desde o começo da internet, um dos princípios fundamentais da rede tem sido o de tratar todo tipo de tráfego do mesmo jeito, com a mesma prioridade. além de garantir que todos os usuários, a qualquer tempo e sem ter que pagar mais por isso, podem [realmente] usar a rede para o que quiserem e entenderem, desde transmitir o gato dormindo na sala até compartilhar seus sistemas de arquivos usando protocolos p2p.
lá na ponta da tecnologia, neutralidade de rede significa que os pacotes de dados que fazem parte de uma transferência de arquivo qualquer teriam que ser processados pelos múltiplos pontos de rede entre a origem e o destino da mesma forma que pacotes que correspondam, por exemplo, a uma video conferência ou a uma transmissão de rádio pela rede.
o conflito é óbvio: tem um monte de gente querendo ver vídeo [51% do tráfego da rede, hoje] outro tanto querendo “trabalhar”, provedores de conteúdo que são provedores, também, de infraestrutura… e que em alguns casos podem ser tentados a dar prioridade a “seu” conteúdo na “sua” infra, sem falar nas empresas de conectividade móvel [as antigas “teles móveis”…] que dizem a torto e direito, para quem quiser ouvir, que a infraestrutura de conexões móveis “não pode” ser usada da mesma forma que a fixa, porque não foi pensada para isso… e tal e coisa.
só que, no brasil, mais da metade de todos os acessos a banda larga é… móvel, segundo dados da consultoria teleco. e isso em tempos que google, antigo bastião da neutralidade, começa a defender a ideia de “serviços diferenciados” na rede móvel, que nada mais são do que fazer mais e melhor para quem paga mais e melhor rentabiliza os serviços do provedor.
e não só: sob demanda de seus usuários, certos provedores começam a oferecer serviços diferenciados e muito bem aceitos pelo seu público. veja o caso de DEMON, provedor de acesso inglês que resolveu prover um acesso a banda larga que prioriza… jogos. por £3 a mais por mês, DEMON diz que… "What we’re doing is putting gamers into a business grade network… Looking at the usage of gamers, it’s actually more akin to a small business." segundo o provedor, o padrão de uso de quem joga online parece o de um pequeno negócio e o que eles vão fazer é garantir a melhor banda e a menor latência [tempo entre requisição e início de uma transação] para quem estiver disposto a pagar os tais £3 a mais por mês, aí por uns R$10.
pense: se fosse aqui no brasil, você teria assinado um contrato de 20 megabit por segundo e o seu provedor diria mais ou menos que… “se você me pagar R$10 a mais, por mês, eu cumpro o contrato”. é isso que DEMON está, na prática, oferecendo na inglaterra e que, se a tal história dos “serviços diferenciados” colar… vai virar a próxima praga da internet. que pode acabar levando a uma rede básica, que funciona quando der e puder, para quem estiver pagando a assinatura básica e, do lado dela, uma outra, tão boa quanto for possível, para quem puder pagar adicionais de todos os tipos e montantes. mais ou menos como se quem pagasse mais IPVA pudesse andar no corredor de ônibus, levando os gestores do corredor a tomar mais pistas do trânsito normal porque há mais gente querendo “pagar mais”… até o ponto em que os normais, que pagam o acesso normal, estariam todos espremidos numa pistinha bem estreita e esburacada à qual ninguém presta muita atenção.
desde o começo da internet comercial, no meio da década de 90, as teles estão imaginando e fazendo planos para voltar a cobrar por tempo de uso, por prioridade, por distância, por todo tipo de coisa que cobravam na era analógica das comunicações por tempo e que perderam na idade das redes, digital e de pacotes, onde passamos simplesmente a nos conectar. conexões locais iguais, de alcance global, sem restrições e limites. este é o espírito da internet. se não nos entendermos sobre o assunto, e rápido, entre usuários, governos, reguladores e provedores, o resultado será a balcanização da internet entre redes virtuais de serviços “especiais”… em prejuízo de todos.
a quase certeza de que tais serviços “especiais” levariam a um aumento de receita e melhoria de resultados das teles no curto prazo não compensa, no médio e longo prazos, a quebra do princípio de neutralidade de rede que nos trouxe até aqui, conectando tudo e todos em escala global. em última análise, neutralidade em cheque é a mais séria ameaça à internet em todo mundo, no momento, e vai ser preciso bem mais do que palavras para tratar do assunto.
na quinta feira 26, às 15h, o CDES vai promover um colóquio sobre acesso à banda larga no brasil; este blog vai estar na mesa e colocar este assunto na pauta. a discussão sobre o PNBL e o espaço regulatório da rede, no brasil, não pode passar ao largo dos princípios da neutralidade e seu cumprimento, o que requer não só regulamentação, mas fiscalização pernanente. o blog vai levar em conta, no debate, os comentários a este texto.