ontem, o blog publicou a primeira parte de um documento produzido pelos professores ronaldo lemos e bruno magrani, da escola de direito da fundação getúlio vargas do rio de janeiro, versando sobre o regulamento para a condução de um processo eleitoral aberto, democrático, colaborativo, centrado na participação do eleitor em todas suas fases e, em particular, no uso amplo, geral, irrestrito –e responsável- da internet na campanha.
o texto a seguir, gentilmente cedido por ronaldo e bruno a este blog, é a segunda parte do argumento e entra, em detalhe, nas modificações que deveriam ser feitas no projeto que veio da câmara para o senado. como dissemos antes, há razões variadas para que se faça menos do que ronaldo e bruno sugerem; mas nenhuma das dificuldades que os senadores alegam é boa o suficiente para que não se modifique o projeto da câmara de tal forma que o resultado seja fiel ao uso que já se faz da rede.
e isso porque, a se aprovar alguma coisa muito diferente do que os hábitos e práticas em amplo uso na internet, teremos uma desobediência civil em escala nacional, impossível de ser controlada, e mais uma daquelas leis brasileiras que “não pegam”.
a urgência do tema diz que a votação no plenário do senado terá que ser feita na semana da pátria. este blog aproveita o fim de semana da independência para chamar suas excelências, os senadores, à sua responsabilidade de legislar em nome do, pelo e para o povo e, nesta semana, abrir a rede ao processo eleitoral.
abaixo, a segunda parte do texto de ronaldo lemos e bruno magrani, escrito de tal forma que o senado bem que poderia usá-lo, como está, para mudar o que hoje está quase a caminho de ser aprovado por lá. a primeira parte está neste link.
boa leitura. amanhã, quando o senado talvez vote a proposição, a gente fala de novo sobre o assunto, comentando o que pode acontecer se o congresso deixar de aproveitar esta oportunidade para fazer uma lei moderna, representativa do uso que sessenta e quatro milhões de brasileiros já fazem da internet.
Proposta de Modificação e Comentários Sobre o Projeto de Lei de Regulamentação de Campanha Eleitoral pela Internet [PARTE 2]
Ronaldo Lemos
Professor-titular da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas, RJ
Mestre em Direito pela Universidade de Harvard
Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo
Bruno Magrani
Professor da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas, RJ
Mestrando em Direito pela Universidade de Harvard
[continuação: primeira parte neste link]
Suspensão do Acesso a Websites
O art. 57-I do PL é particularmente preocupante. Segundo este artigo, "[a] requerimento de candidato, partido ou coligação, observado o rito previsto no art. 96, a Justiça Eleitoral poderá determinar a suspensão, por vinte e quatro horas, do acesso a todo conteúdo informativo dos sítios da internet que deixarem de cumprir as disposições desta Lei." Como as informações postadas em sites colaborativos e redes sociais são de difícil rastreamento e podem ser facilmente replicadas por diversos usuários, tal regra poderia ocasionar não somente a remoção de conteúdos específicos em um determinado website, mas também a sua completa suspensão.
A penalidade proposta neste artigo é desproporcional, pois penaliza de forma drástica terceiros de boa-fé, tais como donos e usuários de redes sociais e sites colaborativos e, por isso, deve ser rejeitada. Situação similar aconteceu em janeiro de 2006, quando o Tribunal de Justiça de São Paulo ordenou a suspensão integral do site YouTube em razão de vídeo divulgado contendo imagens com suposta violação de privacidade da modelo Daniela Cicarelli. A decisão, que acabou sendo repelida em análise posterior pelo Tribunal de Justiça, provocou a suspensão integral do site em razão de apenas um único vídeo, levando a significativos danos colaterais, além de furor de opinião pública.
Limitação temporal da Propaganda Eleitoral na Internet
Um bom motivo para que seja modificada a limitação temporal da propaganda eleitoral na Internet é a impossibilidade de eficácia no que tange à efetivação do texto da lei. Nesse sentido, é inviável conter manifestações de apoio por parte dos eleitores feitas de forma descentralizada ou fora da jurisdição da justiça eleitoral. Manifestações de apoio, frise-se, podem tanto ser simples mensagens demonstrando uma intenção de voto, até mixagens extremamente elaboradas envolvendo conteúdo audiovisual, muito mais próximos daquilo que se costuma caracterizar como propaganda eleitoral. Em meio a esses extremos, existe um espectro que admite múltiplas configurações de exercício da atividade criativa pelos próprios eleitores, que demandam, como afirmado, regime diferenciado para sua regulação. Em outras palavras, o limite temporal estabelecido pela lei faz sentido para propaganda eleitoral oficial, mas tem pouca eficácia com relação ao cidadão comum.
Oportunidades para fraude devem ser consideradas, como o denominado "astroturfing", termo que faz referência a um tipo de gramado artificial, e é utilizado nos EUA em contraposição à expressão "grassroots movement" ou seja, movimentos populares artificialmente engendrados, em oposição àqueles que nascem espontaneamente. Não se deve, entretanto, deixar que esse fato se coloque como motivo para justificar um regime inadequado à campanha eleitoral quando organizada, concebida, produzida e distribuída pelos próprios eleitores.
Se essas iniciativas, como o exemplo americano permite ilustrar, atingirem escala considerável, a letra da lei se aprovada como tal irá gerar violações em massa, em que um contingente muito grande de pessoas estará em direto descumprimento das prescrições legais, sem qualquer possibilidade de eficácia da restrição legal. Essa situação gera o perigo do “bode expiatório”, em que na impossibilidade de se aplicar a legislação de modo uniforme a todos que a descumprem, seleciona-se um ou poucos “culpados” com base em critérios arbitrários a quem interessa punir, situação que a todo custo deve ser evitada pela mudança no texto da lei.
Sugestões de Modificação
Em face do exposto acima, apresentamos abaixo nossa sugestão de redação para os artigos do PL. As mudanças seguem listadas em vermelho.
Alterações Sugeridas no PL 5.498/09
Art. 23. Pessoas físicas poderão fazer doações em dinheiro ou estimáveis em dinheiro para campanhas eleitorais, obedecido o disposto nesta Lei.
§ 2º Toda doação a candidato específico ou a partido deverá ser feita mediante recibo, em formulário impresso ou em formulário eletrônico, no caso de doação via internet, em que constem os dados do modelo constante do Anexo, dispensada a assinatura do doador.
§ 4º As doações de recursos financeiros somente poderão ser depositadas na[s] conta[s] mencionada[s] no art. 22 desta Lei por meio de: [modificado]
III – mecanismo disponível em sítio do candidato, partido ou coligação na internet, permitindo inclusive o uso de cartão de crédito, e que deverá atender aos seguintes requisitos:
a) identificação do doador;
b) emissão obrigatória de recibo eleitoral para cada doação realizada.
IV – serviço telefônico específico contratado pelo candidato ou partido que possibilite realizar doações mediante débito na fatura telefônica do doador, respeitados os requisitos do inciso anterior. [incluído]
§ 6º Na hipótese de doações realizadas por meio da internet, ou serviço telefônico, as fraudes ou erros cometidos pelo doador sem conhecimento dos candidatos, partidos ou coligações não ensejarão a responsabilidade destes nem a rejeição de suas contas eleitorais. [modificado]
Art. 45.
§ 3º (Revogado).
§ 4º Entende-se por trucagem todo e qualquer efeito realizado em áudio ou vídeo que degradar ou ridicularizar candidato, partido político ou coligação, ou que desvirtuar a realidade e beneficiar ou prejudicar qualquer candidato, partido político ou coligação. [excluído]
§ 5º Entende-se por montagem toda e qualquer junção de registros de áudio ou vídeo que degradar ou ridicularizar candidato, partido político ou coligação, ou que desvirtuar a realidade e beneficiar ou prejudicar qualquer candidato, partido político ou coligação. [excluído]
Art. 57-A. É permitida a propaganda eleitoral na internet, nos termos desta Lei, após o dia 5 de julho do ano da eleição.
§ 1º O prazo do caput não se aplica à propaganda eleitoral na internet realizada por pessoas naturais e pessoas jurídicas sem fins lucrativos, desde que atuem sem o percebimento ou pagamento de qualquer tipo de remuneração direta ou indireta para tal. [incluído]
Art. 57-B. A propaganda eleitoral na internet poderá ser realizada nas seguintes formas:
I – em sítio do candidato, com endereço eletrônico comunicado à Justiça Eleitoral e hospedado, direta ou indiretamente, em provedor de serviço de internet estabelecido no País;
II – em sítio do partido ou da coligação, com endereço eletrônico comunicado à Justiça Eleitoral e hospedado, direta ou indiretamente, em provedor de serviço de internet estabelecido no País;
III – por meio de mensagem eletrônica para endereços cadastrados gratuitamente pelo candidato, partido ou coligação;
IV – por meio de blogs, redes sociais, sítios de hospedagem de áudio e vídeo, ferramentas de mensagens instantâneas e quaisquer outros meios e serviços existentes ou que venham a ser criados na Internet, cujo conteúdo seja gerado ou editado por candidatos, partidos ou coligações ou de iniciativa de qualquer pessoa natural. [modificado]
“Art. 57-C. É permitida a veiculação de propaganda eleitoral paga na internet, aplicando-se as restrições da legislação eleitoral no que couber. [modificado]
§ 1º É vedada, ainda que gratuitamente, a veiculação de propaganda eleitoral na internet, em sítios:
I – de pessoas jurídicas com ou sem fins lucrativos; [excluído]
II – oficiais ou hospedados por órgãos ou entidades da administração pública direta ou indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
§ 2º A violação do disposto neste artigo sujeita o responsável pela divulgação da propaganda e, quando comprovado seu prévio conhecimento, o beneficiário à multa no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$ 30.000,00 (trinta mil reais).
Art. 57-F. Aplicam-se ao provedor de conteúdo e de serviços multimídia que hospeda a divulgação da propaganda eleitoral de candidato, partido ou coligação, as penalidades previstas nesta Lei, se, em vinte e quatro horas após a notificação de decisão da Justiça Eleitoral sobre a existência de propaganda irregular, não tomar providências para a cessação dessa divulgação.
§ Único – A notificação da Justiça Eleitoral deverá conter os seguintes dados, que devem ser fornecidos obrigatoriamente pelo autor da demanda: identificação do conteúdo, sua descrição, o endereço eletrônico onde se encontra hospedado (URI) e o relato de uma data e horário em que o conteúdo encontrava-se disponível para acesso. [incluído]
Art. 57-I. A requerimento de candidato, partido ou coligação, observado o rito previsto no art. 96, a Justiça Eleitoral poderá determinar a suspensão, por vinte e quatro horas, do acesso a todo conteúdo informativo dos sítios da internet que deixarem de cumprir as disposições desta Lei. [excluído]
§ 1º A cada reiteração de conduta, será duplicado o período de suspensão. [excluído]
§ 2º No período de suspensão a que se refere este artigo, a empresa informará, a todos os usuários que tentarem acessar seus serviços, que se encontra temporariamente inoperante por desobediência à legislação eleitoral. [excluído]
Art. 58.
§ 3º
IV – em propaganda eleitoral na internet:
a) deferido o pedido, a divulgação da resposta dar-se-á no mesmo veículo, espaço, local, horário, página eletrônica, tamanho, caracteres e outros elementos de realce usados na ofensa, em até quarenta e oito horas após a entrega da mídia física com a resposta do ofendido; [modificado]
* * * * *
é isso. e basta olhar para esta última modificação proposta pelos professores da FGV direito/rio para ver o que se está tentando atingir nesta versão do projeto: enquanto o original fala de resposta entregue em mídia física, ronaldo e bruno propõem, simplesmente “entrega da resposta”. se a origem da resposta puder ser estabelecida, o material pode vir do jeito que for, de pombo correio a twitter, que tanto faz.
leis que regulam demais ou especificam detalhes demais sempre têm um resultado emburrecedor, quando não cruel, na sociedade. é o efeito lúcifer: sempre que o “sistema” cria conjunturas propícias, pessoas –e, muitas vezes, o coletivo- degeneram para comportamentos que são uma combinação de obediência burra e desobediência feroz, potencialmente destrutiva. foi exatamente isso que ocorreu com o anjo predileto de deus, que ao ser mandado para o inferno como forma de castigo, se tornou o diabo em pessoa.
é isso que deveríamos evitar ao legislar. no brasil, temos exemplos demais de leis que induzem a comportamentos burros e anti-sociais. e, dada a oportunidade de fazer um conjunto de regras verdadeiramente sociais para a internet no processo eleitoral, perdê-lo por pressa, “excesso de zelo” ou qualquer outra razão seria o mesmo que mandar partidos, candidatos e eleitores, de castigo, para o inferno.