esta série de tres textos [o primeiro está neste link e o segundo aqui] surgiu de uma provocação de hagel e seely brown dizendo que, apesar de estarmos na era das redes, na sociedade da informação e economia do conhecimento [e certamente por causa disso], as tecnologias de informação e comunicação provavelmente deverão aumentar a importância dos locais em relação ao espaço.
bom… eles não dizem isso exatamente deste jeito, em termos de lugares [físicos] e espaço [o flowscape, o espaço de fluxos], como se fosse um discurso anticastells em termos do próprio castells [entenda esta conversa neste link]. hagel e seely brown dizem que…
…location does matter and will continue to matter. People are moving into large urban areas at an accelerating rate — today over 50% of the world’s population lives in dense cities versus ~30% in 1950. If location no longer mattered in terms of economic potential for an individual, it seems likely that more people would stay in place rather than uproot themselves to relocate…
…o lugar ainda importa e vai continuar sendo importante; mais de 50% da população mundial mora em cidades densas [contra 30% em 1950]; se o lugar não importasse [em termos de potencial econômico individual], as pessoas não iriam se mudar para estes lugares densos onde parece haver mais oportunidades.
segundo hagel e seely brown, isso ocorre por duas causas básicas: 1. o conhecimento tácito, que não é codificado e que circula nas conversações informais, locais, face-a-face, é cada vez mais importante e 2. existe uma atração natural [para os “melhores lugares”] de pessoas e recursos que precisamos mas que ainda não sabemos que existem.
um dos resultados é que, em lugares densos, a probabilidade de ocorrência de “serendipity”, encontros casuais de pessoais envolvidas com a mesma agenda é muito maior e de muito maior geração de potenciais resultados, como as discussões entre pessoas de múltiplas companhias no almoço do paço alfândega, no porto digital, os encontros entre grupos de vários prédios do tecnoPUC, em porto alegre, e os almoços, cafés e conversas, em sand hill road, no silicon valley, que criam muitas das companhias que [sem qualquer “má” inveja] muitos de nós gostaríamos de ter criado.
e aí os autores juntam o concreto e o abstrato…
…communities of interest, so common on the Web, tend to evolve into tighter communities of practice in urban areas as people engage in sustained efforts to develop things together. The passion of a few tends to inspire and draw in others. The ability to sustain interactions in online environments amplifies face-to-face interactions and fuels the passion of a growing number of participants. The physical/virtual community of practice becomes a magnet for others to move to the city. Certain cities become known for having a critical mass of passionate people, and that motivates even more people to relocate to these evolving urban spikes…
…observando que comunidades de interesse [na web] se tornam de prática [e tácitas, em sua maior parte], justamente em lugares onde muita gente está engajada em tornar realidade proposições teóricas que estão sendo discutidas online. a combinação das comunidades abstrata e concreta [virtual e física, segundo os autores], se torna um magneto e cada vez mais gente [interessada em certas ecologias de prática] tende a se mover para determinados lugares, o que leva ao efeito [que já discutimos no nosso segundo texto] do “ganhador-levar-tudo”.
marc augé ensina que um lugar é relacional, histórico e onde há uma preocupação essencial com a identidade de cada um e do próprio lugar. lugares, segundo augé, estão centrados nos indivíduos [que deles fazem parte], na cumplicidade [inclusive de linguagem] entre eles, no contexto e referências locias e em um certo modo, maneira, know-how de viver naquele lugar. são tais coisas que tornam o riode janeiro diferente de são paulo [mesmo quando se trata de negócios, exclusivamente] e de recife.
ainda segundo augé, o espaço, ao invés dos lugares, não é baseado em relações, história e identidades; o espaço é de certa forma um conjunto de não-lugares, parte dos quais existe fisicamente, como shopping centers [iguais em todo um país, quase iguais em quase todo mundo], aeroportos [onde ainda por cima a maior parte das pessoas está só de passagem e querendo sair de lá o mais rápido possível], cadeias de hotéis… que “servem” como moradia temporária e, todos parecidos, com a mesma assinatura, são iguais em todo canto e pertencem a “lugar nenhum”, são non-lieux, não-lugares.
aqui já dá pra articular uma ligação entre o abstrato e o concreto e começar a concluir nosso assunto, bem nos termos de hagel e seely brown. a rede, se estendermos a definição de augé, seria uma espécie de non-lieux; lá, principalmente nas redes sociais, participamos de uma identidade coletiva, temos uma anonimidade [de certa forma parcial e, de outra, temporária] e temos uma relação contratual com o todo [ou seu provedor, como twitter] e com todos [os que fazem parte da mesma rede que fazemos].
juntando as peças deste quebra-cabeça conceitual, josé alberto de vasconcelos simões, da UNL [portugal], observa muito bem que…
Se metaforicamente a ideia de rede é sedutora, por dar conta quase intuitivamente da crescente interconexão planetária que se constitui a partir de diversos nódulos globalmente dispersos, é também verdade que a imagem que produz tende a enfatizar a importância dos fluxos em detrimento dos lugares, ignorando, de alguma forma, que qualquer fluxo provém (ou é desencadeado) a partir de algum lugar. Por outro lado, e esta seria uma das suas principais limitações (pelo menos nalgumas das suas acepções), deixa de fora uma parte considerável da população, nomeadamente aquela que não participa nos fluxos globais dominantes.
Os fluxos não são abstractos, etéreos, desligados dos lugares de onde provêm e para onde se encaminham, mesmo que se constituam independentemente de constrangimentos territoriais. Disso mesmo nos dão conta as múltiplas redes “virtuais” formadas por participantes em fóruns de discussão que se organizam em torno de temáticas específicas. Com efeito, as suas discussões encaminham-se para assuntos, pessoas e eventos concretos, para os quais podemos encontrar uma correspondência tangível, ancorada em algum lugar, ainda que este possa ser efémero e quem o habita provenha de origens geográficas dispersas.
redes e fluxos no espaço [o mundo de bush-drucker-castells] abstraem, estendem, complementam… os lugares concretos onde ainda vivemos, trabalhamos e empreendemos fisicamente. e cada um destes lugares tem símbolos, linguagem e cultura próprios; richard florida descreve e estuda, há anos, lugares especiais onde há uma combinação de talento, tecnologia e tolerância e –por causa disso, em tese e na prática- cuja participação na articulação entre os lugares e no espaço também é especial.
as redes mudaram o mundo, é certo; mas ainda não ao ponto onde só e somente as redes são o mundo. se este fosse o caso, não seriam apenas algumas poucas cidades que estariam capturando quase todo o valor gerado no mundo abstrato. pense seattle [microsoft e amazon] e o próprio silicon valley [de google a oracle, passando por facebook e twitter].
no futuro, pode até ser que o flowscape englobe todos os lugares; que todos possam participar das redes [no lugar ou no espaço] que quiserem, em pé de igualdade, em qualquer lugar onde estiverem. mas para isso nossa experiência de rede, de fluxos, terá que ser muito mais rica do que temos hoje e no futuro próximo. bote aí uns 20 anos e, quem sabe, vai dar para empreender no “east of london” sem sair do porto digital ou, ainda melhor, empreender no porto digital sem sair do east of london.
será?… não sei. mas a resposta apropriada parece ser… “só será se for possível gerar e capturar, do lugar onde se está, o mesmo valor que seria gerado e capturado caso se migrasse para o outro lugar”.
aí, sim, o mundo seria mesmo plano, sem picos. até que isso seja verdade, ainda vamos conviver com muitos picos. o que deixa claro a necessidade, o problema e a oportunidade de termos pelo menos alguns deles, e de classe mundial, no nosso plano de brasil.