O futuro das tecnologias da informação e comunicação

O futuro não acontece de repente, todo de uma vez.
O futuro é criado, paulatinamente, por sinais vindos de lá, por caminhos que vêm de lá.
Interpretados nos contextos dos nossos presentes, que se vão, como os anos,
cada vez mais rapidamente.

 

Entre 2000 e 2003, escrevi uma série de 100 colunas para a finada revista eletrônica NO. Na primeira, o assunto era o papel (e seu papel na sociedade moderna) e o texto, O fim de um dos fins do papel, começava assim: Não passa um dia em que não haja uma frase de efeito, em algum lugar da mídia, sobre o fim do papel, da tinta e do livro. Só que, ao invés de um fato acontecido ou iminente, anuncia-se na verdade um debate, quase briga, quando bibliófilos estão por perto. Sem falar nos fabricantes de papel e plantadores de eucalipto.

A internet comercial começava a pegar no Brasil e, com ela, a previsão de que o papel ia mesmo acabar. Não só não acabou mas se usa, hoje, muito mais papel do que se usava há vinte anos, tanto na vida privada como nos escritórios. O que a internet anunciava (na época) e o que está começando a acontecer (hoje) é o fim de um dos fins do papel, o de suporte físico à transmissão da informação. Mesmo comprando livros pela internet, não compramos, via de regra, livros digitais, mas textos “de verdade”, que nos são enviados, fisicamente, através de algum meio de transporte. Claro que há ebooks e que muitos jornais estão planejando deixar de lado suas versões impressas. Mas meu tema inicial lá de 2000 ainda está longe de ser tratado no passado. O papel, mesmo como suporte para transmissão de informação, ainda tem um longo futuro.

Papel é uma das tecnologias de suporte à era da informação. Não esta nossa, digital, computada desde o PC, na década de 80, ou dos computadores à válvula da década de 50. Papel está aí há milhares de anos, desde a China antiga. E tornou-se imprescindível depois da prensa de Gutemberg, que ajudou a criar boa parte da civilização que vemos no mundo, hoje. Papel vai continuar por aí por muito tempo, inclusive como suporte à informação digital. Os “novos” suportes à “nossa” era da informação, no entanto, são os sistemas de computação e comunicação oriundos dos estudos teóricos e projetos experimentais, militares e comerciais, realizados entre 1930 e 1950. Daí vem a gênese do que se tem hoje, como infra-estrutura da sociedade da informação, do PC à internet, dos roteadores e fibras óticas a Windows e Linux, dos aplicativos, vírus e sites, dos discos aos processadores e memória dos computadores e celulares de espalhados por todo o planeta. De mais de uma forma, o futuro das tecnologias da informação e comunicação está sendo construído há mais de setenta anos. Nós é que tendemos a olhar para um passado pouco distante ou um futuro muito próximo.

Que futuro é este? Luciano Floridi, da Universidade de Oxford, teoriza que estamos construindo uma infosfera , um universo que seria o conjunto de todos os documentos (qualquer objeto capaz de reter informação), agentes (qualquer objeto capaz de efetuar operações sobre informação) e todas as ações que podem ser realizadas por agentes sobre documentos (ou sobre outros agentes). A infosfera inclui toda a informação ao nosso redor, e não só a informação digital ou armazenada em meios que nos parecem digitais. Não é nem preciso estender muito a definição para que se inclua, na infosfera, toda a informação guardada (e sendo processada) por agentes de qualquer tipo, inclusive organismos vivos. Como nós. A infosfera inclui toda a informação do universo, todos os suportes capazes de armazená-la e todos os agentes e as ações por eles realizáveis sobre qualquer tipo de informação, em qualquer tempo, lugar e suporte.

A infosfera de Floridi é um limite superior do que poderá vir a ser o futuro das tecnologias da informação e comunicação e, mais claramente, seu impacto e significado para a humanidade (e possivelmente para outras formas de vida). Imagine que tudo seja informação ou possa ser reduzido a uma dinâmica informacional representada por modelos informacionais (de coisas “concretas” do universo), ciclo de vida de informação (dentro de tais “modelos”, desde o surgimento da informação até seu desaparecimento) e processamento de informação (de todas as formas). Assumindo que cada e toda coisa, evento, sistema, sensação ou pensamento “real” (sim, incluindo seus sentimentos por um semelhante…) pode ser representada na dinâmica informacional sistematizada por Floridi (e descrita, antes e de formas diferentes, por muitos outros), somos todos inforgs (informational organisms, inglês para organismos informacionais) e podemos ser, todos, informatizados. Como parte do, ou de um, sistema.

Quão informatizados estamos? Por um lado, muito. Cartões de todos os tipos, celulares, declarações de imposto de renda e malha fina, telefones grampeados, agendas on-line, “emeio”, IM, orkut,… sem falar que quase todos os serviços e funcionalidades a que temos acesso, em lojas, governo, fábricas e mesmo carros, motos e ônibus, aviões e aeroportos, estão informatizados. Irremediavelmente. E não têm, aparentemente, nenhuma condição de se desinformatizar: esta não é uma tendência anunciada nem mesmo pelos mais pirados gurus de administração. Muito pelo contrário. E aí é que está o outro lado. A nossa informatização mal começou.

Minha casa tem quase nada de informática e ainda não me reconhece; meu chuveiro não sabe a temperatura que prefiro na água (dependendo da hora do dia e estação do ano); meu carro não se vira (sozinho) no trânsito e, se eu quisesse deixá-lo de lado (para sempre), não consigo (ainda), teclar um mapa no ponto de ônibus e pegar um coletivo, ponto-a-ponto, entre onde estou e onde quero ir. De um jeito fácil, seguro e rápido. Ainda tenho que ir ao hospital fazer exames, quando deveria ter sensores transmitindo meus (e de todos, o tempo todo) dados vitais para os servidores do sistema de saúde, que ainda não têm nem a inteligência para acompanhar a epidemia de câncer de mama do país, imagine para tratar os dados de quase 200 milhões de brasileiros e, usando de redes neurais a lógica difusa, decidir que amanhã, quando eu chegar no ponto do coletivo (que pode não ser ônibus) o lugar pra onde devo ir é o hospital, e não o trabalho. Que terá sido informado da necessidade de minha ausência, face a um tratamento preventivo que será realizado durante parte da manhã… por um robô.

Todas as cirurgias ainda são realizadas por humanos. No limite de Floridi, pode até ser que cirurgiões ajudem a projetar e treinar os robôs e desenhem as cirurgias. Podem até supervisionar o processo. Mas não vão realizar boa parte das operações. Não, esta não é uma descrição de “Eu, Robô”. Mas será que utopia de um mundo ideal, informatizado aos poucos, sem que consigamos interferir na maior parte dos sistemas e no grau de controle que eles começam a ter sobre a sociedade, não pode se tornar uma distopia onde perdemos o controle de agentes muito sofisticados que ajudamos a criar? E eles, por sua vez, começam a tomar as “melhores decisões” e, aí, o futuro não precisaria mesmo de nós?…

No mesmo abril de 2000 em que comecei a escrever para NO., Bill Joy publicou um dos textos de maior impacto da Wired em todos os tempos: Why the future doesn’t need us (Porque o futuro não precisa de nós). A tese central de Joy era que estávamos cavando nossa própria obsolescência, ao desenvolver sistemas e mecanismos, digitais ou fortemente baseados em digitalização e redes, que nos tornariam dispensáveis no longo prazo. O argumento de Joy é bem construído mas é auto-desmontável: à medida em que emerge a consciência de que o que estamos fazendo, informacionalmente, levará à nossa obsolescência, começamos também a criar os mecanismos de defesa para que tal não aconteça. Isso se investirmos tanto nas defesas quanto estamos investindo na criação da tal infosfera de Floridi. Se chegarmos a ter (por exemplo) sistemas de informação, nas teles, decidindo que fluxos de comunicação
devem ser grampeados, em função de algum tipo de análise automática, estaremos começando a chegar perigosamente perto de realizar a profecia de Joy. Só por acaso, software a serviço das agências de espionagem americanas está começando a fazer justamente isso. Aí é onde mora o perigo.

A informatização cada vez maior da sociedade e dos atores sociais é irreversível, sob qualquer faceta à partir da qual se vê o problema. Ou as soluções. E nossas principais salvaguardas são sociais e culturais. Os costumes, hábitos, a história, o contexto e os princípios éticos e morais que guiam uma sociedade devem, a todo momento, ser chamados à mesa de debates, quando cada parte de nossas vidas, uma após a outra, começar a sofrer uma influência cada vez maior de mecanismos advindos de uma dinâmica informacional que não só parece mas, verdadeiramente, está fora de nosso controle. A ciência e sapiência vão ser, no passo-a-passo, inserir nossos controles e defesas no processo de informatização de nossas vidas, antes que seja tarde. Para proteger alguns aspectos de nossa privacidade, lamentavelmente, já começa a ficar muito tarde. E, ao sentir isso, só achamos que estamos pagando o “preço do progresso” e “quem não deve não teme”. Muito tempo atrás, quando os nazistas começaram a identificar judeus, houve quem pensasse o mesmo. Os resultados, como se sabe, foram terríveis.

Mas pertenço ao time dos otimistas incorrigíveis: acredito que pessoas e sociedades aprendem e que a humanidade evolui. O curso dos acontecimentos, no longo prazo, está resolvido. Vamos viver, de fato (e de direito) numa infosfera, tão informatizada quanto for econômica, social e humanamente possível. E tenho quase certeza de que o possível será trocado pelo desejado e o humano e social estarão, no longo prazo, bem antes do econômico. E meu pedido pros anos que vêm é que tudo aconteça bem mais rápido do que vem acontecendo.

A gente se encontra no futuro. Em muitos informatizados e Felizes Anos Novos.

* *** *

PS 1: Aquelas 100 colunas que escrevi pra NO foram organizados e estão disponíveis na AMAZON.

PS 2: Este texto foi originalmente publicado no G1, em 29/12/2007.

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