“O futuro passa batido nas grandes rodadas de decisão sobre o país. Passamos um monte de tempo, aqui, decidindo o passado…”
[Texto integral de entrevista concedida ao jornalista P. H. Noronha,
publicada no número 11 do FENAINFO NOTÍCIAS, 3/5/2017]
Silvio Meira tem um currículo extenso: engenheiro eletrônico pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA); mestre em Informática pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPe); doutor em Computação pela University of Kent at Canterbury, na Inglaterra; Chief Scientist da TDS.company (“um negócio que leva outros negócios para o futuro, digital”).
Seu nome é referência quando se fala em pesquisa e inovação em Engenharia de Software no Brasil. Foi um dos fundadores e cientista-chefe por mais de 12 anos do Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (Cesar). E sempre trabalhou fazendo a conexão entre a ciência da computação e o mundo dos negócios, das startups às grandes corporações nacionais e multinacionais.
Nesta entrevista ao Fenainfo Notícias, Silvio Meira fala dos desafios e oportunidades que o difícil cenário brasileiro apresenta às empresas brasileiras de Tecnologia da Informação.
Estamos no auge da crise econômica, mas ao mesmo tempo com a revolução digital batendo à nossa porta – o que pode representar oportunidades de desenvolvimento de bons negócios. Como a empresa brasileira de TI encara uma situação como essa, com a crise de um lado, e um novo mundo de oportunidades do outro?
De certa forma, as revoluções digitais – hardware, software, redes, móvel… – sempre bateram à porta em tempos de crise, aqui. A crise, no Brasil, não é anormal, é a norma. Sempre investimos pesadamente e acompanhamos a evolução do mercado global de TICs, mesmo dentro de qualquer crise. Até porque, em certas horas, era imperativo: uma das maiores alavancas para o avanço da informatização das empresas, no Brasil das décadas de 70, 80 e 90, foi a crise da hiperinflação daqueles tempos. Um inferno. Informatizado. Claro que não foi o melhor dos mundos. Mas, para informática, não foi o pior.
Um grande número de negócios brasileiros de TICs se formou naquela época. O mesmo acontece agora: estamos na maior crise de todos os tempos (por enquanto; o futuro vem aí) e a Internet das Coisas está chegando, de vez. Pense no tamanho da oportunidade. Porque o investimento em IoT, agora, vai significar mais precisão, mais controle, melhor rastreamento, mais qualidade e produtividade… e um monte de novas possibilidades que pouco imaginamos. Tudo nos próximos dez anos. Até para escapar dos piores efeitos da crise, as empresas que compram TICs vão investir. E os negócios de TICs, da Internet das Coisas, vão surgir e proliferar.
O desenvolvimento da Internet das Coisas está acontecendo de forma muita acelerada lá fora, mas aqui, no Brasil, parece que ainda estamos engatinhando. Nossa indústria corre o risco de ficar defasada?
Com pelo menos 10 anos de atraso, estamos produzindo uma Política Nacional para Internet das Coisas, um esforço liderado pelo BNDES e MCTIC, envolvendo muita gente boa e comprometida com o resultado, pelo menos, de criar um marco político, com indicação de escolhas, incentivos, insumos e regulação para o setor. Se e como isso vai funcionar na prática – quando a política se encontrar com a realidade, e for preciso escolher prioridades, alocar recursos, criar oportunidades, com o governo ajudando muito e atrapalhando pouco – é o que vamos ter que ver no futuro.
Em condições normais de temperatura e pressão, um dos sinais mais claros de que alguma coisa não vai dar certo no Brasil é justamente a existência de uma “política nacional” para aquela coisa. Em algumas situações combinada com a declaração de que aquela área é, agora, “estratégica” para a nação. Aí é o fim.
Tomara que seja diferente justamente agora, na Internet das Coisas, quando as empresas de TICs e seus clientes mais precisam e a oportunidade é tão grande.
Em termos de inovação e pesquisa, você acha que, com o corte de verbas públicas, aliado à crise econômica, estamos dando um passo atrás?
O Brasil, mesmo sem uma crise destas dimensões e o consequente corte de verbas, nunca tratou inovação e seus componentes de conhecimento – educação de qualidade e pesquisa – como parte de grandes estratégias nacionais. Houve alguns suspiros estratégicos, aqui e ali, por uma ou outra razão pontual, mas eles sempre foram sufocados pela balbúrdia geral da (in)ação pública.
Estruturalmente, ainda se pensa em “amparo à pesquisa” no país como se pesquisa tivesse que ser amparada, como se a pesquisa fossem velhos artistas que não ganharam o suficiente, nas suas carreiras, para ter um final tranquilo. Se a pesquisa, nos orçamentos públicos, está no máximo sendo “amparada”… a coisa não vai bem, mesmo quando a economia está muito bem.
Por outro lado, a ausência de uma estratégia para resolver grandes desafios nacionais, que seguramente demandariam componentes de inovação e conhecimento e suas externalidades, faz com que, via de regra, haja uma percepção de que o país “não precisa” investir em C&T&I. Ledo engano. Resultado de uma escassa visão do mundo imediato, ao redor, e de uma total cegueira para o futuro. O futuro passa batido nas grandes rodadas de decisão sobre o país. Passamos um monte de tempo, aqui, decidindo o passado…
Empresas do polo de Blumenau (SC) dizem que falta mão de obra especializada para TI. Outras regiões fazem a mesma queixa. As empresas ainda estão longe das universidades e dos centros de pesquisa acadêmicos?
O problema de escassez de capital humano em quantidade e qualidade para novas áreas de atividade econômica é universal, não é só do Brasil. Aqui e em qualquer lugar, localmente, ele é mitigado pelas próprias empresas e suas associações – ou por polos tecnológicos, como é o caso dos programas que temos no Porto Digital. Isso é caro e leva tempo; aumenta custos e diminui produtividade.
Países atrativos para pessoas competentes, como o Canadá e EUA, têm uma política proativa de atração de capital humano do resto do mundo para resolver parte do problema. E a dimensão disso não é trivial: somente no ano até abril, foram 85 mil vistos H1B nos EUA, que em boa parte se destinam a empresas de TICs. Mas a demanda foi de quase 200 mil solicitações e, mesmo com o programa de vistos de trabalho para estrangeiros, a estimativa do próprio governo americano é de haver 1,4 milhão de postos de trabalho em aberto em 2020, para desenvolvimento de software – veja bem, só em desenvolvimento de software –, por pura e simples falta de pessoal qualificado.
O que o Brasil deveria fazer? Na minha opinião, ter uma política combinada de atração de talentos de fora e de formação de mais talentos aqui. Não tem – e nem terá, no curto ou médio prazos – nenhuma das duas. É bom a gente, no mercado, literalmente, se virar. A academia pública não tem qualquer incentivo para formar mais e melhores profissionais; vai ser fundamental articular esse processo de criação de uma rede de competências humanas de alta qualidade com as escolas privadas, ao mesmo tempo em que se cria oportunidades que justificam o investimento nessa formação, por parte das escolas e dos aprendizes.
Educação é um investimento caro, tem que ser planejado com cuidado. O resultado da falta de educação, que é consequência direta da falta de visão e planejamento, é ainda mais caro. Pena que não se faça esta conta, no Brasil.
Em meio a essa crise, ainda temos espaço para lançamento de startups?
Sim, sempre e muitas. Exatamente nas crises é que as empresas de TICs existentes tendem a sofrer mais e abrir espaços para novos negócios. Por problemas de todos os tipos, desde arrasto negocial – com modelos de negócios amarrados, com suas redes de clientes, em premissas do passado… – até fadiga organizacional, o negócio pode até continuar bom, mas as arquiteturas de criação, entrega e captura de valor já perderam a maior parte de eficiência e eficácia lá do auge do negócio.
Ao mesmo tempo, os negócios que dependem de TICs sempre estão começando a contratar coisas que eles já sabem que precisam e que não são nem serão entregues por negócios existentes. Como se não bastasse, há todo um conjunto de coisas das quais nenhum incumbente desconfia, seja quem – agora – contrata ou quem fornece soluções de TICs.
Um dos invariantes do cenário contemporâneo de TICs, nos últimos 20 e tantos anos, é que ninguém deve estar seguro de sua capacidade de competir sem mudar. E mudar muito e rápido, às vezes. E isso é oportunidade para todo mundo, inclusive para antigos, estáveis e seguros fornecedores de TICs se redesenharem dentro dos novos mercados que conseguem ver.
Nem sempre o caminho é um startup. Pode ser, pura e simplesmente, o redesenho de um negócio que já foi excelente e ainda é bom… e que pode passar a ser espetacular se aproveitar as oportunidades que aparecem nas transições, seja em tecnologias, entre modos de fazer, processos de negócios, paradigmas, plataformas… e por aí vai.
É dificil fazer essas transições? Claro que sim. É impossível? Claro que não. Qual é o incentivo para inovar, mesmo sob o ataque das mais agressivas startups? Sobreviver. Quem não muda, morre.
Do lado da startups, qual é o incentivo? A quase a totalidade dos incumbentes, entre os fornecedores de TICs, vai ler esta resposta e achar que ela se aplica a “outros”, e não a si mesmo. É exatamente o lugar dessa galera, nas novas e renovadas cadeias de valor, que seu startup vai ocupar. Corra. Tá livre.
De maneira, geral, o que você admira e o que você acha ruim nas empresas brasileiras de TI?
Ninguém pode deixar de admirar a capacidade do setor brasileiro de TICs não só de subsistir, mas de continuar crescendo, resolvendo problemas, gerando trabalho, renda e impostos, dentro de um dos contextos competitivos mais agressivos do planeta. A bagunça tributária, fiscal, legal, regulatória, trabalhista, do país, combinada com o impossível grau de incerteza gerado por excesso e conflito de legislação e magnificado pela fúria arrecadatória pública, só é suplantada pela complicação única da burocracia estatal em todos os níveis; por um sistema de contratação, pelo aparelho estatal, que é um dos mais rudimentares e confusos da galáxia, somado à ineficácia e ineficiência do gasto público e à distopia da política nacional. Sobreviver, aqui, em negócios [não só] de tecnologia, é quase impossível.
Se seu negócio sobrevive no Brasil, ele estaria – em tese – pronto para competir em qualquer lugar do mundo. Só que não. Exatamente porque os negócios de TICs brasileiros têm que praticamente lutar contra o Brasil descrito acima para sobreviver aqui. Isso faz com que quase nenhum negócio brasileiro de TICs – seja hardware, software ou serviços – tenha conseguido “se livrar” do Brasil e ganhar parcelas significativas no mercado mundial, correspondentes à relevância brasileira do PIB global.
Até aqui, falhamos, como setor, apesar dos sucessos pontuais muito importantes que temos que estudar mais de perto e detalhadamente para entender como foi possível, daqui, ser uma empresa inovadora e de performance e alcance mundial.
Visto de longe, parece mágica, mas não é. Quem chegou lá, pesquisou e descobriu novos caminhos e, em boa parte, desistiu de contratos públicos aqui. No Brasil, em TICs, quem atende [como fornecedor] a complicação que é o Estado acaba sem energia para fazer qualquer outra coisa. Talvez seja esse é o maior problema de uma classe de empresas de TICs, hoje: achar que o Estado é um grande cliente. Não é. E não é por limitações das empresas privadas, nem necessariamente do contratante público; é por causa de um contexto a elas imposto por um por todo, um sistema público bisonho, caro e, principalmente, ruim.