Trabalho, Emprego e IA
Há uma transformação profunda do trabalho e da produção,
como parte da transformação figital dos mercados,
da economia e da sociedade como um todo.
Como Yogi Berra observou, ‘Quando você chegar
a uma bifurcação na estrada, siga por ela’.
É exatamente isso que estamos fazendo ao navegar pelas
mudanças causadas por TICs e IA no mundo do trabalho.
Inteligência Artificial em escala de penetração da internet -ou seja, centenas de milhões de usuários competentes entre bilhões de usuários totais e o planeta inteiro e todos os setores da economia e sociedade afetados– terá implicações profundas e de longo alcance para o futuro do trabalho. Profissões que envolvem tarefas repetitivas -mesmo que sofisticadas pelo nosso atual crivo de complexidade, como advogado ou cirurgião- ou que se baseiam fortemente em dados e sua análise -como estatísticos e contadores- estão particularmente em risco devido a aplicações de IA, o que já se começa a ver com sistemas generativos atuais, que são só o começo de uma grande onda, revolucionária, de e com IA.
Pra quem não é da área, uma metáfora para explicar o que está acontecendo agora poderia ser… se IA fosse uma novela da Globo, mesmo depois de seis décadas de evolução a partir das primeiras teorias e experimentos, nós estamos, agora, exatamente no começo do primeiro capítulo, os personagens ainda estão sendo apresentados e ninguém, nem mesmo o autor, sabe qual é a trama e seu meio e fim.
A literatura recente sobre o impacto de IA no trabalho é vasta e diversificada e o artigo Artificial intelligence and work: a critical review of recent research from the social sciences [tinyurl.com/2fjdfg2q] oferece uma revisão crítica que destaca a necessidade de uma visão abrangente e não especializada [somente em IA] para entender o impacto da IA no trabalho. O argumento é que, embora a pesquisa especializada possa fornecer insights valiosos sobre aspectos específicos de IA, é igualmente importante ter uma visão geral para entender como muitos aspectos [de mundos diversos] se conectam e se influenciam mutuamente.
No texto, aparece Max Weber…
“O fato de que o chamado desenvolvimento tecnológico dos tempos modernos tenha sido amplamente orientado economicamente para o lucro é um dos fatos fundamentais da história da tecnologia.”
Complementado por Shoshana Zuboff…
“Numa sociedade capitalista moderna, tecnologia foi, é e sempre será uma expressão dos objetivos econômicos que a direcionam à ação.”
Bem… chega de ilusões perdidas, diria Balzac. Não é a tecnologia que destrói ou cria trabalho e empregos, nem será IA que o fará, mas os objetivos econômicos de seu uso e a existência [ou não] de políticas e estratégias de Estado para habilitar, promover, balizar e regular as ações dos agentes de mercado.
Mas o fato é que estamos vivendo uma transformação profunda na organização do trabalho e da produção, como parte da transformação figital dos mercados, da economia e da sociedade como um todo [veja Fundações para os Futuros Figitais, bit.ly/futurosfigitais]. O emprego padrão – de tempo integral em uma empresa, com um contrato permanente, pagamento de remuneração adequada para sustentar uma família e provisão de benefícios – se formou apenas nas últimas décadas e não foi adotado como o modelo predominante na maior parte do mundo. Hoje, o arquétipo de ‘modelo padrão’ deu lugar a muitas outras formas de trabalho remunerado, como o temporário, de tempo parcial, subcontratação, uso de contratados independentes, autônomos dependentes ou independentes e trabalho casual.
A emergência de novos tipos de “empregos” em contextos habilitados por plataformas de trabalho online e|ou que comercializam ativos pessoais, como é o caso de mobilidade compartilhada, tende a corroer ainda mais o relacionamento de emprego tradicional e fragmentar o papel do empregador e do empregado. Onde as plataformas permitem o trabalho que antes seria realizado por um empregador em tempo integral para ser distribuído a trabalhadores sob demanda e onde certas tarefas podem ser automatizadas, a economia resultante dependerá cada vez mais de relações de emprego de curto prazo, efêmeras até.
Nas últimas décadas, a produção, comércio e investimentos internacionais se organizarem cada vez mais em redes globais de valor, onde as etapas da produção foram deslocalizadas, espalhando atividades como design, produção, marketing e distribuição e transferindo empregos para países de baixa e média renda. Um movimento reverso, habilitado por TICs, internet, plataformas, robotização e automação, está redesenhando tal arquitetura por meio de reshoring, onde empregos terceirizados são substituídos por alguma combinação destas tecnologias.
De Backer et al. [Reshoring: Myth or Reality?, tinyurl.com/2pt4764v] argumentam que, em vez de levar a novos empregos, reshoring provavelmente resultará em investimentos em automação e robótica [e IA…] e possivelmente a um pequeno número de empregos adicionais altamente qualificados nos países de origem do trabalho [back-shoring] ou vizinhos [near-shoring] implicando, salvo ação de políticas públicas de grande porte e curto, médio e longo prazos, em perda de emprego global em larga escala.
Uma pesquisa recente da British Academy e Royal Society descobriu que quase dois terços do trabalho relacionado a atividades automatizáveis está na China, Índia, Japão e EUA [Data science, artificial intelligence and the futures of work, tinyurl.com/2guocpfg]. Há 3 anos, portanto algo como um milênio digital [e não mil dias…] antes de GPTs, um estudo de 46 milhões de empregos formais [Mapeamento da Automação no Brasil, tinyurl.com/2lyby6v3] já descrevia os efeitos da automação em todos os municípios brasileiros; lá, 60% do trabalho feito no Brasil tinha pelo menos 70% probabilidade de computerização nas próximas décadas.
Pra ter uma ideia, das 10 ocupações com mais empregos formais no país, metade tinha probabilidade de automação maior que 90%; só estas 5 respondem por 7,8M de vagas [ou 17% dos empregos formais]. Operador de caixa [823k empregos] tinha 97% de probabilidade de computerização e as várias ocupações de operador de telemarketing [que somam mais de 670k empregos], tinham 99% de probabilidade de automação.
De lá pra cá, só aumentou a velocidade e complexidade das mudanças na natureza e criação de empregos, tarefas e atribuições e na organização em constante mudança do trabalho e da produção. Os impactos da mudança na natureza do trabalho na sociedade e a governança dessas mudanças por meio de políticas e instituições deveria ser um problema estratégico crítico sendo tratado em todos os países, mas não é.
Aí, entram GPTs. Um estudo de OpenAI [GPTs are GPTs, tinyurl.com/2l4l7njb], publicado há três meses, sobre as potenciais implicações de GPTs e tecnologias relacionadas no mercado de trabalho dos EUA, indica que aproximadamente 80% da força de trabalho do país poderia ter pelo menos 10% de suas tarefas de trabalho afetadas pela introdução de GPTs, enquanto cerca de 19% dos trabalhadores podem ver pelo menos 50% de suas tarefas impactadas.
A análise de OpenAI sugere que, com acesso a LLMs, cerca de 15% de todas as tarefas dos trabalhadores nos EUA poderiam ser realizada de forma significativamente mais rápida e com o mesmo nível de qualidade. Ao incorporar software e ferramentas construídas sobre LLMs, tal participação aumenta para 47 a 56% de todas as tarefas. Isso nos diz que as aplicações que serão desenvolvidas usando LLMs como plataformas [Plataformas & Ecossistemas, em tinyurl.com/2lw2f7r2] terão efeitos substanciais na escala dos impactos econômicos dos modelos subjacentes.
A conclusão óbvia parece ser que LLMs como a família GPT por trás do ChatGPT, são GPTs, ou General Purpose Technologies [veja tinyurl.com/2eyvgn9c], tecnologias que podem afetar economias inteiras, em escala nacional e talvez global, tendo o potencial de alterar drasticamente as sociedades em função de seu impacto nas estruturas econômicas e sociais pré-existentes. Exemplos de GPTs são a máquina a vapor, a eletricidade e TICs, as tecnologias de informação e comunicação, que promoveram [e estão promovendo, LLMs são uma classe de TICs…] transformações radicais em quase todas as facetas da performance humana e das organizações nos últimos cinquenta anos, pelo menos.
A consequência dessa transformação radical não é necessariamente o desemprego em massa, mas um redesenho profundo das funções e habilidades necessárias no mercado de trabalho e no projeto de emprego e carreira de quase todo mundo. Muitos dos trabalhos que são [ou eram, anteriormente] realizados [somente] por humanos estão sendo transformados, mas também estão surgindo novas funções e profissões que exigem uma compreensão mais profunda das tecnologias de, com ou para IA e sua interação com humanos.
Em meio a um futuro que pode ser radicalmente transformado por IA, haverá um lugar cada vez mais importante para habilidades inerentemente humanas. A empatia, o julgamento, intuição e a capacidade de compreender e responder à complexidade emocional e social ainda não é dominada por IA e o trabalho que requer tais habilidades continuará a ser essencialmente humano. Na verdade, à medida que IA assume mais funções de processamento simbólico, habilidades essencialmente humanas devem se tornar ainda mais valiosas. À medida que mais e mais do nosso mundo é mediado por algoritmos, a capacidade de compreender e navegar no mundo social e emocional cada vez mais complexo pode se tornar uma habilidade muito mais crítica.
Há um risco, claro, que essas mudanças possam acentuar as desigualdades já existentes. Aqueles que têm o luxo de adquirir novas habilidades e adaptar-se a novas formas de trabalho podem prosperar, enquanto quem não tem pode ser deixado para trás. Por isso, é essencial que façamos investimentos significativos em educação e treinamento para garantir que todos tenham pelo menos a oportunidade de se adaptar e prosperar neste novo mundo.
IA não é apenas uma ferramenta, é mais uma dimensão da inteligência [As Três Inteligências, https://bit.ly/tds-3inteli], além da individual e social; e ainda somos nós, humanos, que moldamos seu futuro. Não há dúvida de que IA vai transformar o trabalho de maneira radical e que as mudanças podem ser perturbadoras. Os próximos anos serão vitais para definir o futuro de IA e seu papel na sociedade; não podemos prever com precisão todas as mudanças, mas podemos nos preparar para elas, investindo em educação, ciência, tecnologia, inovação e políticas públicas que promovam o uso ético e responsável de IA. Ao fazer isso, podemos esperar que IA seja usada para ampliar capacidades humanas, em vez de substituí-las.
Enfim… estamos vivendo uma transformação profunda na organização do trabalho e da produção, e consequentemente do emprego, impulsionada por TICs -e daqui pra frente, em especial, por IA- e pela emergência de novas formas de trabalho. Essa transformação apresenta desafios significativos, mas também oportunidades para descobrir formas mais flexíveis e eficientes de trabalho e emprego. As plataformas digitais, sociais, figitais e de inteligência artificial, associadas, estão no centro dessa transformação, criando novas oportunidades de criar e transformar trabalho e emprego.