Ninguém está preparado para mudanças, ainda mais para mudanças de grande magnitude. ao contrário do que parece querer uma certa teoria da inovação, seres humanos querem estabilidade, dentro de uma zona de conforto conhecida, bem determinada, para a qual, por sinal, foram treinados a vida inteira. é isso que a escola faz conosco: criar um sentido de normalidade, estabilidade e certeza, de longo prazo inclusive. topper e lagadec [em Fractal Crises –A New Path for Crisis Theory and Management, neste link] começam por estes conceitos para explicar porque as crises nos importunam tanto.
topper e lagadec dizem que quem toma decisões quer ação, devidamente mapeada em termos de resultados; nos negócios, se quer risco, mas conhecido e controlado. a ciência, em geral, lida com regularidade; singularidades são “problemas” da arte. vez por outra, um “louco” se arrisca a ir além dos limites e prospectar cenários de estudo onde não há caixas… e não se trata de pensar fora da caixa, como diz uma das cansadas metáforas para inovação, mas da inexistência e dificuldade, às vezes, de [a partir da caixa atual] conceber, construir e manter novas caixas.
no contexto mais amplo [além da economia] uma teoria das crises é quase um contra-senso: como assim, uma teoria geral das exceções-à-regra?… pois é, mas o fato é que nas últimas décadas nós tivemos que estudar, cada vez mais, transições e turbulências cada vez mais frequentes, em todos os tipos de sistemas, de prisões a cidades, de finanças ao ambiente. e como não há sinais de que teremos, no futuro próximo, normalidade, estabilidade e certeza na escala que gostaríamos, parece não há alternativa a não ser melhorar nossas teorias sobre as crises. e crise, aliás, vem do grego krisis, ponto de mutação [de doenças] e saiu do domínio médico no séc. XVI. queria dizer separar, decidir… mas a palavra em alemão para o conceito é que é massa: torschlusspanik, ou pânico da porta fechada, medo de ficar do lado errado da porta quando ela se fechar [veja aqui e aqui]. em várias esferas do poder, hoje, no brasil, há gente sofrendo de torschlusspanik, ao mesmo tempo em outros tentam controlar a porta, a hora de fechar, a lista de quem “tem” que ir pro outro lado antes dela fechar… até mudar de lado por cima da porta fechada, como sempre foi o caso por aqui, desde que um certo cabral descobriu o pedaço. ou não. mas esta é outra história.
qual é o lado “errado” da porta, hoje, no nosso contexto? é achar que estamos em uma sociedade de comunicação para disseminação de informação. tenho ouvido muita gente falando em por ordem na casa, como se houvesse uma multidão que quer e precisa ser ordenada, no sentido de passar a obedecer a um certo conjunto de líderes e suas palavras de ordem. isso era verdade quando o custo de articular ideias e grupos era alto, quase impossível de ser suportando por quem não fosse parte do “sistema”. é bem possível que, sem redes, 100, 1000 vezes mais tempo e esforço tenha sido investido para estruturar a campanha das diretas, na década de 80, do que foi gasto para mobilizar as redes para as ruas em 2013.
na época da TV [pense década de 80…], as pessoas eram [e eram tratadas como]audiência, ficavam sentadas no sofá vendo o que rolava na telinha. pouco mudou com o controle remoto, pois o “meio” era escasso e controlado por programadores centrais. na rede, e principalmente nas redes sociais, além do controle do browser, cuja barra de endereços e clicks me levam para onde eu quero [e não para onde um programador, se houver, queira me levar], são as pessoas que criam a “mídia”. por isso mesmo é que youTube, twitter e faceBook e outros são tratados como mídias sociais: lá, todos podem contribuir com seu conteúdo e conexões e influenciar na criação e consumo do conteúdo do resto do mundo.
resultado? audiência se transformou em comunidade, e a sociedade passa a ser baseada em conectividade, suporte para criação de relacionamentos e interações que levam a trocas de significados e geração de conhecimento compartilhado, em rede, por todos. cada um, se quiser, passa a ser seu próprio programador.
pense na diferença: mudar do velho comando e controle para construção coletiva de conhecimento, numa década, contando das primeiras versões de redes sociais como as conhecemos hoje. e haja torschlusspanik, pois um monte de gente não sabe nem qual é a porta, quanto mais qual é o lado “certo”.
até porque, por um tempo, ainda vai haver uma certa confusão digital, não só porque há plataformas demais, talvez, mas porque os agentes das cadeias de valor de computação e comunicação ainda estão se estabelecendo nos novos contextos e formatos [saindo de comando e controle para conectividade para interação].
voltando às crises, e lendo topper e lagadec no contexto do brasil de hoje, o que é uma crise? são eventos onde a 1] grande escala se tornou fora da escala; as crises [em rede] ameaçam [dezenas de] milhões, toda uma sociedade, todo mundo sem saber nem direito de onde vem a ameaça [ou mudança] e muito menos para onde ela nos levará. são situações onde saímos da 2] complexidade para o ininteligível, onde se perde a capacidade de ler e entender a realidade, talvez por muito tempo. são contextos onde há uma transição 3] de acoplamento forte para totalmente interdependente, tanto local como nacional e global [e o exemplo são protestos “brasileiros”, no timing do brasil, em dezenas de cidades mundo afora]. no topo destas características, as crises contemporâneas deixaram de ocorrer em 4] alta velocidade para se tornarem instantâneas, graças às redes globais e à ubiquidade de sua presença. tem mais: crises 5] deixaram de ser eventos locais e se tornaram deslocalizadas, quer no espaço ou tema [ou foco], saltando de um assunto ou local para outro, se recombinando e produzindo novas e inesperadas manifestações.
pense num problema. agora, leve em conta que os contextos para as crises, hoje, são frágeis por natureza, altamente conectados e onde pequenos eventos podem se combinar, recombinar e ampliar sua amplitude e impacto, gerando efeitos quase sempre imprevisíveis [pense nos R$0,20…]. este é o cenário em que as crises de nossos tempos saem de 6] incerteza para ignorância, onde o problema deixa de ser o de tratar as dúvidas e incertezas na periferia de um núcleo de conhecimento, mas de trilhar no desconhecido, sem qualquer hipótese ou referencial que sirva de base para ação.
estes 6 considerandos levam topper e lagadec a defender, no restante do texto, que crises poderiam ser tratadas do ponto de vista fractal, ou à semelhança de formas geométricas que, divididas, têm em cada parte uma versão reduzida do todo. a imagem abaixo mostra um fractal e, se você quiser ver uma animação que mostra o conceito de “partes que contêm o todo”, veja este vídeo.
fractais podem ter uma relação com o estudo de crises por causa das propriedades de invariância, ou auto-similaridade, a eles associadas. a ideia seria estudar crises como sistemas complexos aos quais estão associados certos invariantes: ao invés de tratar o que entra em colapso numa crise, por que não entender o que continua valendo durante e depois da crise, em relação ao estado inicial das coisas?… ainda por cima, como as partes são, também, “todos”, o que não mudar no microcosmo não mudaria em sistemas maiores. será que isso funciona mesmo?
os autores defendem que o mundo está sendo “moldado por crises” e que não temos outra alternativa a não ser tratá-las a sério e de forma sistemática. parece que este é mesmo o caso: na atual crise brasileira, não se imaginava que centavos na passagem de ônibus seriam o estopim de tamanha mobilização, tampouco que a agenda, a partir daí, iria de oposição à PEC37 a educação de qualidade, passando pela exigência de passarelas de pedestres e emancipação de distritos. em muito pouco tempo, em todo o país, sem que se soubesse porque e qual seria o próximo evento. exemplo cabal do funcionamento dos princípios 1-6 enumerados acima.
imaginando que haja invariantes, quais são? segundo topper e lagadec, não adianta sair por aí com uma tabela padrão, de um livro de regras, procurando invariantes, pois eles podem ser específicos para cada crise, apesar de haver alguns que seriam comuns entre duas ou mais crises. eles sugerem que se procure características, nos sistemas em crise, que possam estar associados a a] globalização de efeitos locais, possivelmente causados por efeitos do tipo dominó; b] magnificação de eventos, causados por interações em rede que aumentam a velocidade das interações e que podem transformar eventos curtos, de baixo impacto, em crises longas de muito alto impacto e custo; c] efeitos de agregação, em que um ou poucos agentes, via suas conexões, relacionamentos e interações, impactam uma larga porcentagem de toda a rede em que estão incluídos, causando efeitos dos tipos a] e b] e, por fim, d] entendimento [ou não] de sinais fracos, o que nivela, no começo de eventos em rede, o indivíduo e o sistema [e seus líderes], pois todos, no estágio inicial de uma grande mutação, têm a percepção afetada por escassez e assimetria de informação.
o que se pode concluir dos princípios 1-6, combinados com as caractérísticas a-d, quando se observa o universo de redes e, mais objetivamente, para a relação entre movimentos on e offline, como hoje no brasil, entre tantos outros países?
primeiro, é preciso estudar melhor como conversações-para-ação acontecem nas redes. este blog já tratou o tema aqui e o problema exige esforço cognitivo e operacional de quem se dedicar ao problema. segundo, redes tem que passar a ser tratadas como um foco muito real de poder, claramente bem melhor distribuído no virtual do que no concreto, sem o que os efeitos das redes sociais dificilmente serão entendidos. o blog tratou deste assunto neste link. por fim, os “sistemas” do que a gente chamava de “mundo real” têm que entender, talvez de uma vez por todas, que é na rede, mais especificamente nas redes sociais, que a sociedade está se encontrando e que não estar lá é pior do que não existir… porque fala-se de sua instituição [seja marca, empresa, governo e o que mais for…] mesmo que você não queira. sem uma estratégia para agir em rede, e de forma articulada e competente, sua instituição estará sempre a reboque dos acontecimentos lá nas redes, tentando entender como foi envolvida em tamanho buruçu. e de uma hora pra outra. o blog tratou deste assunto neste link, numa série de textos sobre estratégias de redes sociais para negócios, que vale, mudando muito pouco, para todas as instituições do aparato de estado.
talvez valha a pena revisar para os nossos tempos, já que o tempo passa tão rápido e o contexto, aqui, e agora, é de crise mais que aguda. vamos ver. se a crise deixar, talvez os textos dos links acima, revisados, reapareçam aqui nos próximos dias.