a OSCE, organization for security and co-operation in europe, maior organização regional de segurança do planeta, perguntou aos 56 países membros quais deles têm legislação específica para garantir a neutralidade de suas infraestruturas de suporte à internet. a resposta está no pie chart deste parágrafo: só um, a finlândia, país de longa e estável tradição democrática.
nos estados unidos, entre outros países, há regras [mas não leis] que os órgãos reguladores tentam impor às teles, fixas e móveis, com o propósito de garantir bases iguais de serviços para todos. no caso americano, isso quer dizer que os serviços têm que ter…
i. Transparency. Fixed and mobile broadband providers must disclose the network management practices, performance characteristics, and terms and conditions of their broadband services;
…transparência: nós usuários, temos que saber quais são as práticas dos provedores; o que e como é feito para tratar o tráfego em suas redes;
ii. No blocking. Fixed broadband providers may not block lawful content, applications, services, or non-harmful devices; mobile broadband providers may not block lawful websites, or block applications that compete with their voice or video telephony services; and
além disso, nenhum conteúdo ou aplicação [legal] pode ser bloqueada, mesmo que seja competição para os serviços das operadoras e…
iii. No unreasonable discrimination. Fixed broadband providers may not unreasonably discriminate in transmitting lawful network traffic.
…não pode haver qualquer discriminação de tráfego.
no brasil, a neutralidade da rede faz parte da discussão sobre o marco civil da internet, processo que está sendo atropelado pelo AI5 digital, projeto de vigilância e criminalização de comportamentos em rede que vem da época em que o deputado azeredo era senador. a isca, para o legislativo, é óbvia: enquanto garantir acesso universal e neutralidade de rede é por natureza complexo e difuso [até porque atende interesses difusos da sociedade] a vigilância e criminalização de comportamentos em rede atende diretamente a mercados e empresas que têm interesses explícitos e ampla capacidade de fazer campanha por eles.
isso é aparente no estudo da OSCE, onde se vê um número muito maior de países que restringe comportamentos do que promove acesso universal, de qualidade, neutro… e por aí vai. veja o número de instâncias de "outlawing" na imagem abaixo, que você pode ver em maior detalhe na página 224 do estudo da OSCE.
continuando nessa pisada, qual é a tendência de longo prazo? claramente, é a transformação da rede em "mídia" e "sistema de comunicação" controlado pelos mesmos centros de outrora [e do presente, em muitos lugares], contra os princípios e interesses democráticos e libertários que nortearam o nascer e evoluir da rede até agora. e todo e qualquer incidente e contexto é usado, pelos defensores do antigo status quo, para justificar suas tentativas de controle da internet.
a seguir, um texto que publiquei na folha de são paulo no dia 7 de julho pp., onde defendo que a discussão e estabelecimento do marco civil para a rede deve, necessariamente, ocorrer antes de qualquer outra tentativa de legislar sobre a internet no país, até porque não há nada de novo no front que leve a uma mudança de prioridades. o que há, parece, é uma necessidade pouco explicada de mostrar serviço a sabe-se lá quem. ou… sabe-se?…
Crime e Castigo na Internet
Como é de conhecimento geral, sites de todas vertentes e níveis de governo estiveram sob ataque de um enxame de hackers nas últimas semanas. Muitos foram derrubados e uns poucos invadidos, o que podia interromper a prestação de serviços à cidadania e empresas. Não que isso tenha acontecido; serviços essenciais como a Receita atravessaram incólumes o tsunami.
Defensores da internet vigiada entendem que só isso já é motivo para acelerar a passagem da Lei Azeredo (o “AI-5 digital”) pela Câmara, onde a proposição se encontra depois de aprovada pelo Senado. Mas não é. O surto de ataques e os sites de e-gov prejudicados são resultado de um fenômeno muito mais básico e, por isso mesmo, endêmico na administração pública: a falta de políticas e estratégias e, na presença delas, a incapacidade operacional.
Segundo relatório recente do TCU, nada menos de 65% dos órgãos federais não têm uma política de segurança da informação (veja http://bit.ly/lUQni0), o que tira muito da graça de derrubar seus sites e invadi-los para subtrair, aqui e ali, informação via de regra irrelevante.
Nos últimos 15 anos, toda uma geração cresceu na internet, íntima de muitos de seus segredos. Parte dela transformou tal intimidade em ferramentas que tornam possível, a quase qualquer um, feitos que o imaginário, ao desconhecê-las, atribui à genialidade. Menos, muito menos do que isso está em jogo na vasta maioria dos casos.
Mas é certo que a geração hacker cresceu à margem do veio social, ignorada e, ao mesmo tempo, quase sempre ignorando um mundo onde quase ninguém sabe o que é ou joga World of Warcraft. E muito menos do que é capaz uma linha de comando na hora e lugar certos. Esta separação levou a visões de mundo, de cada lado, que são de difícil articulação sem que se faça um esforço consciente, coerente e de longo prazo para atrair hackers de todas as matizes para o jogo social. De pouco ou nada adianta um “dia do hacker” no governo, sem que haja uma política continuada de absorção de suas competências pela sociedade.
Até porque não há uma guerra, no sentido de assaltos premeditados, liderados e articulados, que visam causar danos às infraestruturas de informação essenciais à sociedade e economia. Pelo menos por enquanto: na onda de ataques de que falamos, não se tentou invadir bancos, roubar senhas, inviabilizar serviços e utilidades públicas.
Existe, sim, uma ideologia juvenil, dispersa e pouco articulada, de combate à corrupção, especialmente da classe política. E uma crença de que muito se pode descobrir sobre os porões do poder nos repositórios de informação espalhados pelos órgãos públicos. E que sua exposição levaria a culpados muitos. Fala-se de licitações fraudadas, trocas de emeios entre interessados em dilapidar o erário, mas pouco se produziu, até agora, de substancial e comprovado.
Isso quer dizer que não estamos procurando um (ou melhor, muitos) Raskólnikov: nada, ainda, foi destruído, direta ou colateralmente. Tampouco há qualquer adolescente com um teclado na mão e um drama psicológico na cabeça, atormentado pelos seus atos “contra” o sistema. Ainda não chegamos neste nível de consciência, trama e trauma. Mas podemos chegar, e os culpados, merecedores de castigo, estarão muito mais do lado de cá, por não entender e saber capturar o imaginário de uma geração, do que de lá, que podem começar a entender e saber usar, cada vez mais e como a geração 68, seus recém-adquiridos poderes.
Usar uns poucos e irrelevantes incidentes, devidos mais à incompetência de gestão e operação públicas do que às capacidades dos hackers, como argumento para acelerar a criminalização comportamentos em rede, antes que se discuta e decida por um marco civil para a internet no Brasil é mais do que botar o carro à frente dos bois. É ignorar a imensa comunidade que vem, paulatinamente (sim, leva tempo) tentando criar um marco legal para uma rede cidadã, e não um ambiente viciado e vigiado onde seremos, todos, culpados até prova em contrário.