a internet, no mundo e no brasil, vem sendo regulada por um acordo de cavalheiros. dito desta forma, pode parecer que a rede precisa de mais ordem e mais estrutura; não, nada disso. é exatamente este acordo de cavalheiros, montado sobre a rede de conhecimento, relacionamento e articulações de um sem-número de comitês, grupos e competências, em todo o planeta, que faz com que a rede seja um instrumento essencial para a economia e a sociedade e, ao mesmo tempo, continue a manter, década e meia depois de se tornar comercial, sua vertiginosa velocidade de inovação.
a quantidade, diversidade e qualidade da inovação é o que tem nos dado, nos últimos 15 anos de rede comercial, a clara sensação de que estamos sempre “correndo atrás” para ficar no mesmo lugar, ou seja, capazes de usar o que a economia criativa da rede nos apresenta todo dia. ou, melhor ainda, o que o ambiente de inovação e empreendedorismo globais, dependente da rede, permite que criemos e ofereçamos ao mundo, todo dia.
vez por outra –como não poderia deixar de ser num acordo de cavalheiros- as coisas chegam perto de um ponto de ruptura. exemplo bem recente é, na semana passada, a FCC perdendo uma disputa sobre NEUTRALIDADE de rede para COMCAST e fazendo alguns começarem a acreditar que o regulador americano de telecom poderia, de repente, estar pensando em reclassificar ACESSO e PROVISÃO de serviço de internet como TELECOM. não falta quem queira, por muitas razões, fazer exatamente isso.
nas últimas semanas e meses, este é o mais importante e complexo problema que rodeia o acordo de cavalheiros que rege a rede [nos EUA], pelo menos pra quem que está na rede e preocupado com seu futuro. a COMCAST, nos EUA, é um provedor de acesso que faz traffic shaping, o processo de priorizar uns pacotes, em sua rede, em detrimento de outros. em particular, a COMCAST só deixa passar pacotes do tipo torrent [muito usados para download de música e vídeo] quando “dá”. e o problema é que este “dá” pode ser quase nunca. pois bem: a FCC tentou obrigar a empresa a tratar todos os pacotes da mesma forma [neutralidade de rede, de forma simplificada, é isso] e, na justiça, perdeu.
as consequências podem ser imensas e mundiais. uma delas, a mais radical, seria transformar acesso e provisão [em outras palavras, banda, larga] em telecom, trazendo junto com isso toda complexidade, parálise e, porque não dizer, bolor que permeia a regulação e o setor de telecom em todo mundo. não falta quem queira controlar algo do porte e valor de mercado da internet; sabemos todos, por outro lado, quais seriam as consequências do ponto de vista da velocidade de evolução se, por exemplo, a assembléia da UIT [e seus convolucionados processos decisórios] tivessem que regular, digamos, a porta 25.
falando nisso, taí um bom exemplo, a gestão porta 25: segundo o cert.br, gerência de porta 25 é o nome dado ao conjunto de políticas e tecnologias, implantadas em redes de usuários finais ou de caráter residencial, que procura separar as funcionalidades de submissão de mensagens daquelas de transporte de mensagens entre servidores. certo. e… se a porta 25 não for devidamente gerenciada? bem, 80% do spam que chega na sua caixa postal pode ser relacionado diretamente a portas 25 “abertas” nos provedores, como você pode ver no gráfico abaixo [linha azul].
como é que o problema está sendo tratado no brasil? como um belo exemplo de convivência entre o regulador [de fato e direito] de telecom e o articulador da internet.BR, o comitê gestor da internet brasil criado [tá lá na página do cgi.br]… pela Portaria Interministerial nº 147, de 31 de maio de 1995 e alterada pelo Decreto Presidencial nº 4.829, de 3 de setembro de 2003, para coordenar e integrar todas as iniciativas de serviços Internet no país, promovendo a qualidade técnica, a inovação e a disseminação dos serviços ofertados.
ou seja: o cgi.BR, legalmente, não manda na internet.BR; ao invés, coordena e integra as iniciativas de internet no país. e tem funcionado muito, muito bem, com o cgi.BR “recomendando” procedimentos aos agentes da rede, no brasil, ao invés de “determinando” que se faça, peremptoriamente, isso ou aquilo.
no caso da porta 25, o cgi.BR [CGI.br/RES/2009/001/P] emitiu uma recomendação técnica sobre o assunto há um ano, depois saiu pra convencer um monte de gente: iG e UOL, por exemplo, já migraram todos os seus usuários para os termos da recomendação e o TERRA está migrando agora. mais recentemente, como a recomendação envolve controle de acesso [autenticação de mensagens, no provedor] e restrição de tráfego [na operadora], o CGI.br negociou com a ANATEL uma carta do ministro sardenberg [da ANATEL] ao secretário augusto gadelha, do MCT e coordenador do cgi.BR, apoiando a recomendação explicitada pela resolução 2009/001 e sua implementação pelas operadoras.
as operadoras, que já são, e há tempos, os maiores provedores de acesso do país e estão no olho de qualquer furacão relacionado à internet, passam a se sentir seguras de que, ao implementar a CGI.br/RES/2009/001/P com o “apoio” da ANATEL, estão melhor escudadas contra eventuais reclamações [judiciais, inclusive] de spammers que venham a se sentir atingidos pelos impactos da “recomendação” do cgi.BR
tudo muito articulado, leve e digno das melhores cozinhas diplomáticas do planeta, como não poderia deixar de ser quando se leva em conta as instituições, tradições e personagens envolvidos. pra todos nós, é bom que seja assim e, mais ainda, que continue a ser assim no futuro. a rede e nós todos só temos a ganhar.
a pergunta que fica, sobre um episódio do passado recente e que pode muito bem se repetir em breve… é: será que a intervenção da ANATEL no caso speedy/telefônica não foi bem mais do que a agência deveria, ou melhor, poderia –inclusive legalmente- ter feito? afinal de contas, apesar de provido por uma operadora, speedy é um SVA, serviço de valor adicionado [veja o artigo 61 da LGT] e, por isso, não deveria ser regulado pela ANATEL. verdade que internet via ADSL está na regulamentação do SCM… mas que isso foi uma forçada de barra, foi.
e você diria: sim, mas se a ANATEL “não nos defender”, quem haveria de?… que tal os órgãos de defesa do consumidor? ou o CADE, que tem o papel de fiscalizar, prevenir e apurar abusos de poder econômico, dado que a maioria dos provedores de internet fixa detém algo muito perto de um monopólio em suas áreas geográficas? mas no brasil é sempre mais fácil pedir mais regras, mais burocracia, mais controle, ao invés de se exigir mais eficácia e eficiência dos mecanismos existentes.
até este blog, que defende, o tempo todo, menos buro- e burrocracia e complexidade, mais articulação e coordenação e menos regulação na sociedade, chegou bem perto de pedir que a ANATEL, lá no mesmo 2009, tratasse de intervir no seu provedor de ADSL. tudo bem que a situação por aqui era caótica; mas nada justificava ter pensado que a intervenção da ANATEL, neste tipo de caso, deveria ser algo corriqueiro.
não era. não é. e se for, algum dia, estaremos correndo o sério risco de ter trazido para a internet as amarras estruturais e conjunturais que atrasam e impedem, em muitos casos, inovação em telecom. abrir a porta pra regulação da pesada, na rede, é trazer o cartoon abaixo pra bem perto de casa… perto demais pra gente, sequer, querer contemplar o assunto. pra rede, vale o ditado latino: mutantur omnia nos et mutamur in illis. tudo muda e nós mudamos com o todo…