ariano suassuna,
1927 – 2014.

morreu o criador. imensa é a tristeza de todos que o conheceram e dos que, de alguma forma, foram tocados por ele. mas ficaram suas criaturas. com ele se foram as tantas histórias que ainda poderia ter contado, inventor que era de mundos e gentes, todos eles no brasil real, muitos deles no sertão, no cariri, lá em taperoá. mas ficou a maior invenção de ariano, a resistência cultural que ajudou a dar sentido e razão de ser a muita coisa no nordeste e no país, lá do chão rachado da seca do interior até a água tanta no litoral.

ariano maos

o movimento armorial, lançado por ariano em 1970, foi princípio de iniciativas muitas, inclusive o balé popular do recife, criado por ele e andré madureira. o balé inspirou o maracatu nação pernambuco, num tempo em que os maracatus estavam ameaçados de extinção em recife e foi no “nação” que eu, lá de taperoá, depois de rodar o mundo, me reencontrei com o brasil profundo, aprendendo a bater, nas alfaias e já nos anos 90, toques africanos ancestrais. de mais de uma forma, graças a ariano.

mas ariano tinha entrado na minha vida bem antes, e ela nunca foi a mesma depois que li, no começo dos anos 70, o romance d’a pedra do reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta. até hoje, toda vez que volto a taperoá, entro no livro quando passo por estaca-zero, mesmo que quase nada do [d]escrito na abertura d’a pedra esteja lá, visível. mas está sim, lá, em mim, imaginário:

Há três anos passados, na Véspera de Pentecostes, dia 1o de Junho de 1935, pela estrada que nos liga à Vila de Estaca-Zero, vinha se aproximando de Taperoá uma cavalgada que iria mudar o destino de muitas das pessoas mais poderosas do lugar, incluindo-se entre estas o modesto Cronista-Fidalgo, Rapsodo-Acadêmico e Poeta-Escrivão que lhes fala neste momento.

Era, talvez, a mais estranha Cavalgada que já foi vista no Sertão por homem nascido de mulher. Aliás, não sei nem se o nome de “cavalgada” se ajusta bem àquilo, que parecia antes uma espécie de tropel confuso de cavalos, jaulas, carretas, tendas, Cavaleiros e animais selvagens. Era, realmente, uma verdadeira “desfilada moura”, como muito bem a classificou depois, na noite daquele mesmo dia, o Doutor Samuel Wandernes, homem intelectual, Poeta e promotor da nossa Comarca. Na verdade, como ele vive afirmando freqüentemente, “os árabes, negros, judeus, tapuias, asiáticos, berberes e outros Povos mouros do mundo, são sempre meio aciganados, meio ladrões, trocadores de cavalos, irresponsáveis e valdevinos”; e o estranho grupo de Cavaleiros que, naquele dia, iniciava a mais terrível agitação em nossa Vila, revelava no conjunto, ao primeiro exame, alguma coisa de errante, como uma tribo selvagem, nômade, empoeirada e “sem confiança”.

Era composta de cerca de quarenta Cavaleiros. Os arreios dos cavalos que a compunham vinham cobertos de medalhas e moedas, que refulgiam ao Sol sertanejo, devolvendo aos fulgores dos cristais das cercas-de-pedra as faíscas de seus metais. As esporas, como estrelas de fogo, retiniam suas rosetas, batendo nos estribos e centelhando nos sapatões de couro castanho, sob as véstias e os canos poeirentos das calças-perneiras, também castanhas, mas providas de fortes placas de reforço, costuradas a modo de joelheiras nas calças, e de ombreiras nos gibões. Os chapelões de couro, de largas abas dobradas e levantadas, coroavam-se, também, de estrelas e moedas que reluziam – três nas abas, inumeráveis nas testeiras e barbicachos. Mais do que tudo, porém, pairava no ar, sobre aquela esquisita tropa de bichos, carretas e Cavaleiros, uma atmosfera de feira-de-cavalos; de sortilégios e encantamentos; de companhia de Circo; de comboio-de-mal-assombrados; de cavalaria de rapina; de comércio de raízes, augúrios e zodíacos; e tudo isso junto lembrava, logo, uma tribo de Ciganos sertanejos em viagem.

Uma coisa que talvez cause estranheza aos menos avisados é que o genial Poeta-Brasileiro e Patrono-Acadêmico, Antônio Gonçalves Dias, tendo vivido um século antes desta cena, já previsse que ela ia acontecer. É que, como diz o Doutor Samuel Wandernes, “os Poetas são verdadeiros visionários”, isto é, gente que prediz o futuro e vê visagens e assombrações, como Antônio Conselheiro via as dele, no Império pedregoso e sitiado de Canudos.

Assim, ninguém se espante de que Gonçalves Dias, tantos anos antes, visse, como alumiado e visionário que era, a chegada desse tropel de cavalos a Taperoá, descrevendo assim a estranha Cavalgada que, já perto do meio-dia daquela Véspera de Pentecostes, errava pelos campos do Sertão do Cariri:

“Eram ciganos errantes,
atilados e torcidos,
trocadores de Cavalos
com semblantes de atrevidos:
causa medo vê-los tantos,
tão astutos e crescidos.

Vinham Ladrões de cavalo,
vinham muitos Raizeiros,
vinham, do Sol abrasados,
nossos bárbaros Guerreiros,
bons dizedores de Sortes,
muitos e bons Cavaleiros!

E vinha o Donzel errante
no cerco dos roubadores!
De sua Dama-de-Copas
no Escudo trazia as cores:
tinha amor pela Sonhosa,
eram claros seus amores!

Enfim, dizer quanto vimos
não cabe neste Papel:
vinham muitas alimárias
– são roubadas a granel –
e vinha o Alumioso,
montado em branco Corcel!”

ariano

o mestre deixa indescritível saudade, que será preenchida com eterna lembrança, honra que quase só merecem, de todos, os inventores de seus povos e lugares. até você, que nunca foi ou irá a taperoá, pode imaginar-se quaderna e sua situação, lendo

Daqui de cima, porém, o que vejo agora é a tripla face, de Paraíso, Purgatório e Inferno, do Sertão. Para os lados do poente, longe, azulada pela distância, a Serra do Pico, com a enorme e alta pedra que lhe dá nome. Perto, no leito seco do Rio Taperoá, cuja areia é cheia de cristais despedaçados que faiscam ao Sol, grandes Cajueiros, com seus frutos vermelhos e cor de ouro. Para o outro lado, o do nascente, o da estrada de Campina Grande e Estaca-Zero, vejo pedaços esparsos e agrestes de tabuleiro, cobertos de Marmeleiros secos e Xiquexiques. Finalmente, para os lados do norte, vejo pedras, lajedos e serrotes, cercando a nossa Vila e cercados, eles mesmos, por Favelas espinhentas e Urtigas, parecendo enormes Lagartos cinzentos, malhados de negro e ferrugem; Lagartos venenosos, adormecidos, estirados ao Sol e abrigando Cobras, Gaviões e outros bichos ligados à crueldade da Onça do Mundo.

é daí de onde quaderna se dirige…

a todos os Brasileiros, sem exceção; mas especialmente, através do Supremo Tribunal, aos magistrados e soldados -toda essa raça ilustre que tem o poder de julgar e prender os outros. Dirijo-me, outrossim, aos escritores brasileiros, principalmente aos que sejam Poetas-escrivães e Acadêmicos-fidalgos, como eu e Pero Vaz de Caminha, o que faço aqui, expressamente, por intermédio da Academia Brasileira, esse Supremo Tribunal das Letras.

Sim! Nesse estranho processo, a um tempo político e literário, ao qual estou sendo submetido por decisão da Justiça, este é um pedido de clemência, uma espécie de confissão geral, uma apelação – um apelo ao coração magnânimo de Vossas Excelências. E, sobretudo, uma vez que as mulheres têm sempre o coração mais brando, esta é uma solicitação dirigida aos brandos peitos das mulheres e filhas de Vossas Excelências, às brandas excelências de todas as mulheres que me ouvem.

Escutem, pois, nobres Senhores e belas Damas de peitos brandos, minha terrível história de amor e de culpa; de sangue e de justiça; de sensualidade e violência; de enigma, de morte e disparate; de lutas nas estradas e combates nas Caatingas; história que foi a suma de tudo o que passei e que terminou com meus costados aqui, nesta Cadeia Velha da Vila Real da Ribeira do Taperoá, Sertão dos Cariris Velhos da Capitania e Província da Paraíba do Norte.

ariano e o dedo em riste

e o resto é história. aliás, todo o resto são histórias e invenções, fantásticas, geniais.

ariano tranquilo

boa viagem, mestre ariano. descanse em paz. um dia a gente se encontra. de novo.

ariano aeroporto

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Silvio Meira é cientista-chefe da TDS.company, professor extraordinário da CESAR.school e presidente do conselho do PortoDigital.org

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