente minhas habilidades para dirigir. caso acontecesse, quer pela via do seguro, médico, hospital ou de uma declaração pessoal, o “sistema” saberia e eu teria que revalidar minha carteira inglesa.
na inglaterra, país de burocracia sabidamente simples, a lei e as regras resolveram meu problema de forma simples e direta: passou no exame, vá dirigir sem restrições até que sua idade inspire cuidados ou sua saúde, antes disso, limite suas habilidades. e, se você fizer alguma besteira, nós vamos atrás de você. a solução inglesa é simples, precisa de pouca gente [dentro do governo] para funcionar, é cidadã e, de resto, não é porque o inglês médio passa mais de 55 anos pra renovar sua carteira que o trânsito inglês é um caos. muito pelo contrário. o reino unido, per capita, registra seis vezes menos fatalidades no trânsito do que o brasil, por ano.
caos é o nosso sistema: de cinco em cinco anos, tenho que renovar minha carteira, independentemente de ter ou não me envolvido em acidentes, cometido infrações graves ou sofrido alguma mudança radical no meu estado de saúde. o sistema, aqui, é muito mais “just in case” do que “just in time”.
aqui, o sistema tenta evitar, por todos os meios possíveis e imagináveis, que alguma coisa dê errado. pelo menos em tese, porque a realidade, como sabemos, não é exatamente essa. lá no reino unido [e em muitos outros lugares] o sistema é “just in time”, o que quer dizer que as coisas acontecem quando precisam acontecer. nem antes, nem depois. aqui, muito antes, e de forma mais ou menos inútil, e só para complicar ainda mais a já muito confusa vida de todos que vivem nesta geografia chamada brasil, o processo envolve uma verdadeira indústria de concessão e renovação de vistos de direção, empregando um mundo de gente dentro e fora do governo, com pouca ou nenhuma consequência na qualidade dos motoristas e do trânsito brasileiros. vai ver que é por isso que as coisas são como são…
e é exatamente aí, no “são como são”, onde entra o e-gov, ou governo eletrônico. lá, na inglaterra, um processo que já é simples [no caso das carteiras de motorista] pode ser tornado ainda mais simples quando informatizado, pois as conexões entre os sistemas de saúde, seguros, previdência e trânsito articula um outro conjunto de processos e serviços que torna a vida do cidadão efetivamente mais simples. exemplo? olhe neste link como se troca o velho pelo novo modelo de carteira de motorista. pela web. simples, em dez dias.
no lado de cá do atlântico, pega-se um conjunto convolucionado de regras, capazes de desafiar qualquer noção de eficácia ou eficiência na condução dos negócios pessoais, corporativos e de governo e… presto!… codifica-se a coisa toda em software, cria-se um portal de e-sei-lá-o-que e impinge-se aos cidadãos, de cima para baixo, tal conjunto de sandices.
obedientes e cordatos que somos, seguimos o processo fielmente, continuamente, ao ponto de continuarmos votando, eleição após outra, em legisladores que nada mais fazem do que tornar o país cada vez mais complexo, mais caótico, mais caro, do ponto de vista da maioria das transações. agora com o inestimável auxílio da informática que, no caso da informatização do caos, nada tem a ver com modernidade. é, pura e simplesmente, mais uma das formas de controle e exploração do tempo, recursos e da boa vontade dos cidadãos e corporações pelo estado.
este blog vai voltar ao assunto em breve. acho que temos que desmitificar a noção de que informática e informatização é algo bom a priori. não é. informática é apenas meio e não um fim em si. informática, quando se trata de governo eletrônico, é muito bem vinda quando aumenta a oferta de serviços que qualidade à sociedade, ao mesmo tempo em que simplifica a vida das pessoas e corporações. saiu ou passou disso, é a mais pura e simples informatização do caos.