Na turquia, nas últimas semanas, as pessoas não foram para as ruas só porque o governo resolveu derrubar árvores em um parque no centro de istanbul. em toda a primavera árabe, nos 20 ou mais países em que os protestos aconteceram, as causas não foram as aparentes, mesmo que dramáticas, como mohamed bouazizi ateando fogo ao próprio corpo e falecendo logo depois, dando início ao processo que derrubou o governo da tunísia em 10 dias. havia mais, muito mais e sempre houve muito mais.
em texto do começo de junho, tratando do caso turco, falamos do que aparenta ser a causa maior dos protestos na turquia: o abismo entre povo e governo. o primeiro ministro turco, cujo governo tem pelo menos tantos resultados a mostrar quanto o brasileiro [senão mais, vide a comparação abaixo, de wolframAlpha], manda no país há 10 anos e começou a achar que poderia fazer o que quisesse. não pode, e o estopim foram as árvores de taksim, que estabeleceram os limites do que o governo pode e não pode fazer sem o consentimento da população, mesmo um governo livre e democraticamente eleito como o da turquia.
aqui, o gatilho para a onda de manifestações de rua foi o aumento da passagem de ônibus, que nos lembrou que não temos escolas, hospitais, estradas, aeroportos, transportes públicos decentes… e temos gastos astronômicos com eventos fora de controle [como os da FIFA…], ineficácia e ineficiência monumental dos governos, associadas a uma corrupção endêmica no setor público [a nota do brasil, aqui, é 43/100, a turquia tem 49 e chile e uruguai são os melhores iberoamericanos, com 72] e no topo, se não bastasse, os R$0,20 nos lembraram que a política passou, há tempos, a servir aos políticos e não como mecanismo de representação do povo.
se a política estivesse funcionando, se os parlamentares estivessem lutando pelas causas da população, e não pela liberação de emendas e cargos [com as exceções raras e honrosas de sempre] em governos cacofônicos [há décadas!] os grandes debates e as perspectivas de mudança estariam sendo encaminhadas dentro do sistema, pelo mecanismo de representação popular estabelecido pelas regras do jogo, pela constituição e pelas leis. como não estão, o povo está nas ruas.
do texto daqui do blog sobre as manifestações na turquia…
…em tempos de crises, recessões e mudanças de grande porte como estão sendo os nossos, sempre há quem ache mais prático fazer tudo sozinho, sem ouvir ou respeitar quem quer que seja, inclusive você que agora está ao lado de quem reclama da [grande] mídia e/ou das redes sociais.
e, nas democracias, governar não é para os fracos, pois há oposição, que está onde está [pelo menos em tese] para defender os pontos de vista de quem não ganhou a eleição mas vive no mesmo ambiente de quem venceu e, em algum futuro, estará no poder. mesmo que nunca esteja, a garantia do respeito mútuo entre situação e oposição é essencial para o futuro de qualquer democracia.
e oposição e situação deveriam entender que existem por causa do povo, cuja [re]articulação em redes sociais porá fim não só a mandatos mas a –por exemplo- boa parte da democracia representativa. afinal de contas, quando todos estiverem conectados e as decisões puderem ser online, em tempo real, pra que “representantes” do povo?
democracia representativa é o sistema ideal? em considerations on representative government, “o” livro sobre o assunto, john stuart mill não diz que democracia representativa é melhor que direta, mas que esta é impossível. ou era, em 1861. de lá pra cá, muita coisa mudou. nos últimos 20 anos, os anos da web, qualquer um passou a poder escrever e publicar, a custo de sua energia, um jornal. e de alcance imediato e global, como nunca seria possível na plataforma de gutenberg. é isso o que faz yoani sánchez, pedra no sapato da ditadura cubana e, como vimos aqui, de muita gente no brasil.
sem a web, como haveria uma yoani, em cuba ou onde fosse?… mas a web 2.0, dos blogs, fotos e vídeos, onde qualquer um pode publicar e todos que estão em rede podem ler, de qualquer lugar, era só o começo do que iria rolar quando a rede de servidores e sistemas de informação se transformou, usando as conexões, relacionamentos e interações de redes sociais como faceBook, twitter e outros, numa rede de pessoas. twitter, pra falar de um só, sincroniza o mundo. se não estiver rolando no twitter, é porque não deve estar acontecendo em lugar nenhum [veja um exemplo aqui].
e muita coisa está acontecendo e impacta muita gente: 79 milhões de brasileiros foram tocados, de alguma forma, por compartilhamentos [sobre os protestos] nas redes sociais nos últimos 5 dias, até ontem à noite. muita gente. quando a gente foi à rua pro “fora collor”, levou meses pra atingir uma pequena parte deste número. até porque a mídia da época reinava absoluta… mas hoje, observada, comentada e fustigada pelas redes sociais, tem que reagir para manter pelo menos um pouco de ligação com a realidade que todos nós percebemos e da qual falamos, em rede. e… falando em collor… ele, renan, sarney, onde estão, representam a quem? será que os interesses representados por estes e outros tem algo a ver com as ruas, agora?
de novo, do texto do blog sobre as manifestações na turquia…
as pessoas, em rede, com a informática em suas mãos, o tempo todo, em qualquer lugar, são tudo o que governos autoritários não queriam: sabem de quase tudo que lhes interessa na hora que acontece, conectam-se com todos os outros que têm e querem dizer ou fazer algo sobre o assunto e podem, a qualquer momento, criar um movimento em qualquer lugar. pense num problema, não só na turquia mas em qualquer lugar onde alguns começam a entender para onde estão sendo levados e espalham tal rastilho para cada vez mais gente, usando arranjos impensáveis no tempo de john stuart mill ou em qualquer época recente onde o povo reagiu, na rua, aos mandantes de então.
mas…
as redes, em si, não mudam nada: o barulho social dificilmente mudará governos, pelo menos enquanto houver uma representação mediando a democracia. para mudar um estado de coisas, hoje, a articulação em rede tem que ir pra rua, pois as redes são apenas plataformas de conexão para relacionamento e interação. as estruturas de poder estão no mundo real e é nele que as pessoas precisam agir. e pouco adianta, por outro lado, “desligar a rede”, como o egito chegou a tentar: tudo depende da internet, hoje, do próprio governo às bolsas e quase tudo que há em uma sociedade minimamente funcional. desligar a rede é parar o país, e quase não é mais possível em nações estruturadas, ditatoriais ou não.
aqui, ainda bem, as redes já foram para as ruas. as verdadeiras redes sociais são as pessoas suas necessidades, demandas, desejos, preocupações… e agendas.
as redes são nossas conexões, relacionamentos e interações, no espaço-tempo de acontecimentos em contexto. e contexto, hoje e pra frente, será sempre um fluxo, num espaço digital, conectado, móvel, cada vez mais programável. daí é que sairão articulações pras ruas, palcos, debates… e, se formos espertos o suficiente, para a mais que necessária reorganização da representação democrática e para um novo modelo de governar, que atenda necessidades, demandas, desejos, preocupações da vasta maioria, e não de uma ínfima minoria aboletada no poder.
quinta feira, recife vai pra rua. ontem à noite, meu filho de 11 anos nos perguntou se podia ir também: ele quer protestar “contra o aumento das passagens de ônibus e a corrupção”. ele estará lá, sem dúvida. e meu otimismo, de repente, aumentou muito: pois ele não deve ser o único garoto de 11 anos querendo ir pras ruas… deve haver muitos, uma multidão deles. e o brasil, neles, tem esperança. e futuro.