Mas uma cidade é mais do que um lugar no espaço,
é um drama no tempo. [1]
Patrick Geddes, London, 1904.
A pandemia de 1346 a 1353 matou 40% da população da Europa. Espanha, França, Inglaterra e Itália perderam 50 a 60% da população em um ou dois anos. O impacto nas cidades foi uma hecatombe, e a recuperação das zonas urbanas levou dois séculos. Dados mostram mais vilas medievais abandonadas em regiões de baixa do que nas de alta mortalidade, especialmente entre as mais distantes das cidades. A pandemia causou migrações, e os destinos preferenciais foram cidades de terra mais fértil em suas zonas rurais e com melhores conexões [portos, estradas…] para negócios. Cidades desapareceram e outras cresceram depois da peste; e há uma relação causal entre fatores fixos de produção e o tempo de recuperação das cidades medievais.
O parágrafo anterior é um resumo de um artigo[2] sobre os efeitos da peste nas cidades, na Europa. Na pandemia que ainda vivemos, e sem dados para uma avaliação mais precisa, há um turbilhão de opiniões sobre o futuro das cidades, vindas de todos os lados. Norman Foster diz que a pandemia não será a causa de grandes mudanças nas cidades, no longo prazo[3], mas seu acelerador: “em vez de mudança, COVID19 apenas apressou, acelerou tendências de mudança que já eram aparentes antes da pandemia, como cada grande crise nas cidades, no passado, acelerou e ampliou o inevitável”.
Para Jan Vapaavuori, prefeito de Helsinki, “uma das maiores lições da pandemia é que as cidades sustentáveis e resilientes foram capazes de lidar melhor com a crise”[4]. Mas as cidades foram onde o impacto da pandemia foi mais sentido e mais grave. Para Sameh Wahba, do Banco Mundial, isso “também significa que as intervenções urbanas podem ter o maior impacto” em crises similares, no futuro.
Se boa parte do que fazemos -e uma das maiores razões pelas quais estamos- nas cidades é trabalhar, as mudanças no trabalho, aceleradas pela pandemia, terão impacto relevante nas cidades. E o distanciamento social deu uma mostra do que as pessoas prezam nas cidades além do trabalho: parques, praias, restaurantes, esportes, cultura, eventos… as redes sociais presenciais, físicas. Se a pandemia mostrou que é possível realizar trabalho fora do escritório de forma eficaz e eficiente, nem todo trabalho pode ser deslocalizado; estudo recente[5] codifica atividades e aponta, por país, quanto do trabalho pode ser feito de forma remota. Países como Brasil [25%] tem taxa bem menor do que a Suécia [45%], quase que como um atestado de menor sofisticação da economia. No caso de educação, consultoria, ciência, tecnologia e gestão, atividades que concentram muita gente nas [grandes] cidades, 72 a 83% pode ser distribuído, realizado de maneira remota e articulada.
Há muitos indícios de mudancas nas cidades. Mas há muitos sinais fracos, com muito ruído e de difícil comparação. Por isso que devemos procurar estruturas na conjuntura, e há pelo menos duas tendências irreversíveis[6], de décadas, aceleradas pela pandemia.
A primeira e fundamental é que a sociedade, economia, empresas, as pessoas, os governos… estão numa transição que nos leva não do físico para o digital, mas do físico para o físico, mas um físico habilitado e estendido por uma dimensão digital, articuladas e orquestradas -as dimensões física e digital- na dimensão social, em tempo [quase] real, que não é o tempo dos relógios, dos sistemas ou das organizações, mas das pessoas. É uma transição entre um estado de coisas onde performances se davam quase exclusivamente na dimensão física para outro, onde ações se realizam na conjunção das dimensões física, digital e social do espaço figital.
É uma transição de um espaço competitivo de baixa velocidade de mudança -pois que a dimensão puramente física da competição é muito rígida- para outro, onde o tempo da mudança é parcial e em muitos casos principalmente- definido pela agilidade de tomada de decisões e velocidade de escrever código nas organizações. O grande desafio para instituições legadas -que eram especialistas no espaço e nos artefatos físicos- é entender as fundações das dimensões digital e social do espaço figital e tratar suas três dimensões de forma articulada, integrada, fluida. As cidades, como sabemos, são sistemas legados, típicos do mundo puramente físico. Como hão de se comportar no espaço figital?
A segunda tendência irreversível afeta o universo do trabalho. Até porque o espaço é figital, há três transições acontecendo no trabalho, agora. A primeira se dá em relação ao lugar de realização do esforço, que deixa de ser essencialmente localizado [como o escritório] e se torna cada vez mais distribuído, com cada vez mais gente em situação “remota” em relação ao lugar onde o trabalho se dava, no passado. A segunda transição é na performance, que sai de intrisecamente analógica, realizada na dimensão física do espaço competitivo, para ter componentes digital e social cada vez mais explícitas, com parte da criação e entrega de valor sendo feita com a participação cada vez maior de artefatos digitais. Por fim, a terceira transição é nos contratos, de único para múltiplos, com os contratantes tendo cada vez menos exclusividade sobre os contratados.
Até por causa das possibilidades criadas pelas dimensões do espaço figital, a norma será, cada vez mais, trabalho híbrido. Numa pesquisa global[7], 65% dos executivos afirmam que trabalho parcial ou autônomo “substituirá parte substancial dos funcionários em tempo integral nos próximos 5 anos”. Não é que as empresas queiram que isso aconteça; segundo um executivo, é que a “exclusividade do empregador está se tornando uma relíquia”.
Patrick Geddes, citado na abertura, já estava certo há mais de cem anos e está, ainda mais, agora. Cidades não são apenas lugares no espaço. Até são, sim, na dimensão física do espaço. Mas há muito mais em jogo, e cidades, depois da pandemia, devem levar em conta as tendências irreversíveis que ajudaram a criar e redescobrir os fundamentos da competição no espaço figital, onde cidades são bem mais do que espaços físicos, são plataformas.
Plataformas são sistemas aos quais terceiros podem adicionar valor, adaptando ou estendendo a base a necessidades e nichos que os criadores da plataforma não contemplar[i]am. Plataformas são camadas de infraestrutura e serviços associadas a sistemas de governança que habilitam múltiplos agentes a participar de redes de criação de valor em benefício próprio e do ecossistema.
Segundo tal definição, a cidade sempre foi uma plataforma, onde a infraestrutura são ruas, parques, passeios, criados pela “governança” da urbe, que também responde por serviços como educação, saúde e segurança, onde terceiros criam negócios, escritórios e casas. Desde sempre, as cidades que evoluem mais rapidamente e são mais resilientes e sustentáveis são aquelas onde a plataforma, da qual fazem parte o conjunto de características naturais -como a posição única do Recife na logística no nordeste do Brasil- até o conjunto de políticas públicas [a base da plataforma, como educação e incentivos] habilitou a iniciativa privada [terceiros agregando valor] a participar dos processos de criar e evoluir ecossistemas coopetitivos de classe regional, nacional e mundial -como é o caso do Porto Digital, no Recife.
A cidade “era” um espaço-tempo de fluxos de pessoas e coisas, e isso mesmo depois da chegada da internet comercial no meio da década de 1990. Mas depois de nuvem e smartphones, na metade da década de 2000, as dimensões digital e social do espaço se estabelecem de vez e tudo, e não só as cidades, se tornou figital. Estendendo Castells[8], pode-se dizer que, hoje…
…os fluxos da [so]ci[e]dade são sequências de trocas e interações propositais, repetitivas e programáveis, realizadas por atores sociais [pessoas, organizações, coisas… aplicações] situados em posições potencialmente disjuntas, sobre as estruturas econômicas, políticas e simbólicas da [so]ci[e]dade.
E plataformas são estruturas econômicas, políticas e simbólicas… para tudo. Mas a plataforma da cidade pós-pandemia não é física, é figital. Mais que isso, a cidade, na economia e para a sociedade, depois da pandemia, deveria passar a ser uma plataforma figital. E isso é muito mais complexo do que criar um aplicativo ou renovar os sistemas de informação do e para o lugar. É um redesenho da cidade levando em conta que os fluxos já ocorrem em um espaço de dimensões física, digital e social. É uma transformação da cidade para habilitar novos comportamentos, de agentes de todos os tipos, no espaço figital. É a transformação figital da cidade.
Transformação figital é a composição de inovação figital com transformação estratégica.
Inovação figital depende de plataformas figitais [desenhadas de acordo com lógicas e princípios portadoras de futuros figitais[9] para incentivar e|ou provocar a mudança de comportamento nos agentes de mercado, como fornecedores [organização] e consumidores [seus atuais e potenciais clientes] de qualquer coisa, de carros e sorvetes a investimentos e políticas públicas. Transformação estratégica é um redesenho na arquitetura e processos de tomada de decisão e sua execução, acompanhamento e avaliação na criação, agregação, entrega e captura de valor de qualquer organização. No caso da cidade, da rede de organizações de gestão da cidade e, como não poderia deixar de ser, de toda a rede de agentes da cidade, incentivados e habilitados pela sua gestão.
A complexidade de desenho e realização, em qualquer cidade de algum porte, do conjunto de processos que deriva da definição acima indica que toda iniciativa de transformação figital de uma cidade qualquer terá que ser incremental [deve começar com esforços pequenos e periféricos], experimental [não pode assumir que hipóteses de transformação “funcionam” na prática, a priori], interativa [os agentes sociais devem ser envolvidos no processo e iterativa [repetida até que se chegue a resultados desejados e sustentáveis].
Um problema que deve ser tratado no longo prazo é o desenho, desenvolvimento, operação, manutenção e evolução de uma plataforma digital que habilita a cidade figital. Quase nenhum sistema de informação de nenhum órgão de nenhuma cidade, entre os que começaram a funcionar nos últimos dez anos, foi pensado para tal. E, entre os mais antigos, nenhum. A imagem a seguir[10] tem uma descrição esquemática mínima do que qualquer plataforma digital para uma cidade figital teria que tratar e o se deveria esperar do ponto de vista de resultados no médio e longo prazo.
Se usarmos a definição de Marc Andreessen[11]…
…uma ‘plataforma’ é um sistema que pode ser programado e, portanto, personalizado por desenvolvedores externos -usuários- e, dessa forma, adaptado a inúmeras necessidades e nichos que os desenvolvedores originais da plataforma não poderiam ter contemplado, muito menos tiveram tempo para acomodar.
A palavra-chave na definição é ‘programado’. Se você -um agente externo ao ‘sistema’- pode programar o sistema, trata-se de uma plataforma. Caso contrário, não é.
No diagrama, as duas camadas inferiores podem certamente ser providas e até “controladas” pela gestão da cidade [o ‘sistema’], mas devem ser bases para que desenvolvedores externos possam agir, usando suas funcionalidades essenciais. Da terceira camada para cima, quase tudo pode ser desenvolvido em rede e ter uma governança compartilhada. Até porque, já na terceira camada, o marketplace de dados é da cidade, literalmente, e não da gestão da cidade. Lá no topo, a camada de habilitação, inovação e aceleração é onde se dão as conexões, relacionamentos e interações que habilitam qualquer um a, potencialmente, programar aplicações para a cidade figital.
Aplicações que tratam de educação, saúde, segurança e outras funções críticas da cidade serão -pelo menos em parte- escritas e operadas pela gestão do lugar. Mas há serviços privados de educação, saúde e segurança, por exemplo, que têm suas aplicações, criam, consomem e armazenam dados, que deveriam estar no marketplace. Em algumas cidades, como Los Angeles[12] este já começa a ser o caso em mobilidade, com a feroz oposição de provedores privados. A acusação contra a cidade é de rastrear os cidadãos e potencialmente infringir direitos. Os acusadores? São corporações a querer o monopólio dos dados e seu uso para maximizar resultados dos seus negócios, sem prestar contas a ninguém, tal qual um faroeste digital. Não será; dado o tempo, as cidades vencerão.
Nas cidades figitais, na cidade que existirá no espaço figital, a governança será compartilhada, com a participação e a licença cidadã para uso dos seus dados, nas dimensões física, digital e social. E não é só porque, no Brasil, a LGPD[13] obriga; é porque será insustentável se não for assim.
Na cidade figital, a plataforma digital da cidade será fundamental para o desenho e orquestração dos fluxos figitais. As redes da cidade figital não são físicas [como ruas], digitais [transações] ou sociais [encontros], separadamente. As ruas são figitais; são físicas, mas aumentadas e estendidas pela dimensão digital, habilitadas pela plataforma digital da cidade e suas aplicações e articuladas na dimensão social.
Ambulâncias fluem no trânsito, conversam com sinais, driblam engarrafamentos pela contramão, que é mão para quem tem as prioridades dos serviços de emergência. E pacientes não chegam em clínicas e hospitais que não podem atendê-los; os sistemas, do SAMU aos hospitais, conversam entre si, mediados pela plataforma digital da cidade. Consultas de todas as especialidades são marcadas no sistema de saúde pelo cidadão, apoiado por sistemas especialistas e atendimento distribuído, e cada pessoa confirma a frequência dos profissionais de saúde no seu local de trabalho. E os dados, dos serviços públicos, são públicos, abertos e estão no marketplace para qualquer um analisar.
Em tal contexto, não haverá segredo no orçamento, tampouco na execução. As possibilidades de engajamento cidadão serão tantas, em tantas facetas da cidade figital, que boa parte da estratégia do lugar será emergente, virá das aspirações das pessoas, empresas, agentes públicos, elas próprias parte intrínseca do processo de criar as competências, habilidades e gerar os recursos para dar conta das aspirações.
Depois da pandemia, cidades figitais. Não porque elas queiram ou já saibam como chegar lá. Mas porque o espaço onde está já estão é figital, e essa transição já foi feita. O problema das cidades, agora, é como se tornarem figitais. Como criar suas plataformas. Como redesenhar suas estratégias. Como redesenhar sua governança. Como [re]educar as pessoas e prepará-las para futuros figitais.
Na pandemia de 1346 a 1353, as cidades que se recuperaram mais rapidamente foram aquelas onde os fatores de produção eram mais favoráveis. Desta pandemia, as cidades que sairão mais rápido e de forma mais acelerada, sustentável e resiliente serão aquelas que entenderem que o espaço mudou e agirem sobre tal constatação de forma estratégica. Não se trata de, puramente, considerar fatores de produção que são digitais e sociais e manter um arcabouço de pensamento analógico ou, no máximo, analógico digitalizado. No setor público, digitalizar analógicos é informatizar o caos…
As cidades estão noutro espaço, que já tinha duas dimensões -digital e social- agora essenciais e incontornáveis. O espaço, o trabalho, a educação, saúde, segurança, entretenimento, esportes… tudo será cada vez mais figital. Quem desenhar estratégias para competir -como cidade- nesta nova configuração do mundo, tem muito maior probabilidade de sucesso continuado. Entre estas, aquelas que tenham as competências, habilidades e recursos, como ecossistemas empreendedores públicos e privados, para escrever e evoluir suas próprias plataformas e aplicações de classe mundial.
[1] Apresentado na Sociological Society, London, 18/07/1904; em bit.ly/3xpbp1T.
[2] Jedwab, R. et al., “Pandemics, places, and populations: Evidence from…” 2019, em bit.ly/30SOcsX.
[3] “Is Covid-19 going to change our cities? The answer is no”. dezeen, 13/10/2020, em bit.ly/2P5Yxfb.
[4] Future of Cities Will Shape Post-COVID-19 World. The World Bank, 02/03/2021, em bit.ly/3ffQqaK.
[5] Dingel, J. I., Neiman, B. How many jobs can be done at home? NBER, 2020, bit.ly/3oSKYhb.
[6] Meira, S. Duas tendências irreversíveis, agora. silvio.meira.com, 10/2020, em bit.ly/360Mwxr.
[7] Freelancers to ‘substantially’ replace full-time staff in the next five years. HDR, 08/2021, em bit.ly/30esLln.
[8] Network Society. Wikipedia, em bit.ly/3CHlvvU.
[9] Meira, S.: Fundações para os futuros figitais. Na TDS.company, [49pp], SET/2021, bit.ly/futurosfigitais
[10] Smart City Ecosystem Framework. strategyofthings, em bit.ly/3r2pDEE.
[11] Marc Andreessen digs into the Platform. ZDnet, 2007, em zd.net/3r2fhoi.
[12] How Los Angeles took control of its mobility data. LA Times, 01/07/2020, em bit.ly/3xlaEXp.
[13] Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Wikipedia, em bit.ly/3oR94ZE.