[Texto da série “Silvio Meira no G1”, publicado originalmente no G1, em 02/12/2006.]
Embaladas pela noção de que, alguma hora, todos os meios e mídias serão um só, empresas de comunicações e telefonia estão aprontando uma verdadeira confusão… digital. Até que a convergência os separe.
O noticiário mundial anda cheio de notas, reportagens, entrevistas e promessas de convergência digital, com cada empresa prometendo mais do que outra. Teles prometem YouTube em seus celulares, TVs a cabo entregam telefonia como parte do pacote, provedores de acesso querem fornecer TV via protocolo IP e, claro, quando houver, TV digital há de ser, segundo quase todos, interativa. A ponto de o espectador poder receber uma chamada telefônica, pela TV, bem no meio daquele capítulo intenso da novela.
Convergência digital, visto pelo lado da maioria das empresas de mídia ou do que costumava ser chamado de telefonia, parece ser um fazer tudo (todas as formas de mídia e comunicação) sobre sua plataforma física, qualquer que seja, para todos os públicos, desde que eu -a empresa- tenha controle sobre o que eles -os usuários- fazem.
Mas isso não vai dar certo, em último caso, porque não irá satisfazer justamente o tal do usuário, responsável pela renda e negócio da empresa. Por que não? Primeiro, talvez devêssemos concordar com uma definição de convergência, à qual podemos chegar através de exemplos. O que é um telefone? No passado, era um equipamento com um dial, microfone e fone de ouvido, conectado por fios a uma central telefônica. Bem no passado, era analógico e vez por outra funcionava. Hoje, é uma aplicação, responsável pela transferência bidirecional de áudio entre dois pontos, à qual podem ser agregadas funcionalidades de tantos tipos que, em muitos casos, escondem o tal telefone.
Esta aplicação, tanto como emeio, transferência de arquivos, interação com páginas web, rádio e TV, é possibilitada porque um conjunto de serviços -protocolos específicos para suportar cada tipo de aplicação- construído sobre uma infra-estrutura (processadores, roteadores, cabos, redes dem sio, satélites) que, em última análise, realmente movimenta os bits que tornam possível nossas conversas. Então, por trás da convergência, está uma rede estruturada em camadas: infra-estrutura, lá embaixo, serviços essenciais sobre ela e, no topo, as aplicações que usamos e pelas quais queremos -eventualmente- pagar. Convergência digital é transformar em infra-estrutura, serviços e aplicações, usando padrões abertos e inter-operáveis, o que antes eram sistemas particulares, fechados, cada um de um operador diferente.
E onde entra a confusão digital? Na hora em que uma operadora de celular (Verizon, nos EUA) avisa que vai prover YouTube a seus usuários, ao invés de convergência, é confusão. Por quê? Se fosse convergência, como o celular é um dispositivo que deveria estar funcionando sobre uma rede aberta, a operadora nunca precisaria dizer que vai -ou não- oferecer uma aplicação na telinha do meu celular. O problema seria somente meu: YouTube é um site, tem um endereço, eu vou lá e vejo o que quero. Como nós fazemos com nossos browsers. A menos que o leitor esteja na China, Irã, Cuba e outros países que censuram a internet, a escolha do que ver é livre. A internet é, por definição, convergente. A rede das teles, ainda pensada como telefonia, não é.
As operadoras, de fato, controlam o padrão de experiência que seus usuários têm na rede, deixando-lhes, na prática, pouca escolha. Para que tivéssemos convergência digital real, lá, era preciso primeiro “abrir” as operadoras para a rede. Em outras palavras, seria preciso que elas se vissem como as provedoras de infra-estrutura que realmente são. Compare, por exemplo, com as empresas de eletricidade: nenhuma delas tem a coragem, hoje, de dizer o que nós podemos ligar ou não nas tomadas. Fazemos o que queremos. Num passado distante, até que tentaram. Mas não deu, como não vai dar, no longo prazo, para as empresas de telecom.
O mesmo acontece com as redes de TV a cabo: apesar de ter alguma escolha dos canais que posso assistir, não tenho (pelo menos aqui em Recife) nenhum canal de Angola ou Senegal. Por quê? O distribuidor controla os sinais (digitais) entram em sua rede… de tal forma que só posso escolher entre os canais que já pré-escolhidos. Haveria uma grande audiência para uma TV do Senegal no Brasil? Provavelmente não. Mas se o mundo fosse mesmo convergente -e não confuso como os operadores o tornam-, um pequeno número de espectadores, poucos milhares, tornariam lucrativo ver o Senegal, via IP, no Brasil.
Olhando para as atuais infra-estruturas e serviços (teles e outros) de entrega de aplicações (de telefone a TV e internet) em nossas casas e empresas, não só cada ator que fazer tudo, mas quer, também, controlar tudo e, especialmente o que, como e quando o usuário vê, ouve ou tem acesso. O mesmo pode acabar acontecendo com TV digital, dependendo do caminho que escolhermos: os “operadores” de TV digital, os canais, podem querem ter o mesmo grau de controle que, hoje, as teles e os operadores de cabo têm, ou gostariam de ter, sobre seus espectadores.
É bom lembrar, e saber, que os espectadores, clientes e usuários estão fugindo das infra-estruturas e serviços fechados para sistemas abertos, onde podem definir, escolher e usar o que querem e bem entendem. As experiências que os usuários querem ter os incluem não só como atores, mas, muitas vezes, como diretores e até como construtores de seus serviços. Foi assim que surgiram Skype, YouTube, blogs e as muitas redes sociais que, hoje, ameaçam a mídia clássica e as velhas redes de telecomunicações.
Pode ser que a confusão digital continue ainda por muito tempo. Mas ela não há de durar para sempre. Mais hora, menos hora, teremos um mundo convergente sobre a mesma plataforma de computação, comunicação e controle, estruturada em termos de infra-estrutura, serviços e aplicações que podem ser usadas como, quando e por quem queira, sem interferência de “programadores centrais”. Se as teles algum dia pensaram que poderiam ser redes de TVs e vice-versa, cada um e todos controlando os usuários de suas “convergências”, parece que não vai dar.
Se alguém vai programar o futuro do usuário-espectador, é ele mesmo. E cada operador vai achar, breve, seu novo lugar na convergência de negócios que será criada pela convergência tecnológica. Afinal, confusão não é um bom negócio para ninguém.