a partir de hoje, e pelos próximos dias, o blog passa a serializar um documento produzido pelos professores ronaldo lemos e bruno magrani, da escola de direito da fundação getúlio vargas do rio de janeiro, sobre o que deveria –e no caso do brasil bem que poderia- ser o regulamento [ou, em boa parte, a falta dele] para a condução de um processo eleitoral aberto, democrático, colaborativo, centrado na participação do eleitor em todas suas fases e, em particular, no uso amplo, geral, irrestrito –e responsável- da internet na campanha.
o texto abaixo, gentilmente cedido por ronaldo e bruno a este blog, vai desde as considerações gerais dos porquês de uma eleição aberta na rede, passando por exemplos da campanha americana recente, até os pontos e vírgulas das mudanças que teriam que ser realizadas no projeto que veio da câmara [e que para lá terá que voltar] para que a nossa eleição próxima fosse, de verdade, na rede e no século XXI.
há razões variadas para que se faça menos do que ronaldo e bruno sugerem. nenhuma das razões que ouvi é boa o suficiente para que não se modifique o projeto da câmara de tal forma que o resultado seja fiel ao uso que já se faz da rede. e isso porque, a se aprovar alguma coisa muito diferente do que os hábitos e práticas em amplo uso na internet, teremos uma desobediência civil em escala nacional, impossível de ser controlada, e mais uma daquelas leis brasileiras que “não pegam”.
a urgência do tema diz que a votação no plenário do senado terá que ser feita na semana da pátria. este blog aproveita o fim de semana da independência para chamar suas excelências, os senadores, à sua responsabilidade de legislar em nome do, pelo e para o povo e, nesta semana, abrir a rede ao processo eleitoral.
abaixo, a primeira parte do texto de ronaldo lemos e bruno magrani, escrito de tal forma que o senado bem que poderia usá-lo, como está, para mudar o que hoje está quase a caminho de ser aprovado por lá. parte do que bruno e ronaldo consideram no texto está de certa forma tratado no senado, mas de forma, em alguns casos, barroca, como tratar propaganda na internet como se portais fossem jornais, e excluindo quase a totalidade dos candidatos. por isso é que é importante ler o texto até o fim, para saber o que e como deve –ou deveria…- ser mudado na atual proposta de legislação eleitoral para a rede.
boa leitura. amanhã tem mais.
Proposta de Modificação e Comentários Sobre o Projeto de Lei de Regulamentação de Campanha Eleitoral pela Internet
Ronaldo Lemos
Professor-titular da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas, RJ
Mestre em Direito pela Universidade de Harvard
Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo
Bruno Magrani
Professor da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas, RJ
Mestrando em Direito pela Universidade de Harvard
Introdução
A Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei (PL) [1] que tem por objetivo expandir as possibilidades de campanha eleitoral na Internet. O projeto é um importante avanço, mas traz ainda problemas significativos. Neste texto pretendemos tecer alguns comentários gerais sobre o atual projeto, apontando oportunidades e sugerindo alternativas que possibilitem aproveitar a Internet para promover participação ativa e difusa no debate eleitoral.
Alteração do Projeto Lei e Processo Legislativo
A alteração de um projeto de lei por outra casa do Congresso acarreta a sua reapreciação pela casa de origem. Isso significa que a incorporação pelo Senado de qualquer das alterações aqui sugeridas implicaria a sua necessária reapreciação pela Câmara. A única exceção a esta regra encontra-se na hipótese da emenda que "não importou em mudança substancial do texto", conforme entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal [2]. Em outros termos, dado o curto prazo para aprovação das regras do processo eleitoral que começará a valer em 2010, qualquer das alterações aqui sugeridas precisa de mobilização das duas casas para a rápida aprovação do projeto.
Participação voluntária individual em campanha eleitoral e o princípio da legalidade
A atual legislação eleitoral brasileira permite a campanha eleitoral na Internet somente quando realizada pelo candidato em seu próprio website. Ao fazer isso, deixa de fora o ator mais importante do processo: o eleitor. Se perante a mídia tradicional seu papel era de espectador passivo, na Internet a equação se inverte e qualquer indivíduo pode alcançar uma audiência tão alta quanto qualquer grande empresa de mídia. O PL remedia este problema possibilitando que pessoas naturais façam campanha eleitoral na Internet “por meio de mensagem eletrônica para endereços cadastrados gratuitamente pelo candidato, partido ou coligação…” e “por meio de blogs, redes sociais, sítios de mensagens instantâneas e assemelhados, cujo conteúdo seja gerado ou editado por candidatos, partidos ou coligações ou de iniciativa de qualquer pessoa natural” [3].
Essa ampliação é extremamente positiva e desejável para o processo eleitoral, mas a premissa de participação sobre a qual o PL se baseia parece estar equivocada. Ao tentar delimitar o espaço de atuação na web, o projeto inverte regra básica da legalidade. Se por este princípio o indivíduo é livre para fazer tudo o que a lei não lhe proibir, ao estabelecer um limite relativamente fechado através do qual ele pode atuar na campanha online, o PL acaba por impor restrição deletéria. Em termos práticos: produzir um vídeo ou compor um jingle voluntariamente para promover um candidato e postá-los online constituiria um meio assemelhado àqueles mencionados na lei? Independentemente da resposta, a mera inversão do princípio da legalidade combinado com esta indefinição já seriam suficientes para gerar dois efeitos: um desestímulo à participação ativa do cidadão na campanha eleitoral online e/ou uma potencial avalanche de processos na Justiça eleitoral, cuja eficácia limitar-se-ia apenas àqueles serviços que possuam representação no país.
A regulação atual dos meios de comunicação tradicional de massa é fortemente influenciada por duas características básicas de sua arquitetura tecnológica: unidirecionalidade e centralidade. Rádio e TV são unidirecionais por só permitirem que a comunicação ocorra em um sentido – da emissora para os aparelhos receptores – e centralidade, pois sua essência é a comunicação de um para muitos. A lei atua para equalizar e neutralizar as influências negativas que esta configuração importa no processo de campanha eleitoral. A Internet modificou essa dinâmica transformando a comunicação de massa em multidirecional – de espectador o indivíduo vira ator do processo de comunicação – e descentralizada – a comunicação ocorre de muitos para muitos. Além disso, a internet ignora limites jurisdicionais. Há muitos serviços estrangeiros populares entre brasileiros, que por sua vez não possuem representação no país, o que praticamente inviabiliza o exercício da jurisdição sobre os mesmos. Nesse sentido, a regulação precisa adequar-se a esta nova arquitetura. Outrossim, a regulação da propaganda eleitoral não pode atingir o espaço legítimo de discussão e informação dos indivíduos que atuam voluntariamente em prol de seu candidato, ou de sua causa.
Por fim, um outro ponto que merece destaque é o da possibilidade de contribuição com cartão de crédito para a campanha. Quanto mais fácil, amplo e transparente for o processo de doações de campanha maior será a pluralidade de forças no processo eleitoral. Para atingir este objetivo a identificação das fontes das doações é crucial, pois possibilita limitar as quantias repassadas por cada indivíduo ou organização. Esta tarefa pode ser facilmente realizada estabelecendo-se que o doador utilize cartão de crédito próprio para tal – o que pode ser inclusive instituído através de resolução do TSE. O PL poderia ampliar ainda mais o mecanismo de doações, desde que sejam assegurados mecanismos eficazes de identificação do doador, tal qual por pequenas doações realizadas através do telefone e mediante débito na fatura da linha, via celular, dentre outros meios.
Remixes, Colagens e Mashups e Propaganda Paga: a nova campanha eleitoral na Internet
Um dos vídeos mais famosos da campanha de Barack Obama foi produzido sem nenhum envolvimento do candidato ou de sua equipe. Em 2 de fevereiro de 2008 o cantor Will.i.am da banda Black Eyed Peas publicou no Youtube um vídeo que consistia em uma bem elaborada colagem de um discurso realizado por Obama em New Hampshire e sobre o qual foi sobreposta melodia gravada por diversos artistas. O vídeo foi visto mais de 26 milhões de vezes [4] e se destacou na campanha presidencial americana. Tal fenômeno dificilmente se repetiria no Brasil. Não pela falta de criatividade, mas pela atual redação do projeto de lei em tela.
Se por um lado o projeto contempla a possibilidade de que emissoras de TV publiquem em seus websites vídeos de debates entre candidatos [5], por outro, zonas cinzentas do projeto levantam dúvidas sobre a legalidade da produção e disponibilização na Internet de remixes, colagens e mashups com vídeos, jingles e imagens dos candidatos. Isso ocorre primeiramente pela restritividade do art. 57-B do PL, que não deixa claro a margem de atuação do indivíduo na campanha eleitoral online. Segundo, se considerarmos que tais práticas estão abrangidas pelo artigo 57-B do PL, ainda restaria dúvida sobre a incidência por analogia das regras sobre trucagem [6] e montagem [7] à Internet. De uma forma ou de outra, as transformações criativas, que já fazem parte da cultura moderna permaneceriam com a legalidade duvidosa, eventualmente levando ao desestímulo e/ou violação em massa do texto da lei. A sugestão para contornar tal problema seria permitir a realização de tais práticas como legítima forma de atuação dos indivíduos nas campanhas eleitorais, tal como ocorre em outras jurisdições, como nos Estados Unidos.
Outro ponto importante do projeto é a proibição de propaganda paga através da internet, conforme o artigo 57-C. Considerando o caráter global da internet e o fato de que muitos dos serviços utilizados no Brasil não possuem sequer sede ou representação no país, a eficácia dessa regra torna-se reduzida. Tal normativa incentiva a —exportação“ da campanha eleitoral para fora do país. Em vez de se promover o investimento em publicidade eleitoral no país, a regra acaba estimulando o investimento em sites e serviços da internet que sejam acessados por brasileiros, mas que possuam sua administração exclusivamente fora do país. Vale lembrar que o custo da publicidade na internet, ao contrário da mídia tradicional, pode ser bastante acessível até mesmo para pessoas físicas. Com isso, a contratação de propaganda pode ser feita tanto por candidatos como por particulares, o que dificulta ainda mais seu controle e origem. Nesse sentido, uma regra mais eficaz e com efeitos positivos para a internet brasileira seria a permissão do uso publicitário da internet, evitando-se assim a —exportação“ da campanha para serviços estrangeiros e valorizando os serviços locais, que por sua vez sujeitam-se à jurisdição da Justiça Eleitoral, permitindo inclusive a coibição de abusos.
[1] Projeto de Lei nº 5.498 de 2009 de iniciativa da Câmara dos Deputados.
[2] Neste sentido, veja STF – Pleno Adin nº 2.666-6/DF Rel. Min Ellen Gracie, Diário da Justiça, Seção 1, 6 dez. 2002, p. 51; STF – Pleno – Adin nº 2.238-5 – Rel. Min. Ilmar Galvão, Diário da Justiça, Seção I, 21 de maio de 2002, p. 65.
[3] Artigo 57-B, incisos III e IV do Projeto de Lei nº 9.548 de 2009.
[4] De acordo com informações constantes do site http://dipdive.com/about/. Acessado em 17 de julho de 2009.
[5] Art. 57-D §1º do PL 9.548 de 2009 – “Os conteúdos próprios das empresas de comunicação social e dos provedores de internet devem observar o disposto no art. 45. § 1º: É facultada às empresas de comunicação social e aos provedores a veiculação na Internet de debates sobre eleições, observado o disposto no art. 46.”
[6] Art. 45, §4º do PL 9.548 de 2009 – “Entende-se por trucagem tudo e qualquer efeito realizado em áudio ou vídeo que degradar ou ridicularizar candidato, partido político ou coligação, ou que desvirtuar a realidade e beneficiar ou prejudicar qualquer candidato, partido político ou coligação.”
[7] Art. 45. § 5º “Entende-se por montagem toda e qualquer junção de registros de áudio ou vídeo que degradar ou ridicularizar candidato, partido político ou coligação, ou que desvirtuar a realidade e beneficiar ou prejudicar qualquer candidato, partido político ou coligação.