A revista SELECT produziu uma história muito legal sobre o que vem acontecendo no centro do RECIFE na última década e meia, no PORTO DIGITAL. Claro que uma reportagem ouve muita gente, encontra várias histórias, faz uma costura e tenta, em um espaço limitado, explicar o que entendeu. A história, bem contada pela revista, está neste link. A minha conversa com Giselle Beiguelman, por emeio, depois de um chat no celular, está abaixo, pra ficar aqui, pra história.
Acima, foto (de Barbara Wagner) do autor dentro das obras de recuperação do “CONVENTO”, um dos doze prédios históricos já recuperados ou em recuperação pelo ação do Núcleo de Gestão do Porto Digital, apenas alguns das dezenas que sofreram intervenção da iniciativa privada. Os problemas de criar um sistema local de inovação transcendem a imaginação de qualquer um, em qualquer lugar do mundo; no Brasil, então, nem pensar. Agora pense, muitas vezes, em fazer isso no Nordeste. E num centro de cidade que estava quase abandonado (e ainda tem muuuitos problemas), que tem quase 500 anos e tem todo tipo de restrição (ou vantagem): histórica, arquitetônica, urbanística, cultural, de infraestrutura… Aí é onde a gente está tentado criar um sistema local de inovação de classe mundial, o PORTO DIGITAL.
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Silvio, você é considerado o mentor do Porto Digital. Partiu de você a ideia de ocupar uma área urbana da cidade de profunda relevância histórica, mas que havia, por circunstâncias diversas, sido alienada da contemporaneidade de Recife?
Eu fui um dos caras que estava lá na concepção do que hoje é o PORTO DIGITAL mas minha ideia inicial era de um cluster de tecnologia ao redor da Universidade Federal de Pernambuco. Quem nos convenceu da ida para o centro, dos desafios e oportunidades que havia para ocupar, renovar e reviver o centro do Recife, na ilha onde a cidade foi fundada e que estava, na época, em estado de grave desmantelamento urbano foi Cláudio Marinho, secretário de Ciência e Tecnologia de Pernambuco naquele tempo. Cláudio é um pensador, humanista e um grande urbanista e já enxergava, lá atrás, coisas que nós outros só conseguimos ver muito tempo depois.
Como você definiria a área do centro antigo de Recife, do Marco Zero,
antes e depois do Porto Digital?
Acho que antes do Porto Digital o Bairro do Recife, que foi onde começamos o esforço de reinvadir o Recife, à revelia do governo municipal à época, estava a caminho de se tornar algo parecido com a cracolândia paulista; quase todas as características já estavam no lugar. Nós chegamos como uma espécie de guerrilha urbana não violenta, tentando articular todos os atores, literalmente todos, para ver se era possível retomar o Recife antigo para a cidade, para a cidadania… e sim, era possível. Hoje o Recife Antigo é palco das principais experiência de renovação, de informatização, de mudança de modelos de negócios da cidade e aponta para o futuro, ao invés de ser apenas uma triste memória do passado.
O que foi mais gratificante nesse processo, que já tem mais quase 15 anos de vida?
Aprendemos muito. E descobrimos que há muito mais a aprender, muito mais do que aprendemos até aqui. Aprendemos que uma cidade se inventa, que depende da imaginação das pessoas, de sua ligação com o local, depende de corações e mentes. Cidades parecem construções concretas… mas para terem alma têm que ser quase aventuras poéticas. Não é possível ”fazer“ uma cidade sem que pessoas de todas as visões de mundo queiram que ela aconteça… pois uma cidade, ao fim e ao cabo, é um acordo. Estamos muito longe do que pensamos, a princípio, que era possível fazer, mas também estamos muito longe do que, no princípio, existia. E acho que o Porto Digital deu um exemplo que sim, um grupo de cidadãos dedicados, dispostos a investir seu tempo, conhecimento e conexões, por muito tempo, pode mudar muita coisa em qualquer lugar. Esta é a coisa mais gratificante do Porto Digital: quando a gente quer e se dedica, a gente –a cidadania- pode mudar qualquer coisa.
Alguma frustração com o Porto Digital?
Sim, claro, sempre. Uma delas é de não já ter feito muito mais até aqui… mas esta é uma frustração ingênua que nos assalta vez por outra, não é? Porque os que tentam fazer o Porto Digital não são todo-poderosos autoritários que determinam o que tem que e vai mudar agora… eles dependem da cidade, das pessoas, das articulações e também dos conflitos ao seu redor. Sempre que a gente se sente frustrado com alguma coisa, às vezes com muita coisa (e no Brasil isso ocorre muito…) a gente se junta pra comemorar o presente e fazer ainda mais planos para o futuro. Machado de Assis, disse, uma vez, que ”o futuro nunca se engana”. Eu também acho a mesma coisa; o futuro vai chegar cada vez mais rápido por aqui… e ele já tem um certo desenho, que resolve um monte dos problemas do Centro e cria outros, tão desafiadores quanto, mas de outra ordem… com mais possibilidades de articulação para resolvê-los.
O que imaginava que aconteceria e que não aconteceu?
Eu, em particular, achava que o Centro de Informática da UFPE, onde eu era professor à época, iria naturalmente para o Porto Digital, pois lá estariam as empresas que lhe dariam contexto, muito mais contexto. Ledo engano; a Torre de Marfim não é só uma metáfora que representa o isolamento da academia em relação à economia e à sociedade, mas um modelo defendido a unhas e dentes por muitos que entendem que a academia deve estar mesmo ao largo dos desenvolvimentos sócio-econômicos. Eu também achava que a gente iria trazer muito mais gente, muito mais rápido… mas depois, uns dez anos depois do começo do esforço, entendi que a mudança era muito mais do que de endereço para a maioria das pessoas e instituições, é uma mudança cultural de grande porte e impacto… mas que há riscos para todos. E, em qualquer contexto, sempre há muito mais gente que fica esperando pra ver se vai dar certo –pra eles aproveitarem quando está pronto…- do que gente que pula sem para-quedas e o constrói no salto. Mas estamos na rota, e tão importante e relevantes quanto os resultados, que já são muitos até aqui, é o aprendizado, que está sendo compartilhado com a cidade do Recife e muitas outras que estão tentando coisas parecidas…
Como vê essa relação entre cultura de ponta (tecnologia)
e história (patrimônio arquitetônico)?
Eu aprendi muito com tudo o que aconteceu até aqui… a julgar pela minha primeira resposta, se minha primeira ideia tivesse ido em frente, o que hoje é o Porto Digital seriam alguns arranha-céus gigantes ao lado do campus da UFPE. Torres de aço, vidro, elevadores, helipontos… ainda bem que havia quem me dissesse que havia uma forma muito mais urbana, bem mais humana e equilibrada de fazer quase a mesma coisa, de uma forma muito mais dinâmica e com um potencial de impacto muito maior para a cidade. Foi aí que tecnologia se encontrou com história, arquitetura, urbanismo, arte e se deu o enredo que hoje a gente chama de Porto Digital. Ainda bem…