lá no começo da internet pública no brasil, uns quinze anos no passado, rolou uma discussão muito interessante no centro de informática da ufpe, então departamento. juntamos um monte de gente pra discutir a sociedade da informação e fizemos isso por áreas, de infraestrutura e estradas até educação, passando por trabalho, saúde e, claro, cultura.
que eu me lembre, chico saboya, hoje diretor-presidente do porto digital, defendeu que lutar por uma cultura digital popular era muito mais importante do que ir atrás de uma cultura popular digital. esta última, por sinal, era o que quase todo mundo queria ver acontecendo, na época: como fazer pra enfiar tudo o que fosse cultura popular, de bumba-meu-boi, ciranda, maracatú… até o cordel e os bonecos de vitalino… tudo, na rede? como “digitalizar” a cultura?…
acho que chico foi um dos primeiros a propor que o problema não era este e sim o de criar tantas e tão boas condições para que acontecesse, tão rápida e tão intensamente quanto possível, uma cultura digital popular, isto é, o povo, [as bordas] todo, usando as ferramentas, ambientes e infraestruturas digitais tão bem quanto a elite [o centro; no caso, lá atrás, mais uma elite tecnológica do que econômica] e, daí pra frente, era só deixar acontecer que aconteceria, ou seja, a cultura popular, quando e para que fosse o caso, iria se tornando digital também.
o problema é de magnitude social e, até hoje, não estamos vendo uma cultura digital popular na escala que deveríamos estar; mas estamos mais perto do que longe e, uma década, duas a mais de muito trabalho e a gente chega lá, pra todos.
no meio destes todos estão as crianças, todas, de todas as cores e posses. aproveitando a semana em que o futuro é comemorado em torno delas, que tal fazer um exercício, aqui, nos termos da discussão do centro de informática de tanto tempo atrás?…
vou seguir saboya: ao invés de falar de potenciais direitos digitais das crianças, talvez seja muito mais interessante e objetivo tentar estabelecer uns poucos e simples direitos das crianças digitais.
primeiro, note que as crianças de hoje já nasceram em um mundo que é digital [PCs desde a década de 80, influenciando os pais], conectado [a própria rede, chegando na década de 90], móvel [celulares, antes, e smartphones, agora, chegando às mãos de todos] e programável. não só o digital, rede e celulares são intrinsecamente programáveis mas apps, instalados no digital e/ou no móvel, são uma forma de programar, principalmente no caso dos smartphones.
o cenário onde vivem as crianças de hoje é digital, conectado, móvel e programável. crianças que vivem este cenário em toda sua intensidade poderiam ser chamadas “crianças digitais”, ao invés de millennials ou post-millennials, como fazem alguns… pois não é a quadra em que nasceram o principal determinante de seu contexto, mas os meios tecnológicos que estão ou deveriam estar à sua disposição, para interagir com outros humanos e com as instituições, que o faz.
claro que há uma declaração universal dos direitos da criança, aprovada por ninguém menos que a assembléia geral da ONU em 1989; você pode vê-la neste link. é do preâmbulo da declaração, que fundamenta os direitos das crianças com base na liberdade, aprendizado, brincar e convívio social que tiramos a nossa declaração dos direitos das crianças digitais:
os meios da sociedade em rede, as capacidades dos sistemas digitais, conectados, móveis e programáveis, deveriam estar à disposição de todas as crianças como ambientes e ferramentas para brincar, aprender e conviver, garantidas as liberdades de expressão, informação e comunicação e as salvaguardas necessárias, em tais ambientes e ferramentas e seus usos, para os pequenos.
pense. é simples de escrever, muito difícil de implementar. não é, foi ou será diferente com a declaração universal ou qualquer outro conjunto de princípios que vise garantir alguma coisa, qualquer coisa, para todos.
e tem mais: um monte de gente teria muito boas razões para ser contra uma declaração dos direitos das crianças digitais como escrita acima, ainda mais em países e situações onde tantas crianças “ainda nem têm o básico dos básicos”, como alimentação e outros cuidados minimamente aceitáveis. claro que todo mundo e o autor concordariam com tal ponto de vista.
mas o que está em jogo é uma outra coisa, muito mais ampla e significativa: num mundo onde as crianças que têm posses e, consequentemente, meios, estão completamente imersas em um universo digital, conectado, móvel e programável, incluir todas as outras crianças, de todas as periferias, neste mesmo universo deixa de ser opção e passa a ser obrigação, pois que deixaria todos os petizes nos mesmos patamares de entendimento de mundo e perspectiva de competitividade futura.
os direitos das crianças, digitais ou não, passam por brincar, aprender e conviver em liberdade. num cenário de mudança de plataformas tecnológicas de tão grande impacto na percepção e ação no mundo como o que vivemos nas últimas décadas [e viveremos nas próximas], o dever dos adultos, especialmente os responsáveis por políticas públicas, é não deixar nenhuma criança para trás.
e isso, hoje, pode ser traduzido em trazer, como pequenos cidadãos e cidadãs de primeira classe, todas as crianças para a sociedade em rede. e estamos atrasados, muito atrasados, no atendimento a tal conjunto de direitos fundamentais.