[Texto da série “Silvio Meira no G1”, publicado originalmente no G1, em 03/10/2006.]
Fim de uma tarde de sexta, 29 de setembro de 2006. Tudo parece dentro dos conformes, até a eleição que se avizinha. De repente, um avião da Gol – fazendo o vôo 1907, 155 pessoas a bordo- se choca com um jato executivo em pleno ar, sobre a floresta amazônica, entre Brasília e Manaus. Choque de aviões no ar é muito raro [menos de 20, desde 1960] e, em lugares tão remotos e sem testemunhas, é muito difícil saber direito o que aconteceu. Mas o Ministro da Defesa, a julgar pelo noticiário do dia, anunciou, pouco tempo depois, que “deve ter sido um descuido da tripulação da Gol”.
Só que aviões não saem por aí, no espaço, como querem e bem entendem: um conjunto de centros de controle de tráfego aéreo [em cada país] decide [e ordena] os caminhos por onde uma aeronave pode voar. Dada uma origem e um destino, o controle estabelece que rotas um avião vai usar, seja ele um Airbus 380 ou um Embraer Phenom. As rotas aéreas são túneis virtuais, no “céu”, dentro dos quais os aviões “controlados” por tais sistemas [de informação, operados por e dependentes de seres humanos] são obrigados a manter uma distância regulamentar uns dos outros. Assim, quando o leitor embarca de Brasília a Recife e o piloto diz que está voando na proa [direção] de Bom Jesus da Lapa, ele não o faz porque quer, mas porque um túnel no sentido Brasília-Recife, naquela hora, para aquele vôo, passa por lá, numa altitude pré-determinada.
Há perguntas básicas a fazer, olhando para o “sistema de informação” ao redor dos aviões acidentados, antes de se chegar a uma conclusão:
- Por que um jato executivo voava em rota de colisão com um avião comercial?
- Será que o controle de vôo botou os dois em tal situação? Ou…
- …o controle de vôo nem sabia que o jato executivo estava lá e…
- … não fez nada [ou não tinha condições de fazer] para tirá-lo de lá?…
O ecossistema de aviação de um país minimamente organizado é um sistema de informação, cheio de computação, comunicação e controle por todo lado, dentro e fora dos aviões. Como vai ser, em futuro próximo, a malha viária das cidades: é provável que só consigamos minimizar os engarrafamentos das metrópoles quando tivermos controle “a priori” sobre que veículos podem estar em que ruas e quando. Um sistema de informação rudimentar para tal controle existe hoje em lugares onde há rodízio [como São Paulo] em função das placas ou onde se paga uma taxa de engarrafamento para entrar em certas regiões da cidade [como Londres]. Mas, no caso do ar, a situação é muito mais complexa e tem que ser tratada como tal. Afinal de contas, não dá [só] para multar um avião que está em rota de colisão com outro. A qualquer momento, pode haver centenas de aeronaves no ar, transportando dezenas de milhares de vidas [veja o tamanho do problema, nos EUA, aqui].
Nossas vidas, nos aviões, dependem de um grande, diverso e nem sempre devidamente conectado sistema de informação, cujo papel principal é garantir que toda aeronave no seu espaço aéreo saiba por que está onde está, ao mesmo tempo em que assegura que um avião qualquer não vai, de uma hora pra outra, entrar no microespaço do outro. Se isso acontecer, a chance de uma catástrofe é muito alta, e foi o que aconteceu com o vôo 1907, porque mesmo o sistema anti-colisão, instalado em todos os aviões mais modernos, é um último recurso, que nem sempre -como sabemos- funciona a contento.
Um dos casos recentes de colisão no ar, descoberta quase na hora pelo controle de tráfego aéreo e avisada aos pilotos, foi a que matou 59 pessoas quando um avião da DHL colidiu, sobre a fronteira suíço-alemã, com um Tupolev da Bashkirian Airlines: os dois pilotos mergulharam para evitar o desastre e a igualdade das ações foi o fim de todos os passageiros e tripulantes. Tanto os aviões daquele acidente como os da tragédia brasileira eram equipados com sistemas de alerta contra colisão; no caso dos Embraer Legacy e Boeing 737-800 do acidente de sexta-feira, os aviões tinham menos de um mês de uso e seus sistemas tinham passado por todos os testes de fábrica.
Assumindo que nenhuma das duas tripulações envolvidas no acidente estava, deliberadamente, tentando bater no outro avião, a responsabilidade do acidente é da assimetria de informação entre os envolvidos: se os aviões e o controle responsável pela área soubessem, com a devida antecedência, do choque iminente, a comunicação entre as partes teria criado condições – eliminada a assimetria de informação -para que o desastre fosse evitado. Uma coisa que o Ministro da Defesa deveria estar fazendo, desde sexta à tarde, era garantir ao país que – seja lá o que tiver acontecido -haverá uma ampla investigação no sistema de informação [e controle] de tráfego aéreo, para dar certeza aos brasileiros que, ao entrarmos num avião, não estamos correndo os mesmos riscos do Gol 1907, por culpa de responsabilidades estatais que deveriam funcionar bem perto de 100% de eficácia e eficiência, o que não parece ter sido o caso naquele dia.
A região onde aconteceu o acidente de sexta-feira está entre as zonas de influência dos controles de tráfego aéreo de Brasília e de Manaus; o acidente da DHL foi na interface dos controles aéreos da Alemanha e da Áustria. Lá, o papel de cada um dos controles no acidente foi objeto de muita discussão. Aqui, especialistas dizem que a região do acidente é uma “terra de ninguém”, apontando para a possibilidade de um dos dois centros de controle ter tomado uma atitude, em relação a um dos aviões, sobre a qual o outro não teve conhecimento. Ou pelo menos não a tempo.
Estamos vivendo na era da informação. Isso não significa apenas que há computadores em todo canto e que podemos acessar a internet, mas que boa parte das nossas vidas e das coisas de que dependemos nas indústrias, serviços, saúde, segurança, transportes depende cada vez mais de informação e de seu processamento eficiente e eficaz. E que toda vez que isso não acontecer alguma coisa muito grave pode acontecer. Desde desaparecer dinheiro das nossas contas bancárias até aviões se chocarem no ar.
Tomara que não haja nada errado com o controle de vôo. Mas, como o governo não vem tendo a tradição de investigar [seja lá o que for] a sério e profundamente -apesar de todas as declarações em contrário-, meu medo de avião aumentará muito. Que tudo dê certo, nos nossos vôos, nem que seja por acaso…
Agora, se não houver uma coluna aqui, semana que vem, procurem o Ministério da Defesa para reclamar…