uma estória datada, que se conta em qualquer interior que se preze, é que um ex-prefeito [nunca o atual] menos letrado, ao ser informado que os recursos do erário público não seriam suficientes para construir a caixa d´água monumental que fecharia seu mandato com chave de ouro, indaga ao seu interlocutor a razão… e recebe como resposta que o problema é a lei da gravidade. impávido, o alcaide diz que isso é coisa pouca, pois enviará à câmara, de imediato, um projeto mandando a tal da lei da gravidade para o espaço.
numa versão mais longa da mesma conversa, o líder do governo, vereador pouco mais instruído, informa ao prefeito que não vai adiantar… porque a lei da gravidade “é federal”.
federal mesmo vai ser –quando, ou depois que se tornar lei- o PL29/2007, ou simplesmente PL29, que “dispõe sobre a organização e exploração das atividades de comunicação social eletrônica e dá outras providências” e que está transitando pela CCTI, a comissão de ciência e tecnologia, comunicação e informática da câmara dos deputados.
o projeto, tornando-se lei, vai regulamentar desde a quantidade de comerciais nos intervalos das TVs pagas até quem pode contratar talentos artísticos de qualquer natureza para veiculação em meios de comunicação, passando pelo que se pode ou não fazer na internet. e deve transformar a ancine em uma superagência reguladora de tudo o que for conteúdo que passe por aqui, nacional ou não. e criar, como não poderia deixar de ser, um bom número de conflitos entre ela e a anatel.
e como papel –ou editor de texto- ajudado por vontade política aceita absolutamente tudo, inclusive a revogação das equações mais elementares de newton, o deputado josé rocha, [pr/ba] está propondo a proibição de empresas cujo objeto social não a enquadre como prestadora de serviços de comunicação social, constituída sob as leis brasileiras, de adquirir eventos de interesse nacional e contratar talentos artísticos nacionais.
isso quer dizer que um portal como o TERRA não poderia veicular uma olimpíada, copa do mundo ou campeonato nacional de coisa alguma. e a definição do que é interesse nacional, se a emenda acima passar, terá que ser regulamentada e provavelmente será decidida, caso a caso, por mais um conselho ou comitê, como se no país tivéssemos poucos. em resumo, o deputado está propondo que se revogue a convergência digital, que vem a ser uma espécie de lei da gravidade de nossos tempos. não é preciso tecer considerações, aqui, sobre a desnecessidade de tal tipo controle; trata-se, simplesmente, de uma tentativa de aprisionar possíveis futuros no passado.
mas talvez valha a pena dizer que, lá no passado, o país já viveu ditaduras de controle da mídia e conteúdo. o caso mais notório é o do departamento de imprensa e propaganda, o DIP da era vargas, criador da “hora do brasil” e da agência nacional, que até hoje nos acompanham. para quem quiser entender um pouco mais do DIP e de seu tempo, há um texto simples e direto neste link; para um conjunto mais amplo de textos e links, consulte a página do CPDOC/FGV sobre o assunto e, para começar a estudar o tema e entender as possíveis consequências de um PL29 “mal aplicado” ou controlado por “certos interesses”, leia estratégias de controle da mídia: o caso da radiodifusão no estado novo – 1937/1942, de othon jambeiro et al.
mas o representante da bahia não é um lutador solitário pelo aumento do controle da mídia, seja ela qual for. para não ficar muito atrás, o deputado paulo roberto pereira [ptb/rs] quer obrigar as TVs pagas… a veicular a propaganda eleitoral e partidária gratuita, prevista na legislação brasileira, nos mesmos parâmetros das regras que regulam a propaganda eleitoral e partidária no rádio e televisão, inclusive quanto ao beneficio fiscal.
segundo o nobre deputado, seu objetivo é… manter o eleitor brasileiro próximo aos políticos e atualizado quanto aos assuntos e evolução da política nacional. o deputado deve estar de posse de algum levantamento que indica haver brasileiros que só têm acesso a TV paga e estão ávidos por propaganda eleitoral e partidária, para ficarem próximo[s] aos políticos e atualizado[s] quanto aos assuntos e evolução da política nacional…
deve ser. deve haver muita gente interessada inclusive no andar, quase que literalmente, da carruagem do PL29 na CCTI. mas não, não há. não consigo imaginar quem quer que seja, com a provável exceção de uma certa parcela da nobre classe política, assinando uma petição por propaganda eleitoral e partidária, boa parte da qual sandices de legendas de alugual, nas TVs fechadas ou, de resto, em qualquer TV, rádio, ou jornal.
o que deveria ser feito, isso sim, era liberar o precioso tempo do espectro de rádio e tv ocupado pela propaganda eleitoral e levar toda ela para a internet, onde a audiência se tornou comunidade e escolhe o que vai ver, ouvir e do que vai participar. a audiência seria fantástica. e bem perto de zero, creio eu.
espera-se não só que tais propostas não passem pelo crivo da CCTI mas que os nobres deputados da comissão consigam refrear sua criatividade, dado que ainda podem apresentar emendas ao texto do substitutivo ao projeto até a próxima quarta, dia 11.
claro que o debate sobre conteúdo, conteúdo nacional e infraestruturas de e para mídia não é trivial; para ter uma idéia do cenário, leia este texto de sayonara leal e laura haje, onde as pesquisadoras fazem um mapa das… lógicas e interesses que perpassam as atuais propostas dos projetos de lei para regulamentação do processo de convergência tecnológica no setor das comunicações no brasil. conteúdo nacional é importante, sim, e o assunto tem que ser pensado, em toda sua amplitude e complexidade, e amplamente debatido dentro de contextos nacionais, dado que cada país é naturalmente diferente de qualquer outro e se encontra em seu particular estágio de desenvolvimento.mas daí para querer aprisionar a nação em estruturas vencidas pelo tempo não só é demais, mas é aumentar, em muito, o custo brasil. por que?
porque aqui temos o vício de nos sentir vencidos por uma “modernidade”, sempre criada por outros. e sempre queremos preservar, para o futuro, um passado que, noutras plagas [plagas?], já não tem mais lugar no presente. tais tentativas são um sinal muito claro de nosso subdesenvolvimento no que tange às capacidades de inovar, empreender, pensar, planejar e, de resto, olhar para o mundo como o nosso quintal, e não de nos olharmos [como sempre é o caso] como o quintal do mundo.
além do mais, parece que o bom senso [e a boa teoria], no assunto, diz que a economia das comunicações –infraestrutura e conteúdo- depende da forma através da qual se regula o conteúdo. como consequência, criar uma competição entre agências regulatórias [como será fatalmente o caso aqui, depois do PL29 transformado em lei] não será bom para os negócios, para as pessoas, como cidadãos e consumidores, para o país.
a inglaterra, desde 2003, fez tal descoberta e unificou suas agências regulatórias relacionadas a mídias através da OFCOM. os resultados da fusão se revelam, até agora, muito acima da média dos países onde os conflitos regulatórios continuam.
de resto, e pra terminar, querer regular o passado, como é o caso de boa parte do PL29, nos levará ao… passado [como querem, ainda mais objetivamente, os nobres deputados rocha & pereira]. também em 2003, cees hamelink, da universidade de amsterdam, na graham spry memorial lecture da universidade de montreal, já dizia que…
Current international human rights standards cover mainly the dissemination of information, the consultation of information, and the registration of information. Practically all human rights provisions refer to communication as the "transfer of messages." This reflects an outdated conception of communication as "distribution." Communication is interaction: a process of personal and public dialogue! The shift from distribution to interaction requires the adaptation of human rights standards to the new reality of global interactive technologies and the emergence of networking in many social domains.
…os atuais padrões internacionais de direitos humanos tratam principalmente do registro, consulta e disseminação de informação. na prática, todas as provisões de direitos humanos tratam comunicação como “transferência de mensagens”. e isso reflete uma concepção datada de comunicação como distribuição. mas comunicação é interação, um conjunto de processos de diálogo pessoal e público! a mudança de comunicação para interação requer uma adaptação dos padrões de direitos humanos para a [nem tão] nova realidade de tecnologias interativas globais e a emergência de redes [de todos os tipos] em muitos domínios sociais.
a mensagem não poderia ser mais clara: deveríamos estar tratando de conectividade e interação, e não de comunicação e disseminação. e isso há pelo menos uma década. o que constrói o futuro é tratarmos dele, o tempo todo, no presente. e não o contrário, que é, no caso, tentar carregar o passado para o futuro. ainda mais porque, felizmente, não vai dar certo.