para entender o que vamos falar neste texto, talvez seja interessante ler o primeiro capítulo desta série, que está neste link. o primeiro texto serviu para fazer a pergunta do título, a partir de uma visão de mundo em que…
…a economia e sociedade em rede podem ser definidas ao redor de conhecimento, organizadas em termos de informação e tratadas, do ponto de vista de sua dinâmica, como conjuntos de fluxos, como se tudo fosse um flowscape, um espaço de fluxos,
e nossa conversa vem de uma provocação de hagel e seely brown, básica [e de mais de uma forma] controversa: eles acham que, apesar de estarmos na economia do conhecimento [e inclusive por causa disso!], as tecnologias de informação e comunicação provavelmente deverão aumentar a importância das cidades [principalmente as muito densas] e aumentar o fluxo de pessoas para tais lugares.
para hagel e seely brown, o mundo não é plano, mas cheio de picos; e os picos vão se tornar ainda mais altos e distintos em relação ao resto, que passaríamos a chamar de plano [mesmo]. isso seria o mesmo que dizer que nas economias de escala no mundo físico, no caso das cidades, um pequeno [em relação ao todo] grupo de cidades “leva tudo”. ou seja, tanto quanto na web, onde vale a lei do “winner takes all” e a geografia seria regida por um modelo de rede “livre de escala“, em que um número de nós [cidades], privilegiados de uma ou outra forma, atrai muito mais atenção e gera muito mais riqueza do que as outras.
certo, você diria; mas isso é assim hoje, tem sido assim desde, pelo menos, roma antiga e antes. pois é, mas acontece que uma das teses derivadas da visão bush-drucker-castells que descrevemos no texto anterior é de que isso seria radicalmente mudado pela rede. um dos textos que sustenta tal visão é de thomas friedman em “the world is flat“, onde se promove a noção de que tudo mudou e radicalmente: a se acreditar em friedman, um trabalhador [de conhecimento] fisicamente isolado no norte da índia, mas conectado em rede com o resto do mundo… é equivalente a qualquer outro, em qualquer lugar. pra ver os porquês em detalhe, clique na imagem abaixo.
mas, se o lugar é mesmo qualquer, e consequentemente não importa, porque haveria picos como o silicon valley? não, em tese não haveria. no médio prazo [seja lá o que isso for] os efeitos de rede deveriam aniquilar as vantagens da proximidade geográfica e o mundo, a partir daí, seria mesmo plano.
segundo hagel e seely brown, não é bem isso que está acontecendo e as teorias e evidências que melhor explicam o atual estado de coisas vêm, por exemplo, de richard florida, defensor da idéia de que o mundo está ficando mais “spiky“, mais cheio de picos e, por sinal, de picos mais altos.
em 1998, kevin kelly, então editor da wired, dizia [citado por undheim aqui, na pág. 152] que…
”This new economy has three distinguishing characteristics. It is global. It favours intangible things – ideas, information, and relationships. And it is intensely interlinked. [It changes the scope of things] From places to spaces…physical proximity (place) is replaced by multiple interactions with anything, anytime, anywhere (space)”.
em outras palavras, kelly diz algo mais que bush-drucker-castells, pois conclui que o lugar [place] onde as coisas acontecem será substituído pelo espaço [space] de interações de todos os tipos e em qualquer hora e lugar. ao invés de lugares, lugares conectados, suas interações e fluxos. mas… mesmo assim… em que lugares haveria mais gente, mais conectada, possivelmente gerando mais valor e a que lugares mais gente iria se conectar, o que tornaria tais locais, de novo, “places“, picos, neste mundo “space“, talvez nem tão plano assim?
a equação acima [em bose-einstein condensation in complex networks, de bianconi e barabási] dá conta de que a probabilidade de um nó em uma rede se conectar a outro nó depende da aptidão do nó ao qual a conexão seria feita. e isso vale sempre que a rede em questão se assemelha a um condensado de bose-einstein, o que parece ser o caso da web. é daí que surgem os googles, facebooks e twitters no mesmo “space” em que outros, tão bons quanto [em funcionalidade], não chegam a lugar nenhum.
a questão é: e no caso das cidades? porque empreender em taperoá, PB, é intrinsecamente mais difícil do que em palo alto, CA, especialmente se seu negócio for intensivo em TICs?…
aqui entram undheim e sua tese de doutorado de 2002, tentando explicar porque nem tudo eram ou são rosas, pelo menos não ainda. undheim nos diz [aqui, na pág. 33] que o vale do silício é um processo contínuo de “place making“, de [re]construção de um lugar, o que se dá ao redor de um território, organizações, conhecimento e tecnologia. assim como, muito depois, o porto digital [em recife], o vale do silício é um espaço ao qual está associado um repertório próprio, como se [o espaço] fosse um trabalhador de conhecimento e onde, por sua vez, um trabalhador de conhecimento fosse algo absolutamente “normal”, o que não seria o caso, por variadas razões, em taperoá, PB. ou no norte da índia, ou no interior de roraima.
e aí é onde o espaço, em tese, pelo menos, perde para o lugar; na norma, na prática, na história. segundo undheim [na pág. 173]…
…I will claim that Castells exaggerates the disembodiment of global business. Probably he would realize this if he started doing interviews instead of looking at statistics of major global information flows. That these flows increase is true, but this fact cannot deny the experience of day-to-day business. Simultaneously with the global spaces of flows of Castells, the de-spacing and corresponding place-making of workers through close encounters, and engagements in few, bounded communities of practice occurs all the time. Knowledge community and knowledge creating relationships evolve over time, and cannot easily be moved….
…castells exagerou na dose; o lugar não desapareceu por causa do espaço e isso se vê ao conversar com as pessoas ao invés de olhar as estatísticas. é claro que os fluxos são mais intensos [ainda mais do que em 2002] mas o lugar ainda é muito importante, em certos lugares muito mais importante do que o espaço. o silicon valley seria um destes lugares, onde comunidades baseadas em conhecimento evoluem no tempo, em termos de relações que não podem ser facilmente deslocalizadas.
prova disso talvez seja o número de caravanas que visita o silicon valley [e, no brasil, o porto digital] para tentar entender como a coisa funciona e como replicá-la no seu “lugar”. pelo menos no porto digital, nossa resposta é uma só e muito simples: pra começar, aprenda com nossos erros; este lugar não é ideal e provavelmente copiá-lo para o “seu” lugar não faz sentido; ao invés, desenhe seu lugar e os fluxos que, a partir dele e para ele, vão torná-lo diferenciado e único no espaço. ou seja, no mundo. como estamos tentando fazer, em recife, no porto digital e tantos outros o estão, para seus lugares, no resto do mundo.
mas afinal, pelo menos por enquanto, qual é a conclusão? ah… fica para amanhã. até lá, pense: por quanto tempo, ainda, o lugar vai continuar [se é que vai] sendo mais importante e relevante do que o espaço, e para que tipos de negócios?
nossa série continua, com o texto final neste link.