uma pergunta que já deve ter passado pela cabeça de muita gente é… o que é o bom senso, e como é que a gente descobre se tem uma boa dose dele?
não é fácil de responder. primeiro, porque quase todo mundo acha que tem bom senso. uma definição diz que bom senso é a… forma sensata e equilibrada de decidir e julgar… ou a forma de agir que não é afetada pelas paixões, que se pauta na razão e no equilíbrio, de acordo com os padrões e a moral.
outra definição diz que bom senso é… a capacidade média que uma pessoa possui, ou deveria possuir, de adequar regras e costumes a determinadas realidades considerando as consequências, e, assim, poder fazer bons julgamentos e escolhas.
segundo, porque duvido que você conheça uma pessoa que confessa não ter bom senso. e aí é que está; por mais raro que seja, e é, se considerarmos apenas a opinião de cada um sobre si mesmo e somarmos todo mundo sem ponderar [como se isso pudesse ser feito], o bom senso é universal. o que nos põe diante de um paradoxo, pois.
deixando estas preocupações filosóficas para daqui a pouco, que tal a gente tentar chegar numa definição operacional do que é, ou seria, bom senso? como a definição, a princípio, é aplicada a seres humanos, uma pessoa que tem bom senso…
- sabe o que sabe;
- sabe o que não sabe;
- sabe como adquirir [ou já tem] métodos para aprender o que não sabe, e -antes de tentar- consegue determinar se tal aprendizado vale a pena [no contexto];
- sabe que os outros podem saber o que ela não sabe, consegue identificar aqueles que sabem e, quando necessário, sabe como escutá-los… e levar seu conhecimento e opiniões em conta nas suas decisões, quando precisa tomá-las e, por fim…
- sabe que os outros não precisam saber o que ela sabe, que a ela não precisa saber o que os outros sabem, e que o ponto comum entre as pessoas de bom senso é conseguir se comunicar, relacionar e interagir, levando em conta princípios básicos [no contexto de um argumento, discussão, projeto, aventura… vida] que levem a um consenso mínimo viável para que o esforço conjunto [se é que há ou é necessário um] para responder uma questão ou resolver ou mitigar um problema em pauta seja exequível, criando significados e conhecimento novos, pelo menos naquela situação, que são adicionados ao… bom senso [do] coletivo.
o que é saber? bem… aí pode começar tudo de novo… e você precisa de bom senso pra ir até o dicionário [este é um método para se descobrir o que não se sabe] e procurar,
noutro nível de investigação, deve-se ir à enciclopédia [pelo menos] e procurar e refletir sobre as diversas interpretações de saber, especialmente as que vêm do grego ἐπιστήμη, que poderíamos traduzir por entender, o conhecimento do que, e as oriundas de τέχνη, o conhecimento do como: aqui pra nós, são ciência e tecnologia, que desde a grécia antiga ajudam todo mundo [que quer ser ajudado] a entender como tudo no mundo funciona e a intervir em quase tudo, mudando até o funcionamento do mundo [inclusive para quem não quer que ele mude].
será que deveríamos exigir -de todo mundo- um entendimento mínimo sobre ciência e tecnologia? sim. isso quer dizer que todo mundo deveria estar pronto para discutir ἐπιστήμη e τέχνη, citando desde os originais gregos até thomas kuhn, no original? claro que não. mas um nível mínimo de conhecimento [saber!] é absolutamente fundamental até para participar, como ser humano e cidadão, de discussões sobre tudo o que nos envolve, desde a origem do universo e da vida, a sustentabilidade da vida na terra [não, ela não é plana…], a existência de deus[es] -ou se eles são criados pelas sociedades… enfim, as discussões que importam nas nossas vidas.
aliás, sobre deuses, um dos pontos de partida da discussão sobre tais entidades é a hipótese de grandes deuses, segundo a qual sociedades complexas e de grande porte precisariam ser criadas por um deus, garantindo que um “povo observado é povo bom”. mas… isso quer dizer que grandes deuses “criam” grandes sociedades? não. por que? um estudo de 414 sociedades mostra que “seus” deuses surgiram [às vezes muito] depois da sociedade, em si, se estruturar. e não há registro de nenhuma sociedade complexa surgindo depois de “seu” deus. isso faria com que a noção de “deus” deixasse de existir? não. que as pessoas deixassem de acreditar num deus? não. que quem não acredita deixasse de respeitar a crença dos que têm a fé? também não.
onde o bom senso e o conhecimento entram na discussão, inserida nesse contexto como um caso extremo, para criar a oportunidade de se fazer exatamente essa pergunta? parte significativa do bom senso vem da busca pelo conhecimento; e parece que teremos que nos contentar, para sempre, em não sabermos tudo, sobre tudo, por maior que seja o esforço, energia e número de pessoas envolvidas no processo de descoberta. se há uma coisa que a filosofia [vista, ela própria, como um processo que nos conduz ao bom senso, como definido acima] nos garante é que há múltiplas formas de ver e tentar entender o mundo e muitas delas são incoerentes entre si.
o ceticismo “garante” que podemos descartar certas classes hipóteses, mesmo sem ter evidências contra elas. por exemplo, é possível descartar a hipótese de que um deus existe, mesmo sem ter as provas de que ele não exista. ao mesmo tempo, é possível descartar a hipótese de que um deus não existe, ainda que não se tenha as provas de que um, de fato, existiria.
parte do arcabouço filosófico que nos ajudaria a ter bom senso, para que serve o método científico, neste caso? bem… para indicar que a existência de um deus é teoricamente indecidível. o que é ótimo -para terminar nosso argumento-, porque num sistema [formal] que contenha pelo menos a aritmética de peano e seja consistente [onde não é possível provar que 1 = 0, por exemplo]… há proposições que não se pode provar nem verdadeiras… e tampouco falsas.
é o que nos dizem os teoremas de gödel, os resultados mais importantes da lógica moderna… que não podem ser aplicados [diretamente] ao método científico, que não é um sistema formal, mas que muito provavelmente também devem valer por lá… por tudo o que nos dizem a filosofia, o conhecimento e o bom senso que temos… até aqui.