o caso do jornalismo –e a [des]regulamentação das profissões-meio [2]

aproveitando a decisão do supremo sobre a inexigibilidade de diploma para exercício das profissões de jornalismo, este blog está publicando uma série de textos sobre o tema, tratando o problema mais geral: que profissões deveriam ser regulamentadas? e que outras, especialmente no caso brasileiro, deveriam ser desregulamentadas? o primeiro texto da série está neste link; hoje, publicamos o segundo; outros vão aparecer nos próximos dias: sintonize.

o supremo tribunal federal, em sessão histórica, com voto de ampla maioria e repercussão num grande número de profissões ainda regulamentadas, eliminou a exigência de diploma para exercício das profissões de jornalismo. no supremo, os ministros entenderam que o diploma estava cerceando as garantias constitucionais de liberdade de expressão e informação.

segundo o ministro ayres britto, "Nesse campo, a salvaguarda das salvaguardas da sociedade é não restringir nada. Quem quiser se profissionalizar como jornalista é livre para fazê-lo, porém esses profissionais não exaurem a atividade jornalística. Ela se disponibiliza para os vocacionados, para os que têm intimidade com a palavra".

mas há uma razão ainda mais básica –e não constitucional- para que as profissões de jornalismo não precisem de diploma ou formação superior específica para seu exercício: jornalismo é uma –e não a única- profissão-meio. isso quer dizer que, excetuando umas poucas publicações que tratam jornalismo como fim, toda a “imprensa” [falada, escrita, televisada, blogada, tuitada…] trata do mundo, da vida, sociedade, economia, física, informática, medicina e saúde… das coisas que sentimos, fazemos, sofremos, e sobre as quais expressamos nossos pensamentos e preocupações. e jornalismo, ou as competências associadas ao jornalismo, são os meios de expressão que usamos para tratar, em público, nos veículos midiáticos, os assuntos relativos a todos estes nossos interesses.

não é difícil arguir que um bom economista está melhor preparado para falar sobre a crise financeira mundial, suas razões e possíveis futuros, do que um bom jornalista [que ainda não seja um especialista em economia devido a outras formações]. isso no sentido em que é mais eficaz e eficiente preparar um economista para usar os meios de expressão para disseminar o conhecimento que detém sobre o assunto e as análises que pode fazer a partir daí do que preparar um jornalista nos fundamentos e aplicações da economia.

o mesmo argumento vale, mutatis mutandis, para qualquer outro campo de atividade humana. basta fazer a pergunta: X [uma habilidade, formação, competência ou capacitação…] pode [ou deve] ser usado para exercício de alguma outra habilidade, Y, de uma forma tal que cercear o exercício da habilidade X prejudica não só Y mas a sociedade como um todo? faça esse teste para a sua atual profissão e/ou formação e veja no que dá.

veja o caso de matemática: as competências de matemática, e em muitos casos em níveis muito sofisticados, são usadas em dezenas, centenas de profissões. o que aconteceria se só formados em matemática pudessem exercer papéis que dependem de um conhecimento profundo da área? pra começar, um número muito considerável de engenheiros, cientistas de todos os tipos, sociólogos, economistas, gestores… gente que faz uso intenso de habilidades de matemática, não poderia exercer suas profissões atuais. pelo menos uma parte do seu trabalho [qual, e principalmente, como?] teria que ser realizada somente por matemáticos.

por outro lado, para os matemáticos, o mundo não se acabou: eles nunca se tornaram matemáticos porque a profissão era regulamentada. ela não é, nunca foi. mesmo assim, no mundo inteiro, o sistema financeiro e instituições de pesquisa [e só para citar dois casos] empregam todos os matemáticos que conseguem encontrar, sem que para isso tenham que ser forçados, por uma imposição legal qualquer, a contratá-los.

segundo joão lucas barbosa, presidente da sociedade brasileira de matemática, não há motivo para que a profissão de matemático dependa de diploma ou tenha um órgão fiscalizador. “A regulamentação também engessa a profissão. Com isto quero dizer que, com o evoluir da ciência e da tecnologia, outros mercados se abrem para uma determinada profissão, mas que não podem ser alcançados porque não estavam previstos na legislação que a regulamentava. Se algum profissional, de qualquer área, alcançar o domínio do conhecimento matemático ao ponto de poder fazer pesquisa em matemática no padrão internacional, ele será recebido de braços abertos pelos matemáticos e exercerá a profissão”.

matemática, assim como jornalismo, são linguagens, meios de expressão de conhecimento para muitas outras áreas. no caso de matemática, trata-se de fundamento e meio para todas as outras. como meio, corpos de conhecimento não podem e não devem ser objeto de reserva de mercado para diplomados na “área”.

e deve ser óbvio para qualquer um que a área de matemática [em particular], não conseguiria formar profissionais competentes em todas as outras áreas que usam matemática de forma intensiva, pois teria que se transformar numa universidade. de resto, o tempo de formação seria infinito. e o mesmo vale para todas as áreas-meio. no caso de jornalismo, vale o mesmo raciocínio.

agora pense numa profissão –ou diploma- atual e faça o teste. se for uma área “fim”, como cirurgia, as chances dela ser –e continuar sendo- regulada são muito altas; se for uma área “meio”, ela não deverá estar regulada por diploma e, se estiver, no momento, tal regra vai cair dentro de algum tempo.

quando se tratar de “meio” fundamental, como matemática, a área será parte da formação básica associada ao exercício de muitas habilidades, como já acontece. quando for “meio” instrumental, como jornalismo, a área poderá ser uma especialização, não mandatória, que se associará a muitas outras formações.

sábado, neste mesmo blog e comentários, a sequência desta discussão. aguarde. e assine nosso RSS pra estar a par do que vai acontecer aqui.

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