internet em 2020, [2]: transparência e privacidade

relatório do pew internet project [PIP] sobre o futuro da rede, publicado neste fim de ano, chegou a seis conclusões básicas, depois de consultar muitas centenas de especialistas, desde gente que desenhou a internet até a galera que faz a rede funcionar hoje. este blog está comentando os achados do projeto e tentando imaginar o cenário equivalente no brasil. o primeiro da nossa série foi sobre MOBILIDADE e você pode encontrá-lo neste link.

hoje, vamos falar sobre transparência e privacidade. para 2020, o PIP prevê que... The transparency of people and organizations will increase, but that will not necessarily yield more personal integrity, social tolerance, or forgiveness… a transparência de pessoas e organizações vai aumentar, mas que isso não necessariamente vai produzir mais integridade, tolerância e capacidade de esquecer e perdoar.

a razão fundamental para tal conclusão parece ser muito simples: tecnologia, ou novas formas de conectar pessoas e instituições através dela, não muda as pessoas [e instituições] em prazos curtos [como 12 anos]. o tempo da mudança social é muito mais longo. falando de tolerância, dá pra imaginar, pela mera existência da rede e suas tecnologias, israelenses e palestinos conversando e resolvendo o maior e milenar conflito do oriente médio em uma década? acho que não. uma disputa medida em mortes, invasões, foguetes, guerras, que os lados imaginam escrito nas tábuas das leis de cada parte, talvez não possa ser reescrito simplesmente porque uma nova tecnologia de conectar pessoas está por perto.

mas tolerância não é a única preocupação de quem está na rede. a internet é uma fantástica máquina de publicar, conectar e interagir. pouca gente, especialmente entre os mais jovens, imagina as consequências de botar sua vida inteira numa página, hoje. dia destes achei um emeio que enviei para uma lista em 1983, armazenado e indexado em um site qualquer. nada de que eu me arrependesse, então não me faz a menor diferença. mas quantos, entre os 13 e os 19 anos [ou mais], estão escrevendo e publicando coisas, hoje, das quais não se orgulharão muito em uns poucos anos? isso sem falar na informação que, mesmo eu e você não querendo, acaba à disposição dos sistemas de informação pelos quais passamos no dia a dia.

viktor mayer-schönberger [sobre quem eu escrevi neste link, em 2007]… "defende a tese de que os sistemas de informação devem, necessariamente, esquecer. acontece que as tecnologias para captura, publicação, armazenamento, replicação, busca e disseminação de informação, combinadas na rede nos últimos anos, criaram uma nova capacidade: a incapacidade de esquecer. nunca, em nenhuma época, ninguém teve tanta informação sobre tantas pessoas e seus hábitos como certas empresas estão começando a ter, na rede".

 

segundo mayer-schönberger, temos que começar a implementar uma ecologia de informação, onde o sistema legal deveria obrigar quem coleta dados a criar software que esquece com o passar do tempo.ou seja, a menos que determinemos o contrário, uma vez expirado o prazo de validade, por nós definido, dos dados que confiamos à loja, máquina de busca ou site de notícias, nosso rastro por lá deveria ser evaporado. mas este não é o caso hoje: em dezembro passado, google saiu da lista das 20 companhias mais confiáveis no tratamento da privacidade de seus usuários. google -se conseguir identificar você- guarda tudo o que você faz nos sites da empresa por nove meses… e pode entregar tudo à justiça, se for requisitado, ou usar os dados para qualquer tipo de transação que ache "razoável", como melhorar a resposta a uma pergunta que você faz, oferecer anúncios, o que for.

pouquíssima gente, na rede, sabe navegar de forma anônima. se você quiser tentar, veja como neste link. não lhe fará mal e pode lhe levar a descobrir coisas, na rede, que você não consegue saber hoje, exatamente porque muitos sites sabem muita coisa sobre você. muitos sabem, olhando para seu endereço IP, onde é que você está agora e respondem a sua pergunta [ou oferecem serviços] praquele lugar. e você, naquela hora, pode não estar interessado nisso…

clip_image004mas há mais. um dos argumentos mais falaciosos, usado por muita gente, segue a linha do… "não tenho nada a esconder", para acusar quem defende a privacidade, na rede, de estar fazendo alguma coisa imoral ou ilegal. não tem nada a esconder? então porque não deixa o vizinho tirar fotos suas tomando banho ou na cama, com a mulher, numa daquelas noites quentes, e publicar na internet? imagine o milhar de outras situações que não queremos ver disseminadas, na rede ou em qualquer outro meio. de repente, temos tudo a esconder. simples assim.

todo mundo tem muito a esconder. a privacidade é um dos princípios essenciais da vida e um dos direitos humanos fundamentais. daniel solove, da george washington university law school, escreveu um paper precioso sobre o assunto ['I've Got Nothing to Hide' and Other Misunderstandings of Privacy], onde o argumento "nada a esconder" é desmontado passo a passo. o artigo está em primeiro lugar na lista de downloads da SSRN [rede de pesquisa em ciências sociais] há um ano. vale a pena ler. para quem quiser ir mais fundo, o mesmo autor liberou na rede todo o texto de seu livro The Future of Reputation: gossip, rumor and privacy on the internet. o capítulo dois [How the Free Flow of Information Liberates and Constrains Us] é uma excelente leitura em nosso contexto.

finalmente, transparência. é certo que a rede vem aumentando a transparência de pessoas, instituições e, principalmente, governos em países democráticos. transparência é a base para a boa governança; sem saber o que realmente está acontecendo nos intestinos de uma organização, como garantir que ela está cumprindo sua missão dentro dos preceitos morais, éticos e legais de uma sociedade?

a falta de transparência é um dos principais insumos para a corrupção, e corrupção não se dá apenas nos meios governamentais. as empresas que têm baixos níveis de transparência e governança costumam sofrer do problema com intensidade muito grande. no seu índice de pagadores de propina de 2008, a organização transparência internacional analisou 22 países quanto à participação de suas empresas privadas em atos de corrupção no comércio internacional. os piores da lista não são nenhuma surpresa: em 17o. lugar, estão brasil e itália, empatados; depois, aparecem índia, méxico, china e rússia. os 22 países da pesquisa correspondem a 3/4 do total de exportações e investimentos do planeta em 2009.

e isso com a estando aí, e nela coisas como o portal da transparência da controladoria geral da união, que permite a qualquer um saber, em bom detalhe, para onde está indo o dinheiro público. vá lá e procure o que está sendo enviado pra sua cidade. é um bom começo; mas é preciso fazer muito mais. além de maior e melhor estruturação dos processos de contratação e acompanhamento dos gastos públicos, é preciso trazer a comunidade -as redes sociais de cada lugar- pra dentro da decisão de gastar o dinheiro e, em tempo real, para o acompanhamento do gasto.

conversei dia destes com um analista de tribunal de contas que tem certeza de que, na maior parte das cidades, gente do povo sabe exatamente quem está roubando os recursos públicos, como, pra que e com quem. quando o tribunal chega, normalmente anos depois, inês é morta. segundo o mesmo analista, trazer as redes sociais naturais do lugar para a internet, para acompanhar a execução dos recursos públicos, faria com que as controladorias e tribunais agissem de forma muito mais célere e precisa, e antes do dinheiro desaparecer.

enfim, se um tipo de agente, na sociedade, não parece ter direito ao anonimato e privacidade na internet, é aquele que decide, executa e controla bens públicos, e isso enquanto servidor público. sua vida privada é -e deve continuar sendo- privada, desde que não se misture à sua responsabilidade pública. como nosso representante no governo, pago pelos nossos impostos, queremos saber de tudo o que faz, com quem faz, pra que faz… e a internet, para tal, pode ser um agente libertador, se soubermos usá-la para tal.

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Silvio Meira é cientista-chefe da TDS.company, professor extraordinário da CESAR.school e presidente do conselho do PortoDigital.org

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