parece que os livros digitais vão começar a ser um mercado, de verdade e em breve. a amazon está lá, a sony também, assim como a barnes & noble e agora a apple, trazendo seus fanáticos consumidores para a cena do livro digital. sim, e há um monte, dezenas, de xing-ling-readers, pelo menos meia dúzia dos quais tem aspirações a ser a hyundai do livro digital. mas há que se lembrar que o “reader”, o dispositivo que fica na sua mão, é só uma pequena parte da solução. ou uma grande parte do problema, você escolhe.
claro que ninguém sabe, a esta altura do campeonato, o que vai acontecer com o livro digital; aliás, este foi o tom das discussões do primeiro congresso internacional do livro digital, CILD, que rolou em são paulo semana passada; este blog esteve na conversa e os slides da palestra estão neste link.
este blog já discutiu, mais de uma vez, o livro digital e sua economia: mais recentemente, falamos sobre a chegada da pirataria digital à literatura, coisa que está para acontecer de várias e muito efetivas formas. num artigo correlato, reproduzimos um grande texto de nelson motta sobre as mudanças que o universo digital impingiu ao mercado de música, onde nelsinho deixa claro que, do ponto de vista de conteúdo e informação musical, a descentralização do poder e da capacidade de “produção”, resultados diretos da digitalização em rede… “pulverizou a informação e transformou um céu de poucas estrelas muito brilhantes em novas constelações e galáxias”. ao invés de poucos e “grandes” artistas, muitas, pequenas e grandes, possibilidades. como diria clay shirky, haja filtro.
pois é; de um jeito ou de outro, vem aí o livro digital e, com ele, a aplicação da lei de zucker ao mercado literário. jeff zucker, CEO da NBC/U, disse um dia que “a revolução da informação é a transformação de dólares analógicos em centavos digitais”. troque o contexto geográfico e moeda dele pelos nossos e você vai ter uma idéia do que já acontece aqui na música e vídeo e acontecerá em breve na literatura. este. aliás, foi um de meus slides no CILD, reproduzido abaixo.
mas isso é o mercado e, de uma forma ou de outra, ele vai se resolver. e este post é só sobre um dos temas mais quentes ao redor dos livros digitais, que eu passei quase ao largo na minha apresentação no CILD: quais são os direitos do leitor do livro digital? tipo… se você compra um livro [e paga por ele…] e, de repente, ele é recolhido pelo editor ou por ordem judicial, a sua cópia digital é recolhida? sim ou não? se sim, você é reembolsado? se o seu leitor for o kindle, a resposta é sim; e se for o iPad? a apple é mais radical e faz, e estará fazendo censura prévia de conteúdo, já para bater o centro. mais radicalmente, se um golpe de estado proíbe um livro que você tem [e certamente, leu] e resolve ir atrás dos leitores, os ditadores conseguem seu nome e endereço do fornecedor do seu livro? sim ou não?…
literalmente, o controle que a amazon e a apple querem exercer sobre seu modelo de livro digital é mais uma tentativa, em tempos de rede, de retornar o poder para o centro. aposto, pelas mais variadas razões, que não vai funcionar. e, pra não ficar só na aposta, aponto para e traduzo, aqui, parte de um texto da electronic fronteir foundation, a EFF, sobre livros digitais e os direitos dos leitores, que aponta oito principais crivos de sanidade para seu leitor digital. ah, lembre-se: seu leitor está em rede; ele não é um mero dispositivo e sim um sistema, tem um monte de software dentro e por trás dele e, não por acaso, troca dados sobre seus hábitos de leitura no mínimo com quem lhe vendeu o conteúdo.
vamos ver o crivo da EFF, que faz perguntas muito importantes sobre este novo mercado; ao lê-las, tenha em mente que estamos falando sempre de um sistema, cuja ponta visível é um dispositivo digital que mostra conteúdo e faz, ou deveria fazer, muito mais. e parte do problema é exatamente por aí: quanto deste mais é de nosso interesse e está sobre nosso controle?
1. seu e-reader [como um todo, serviço incluído] respeita sua privacidade? será que o sistema limita o envio de informação sobre o que você está lendo? e deixa você controlar a informação que ele coleta e envia [para outros sistemas] sobre você?
2. seu leitor lhe diz o que está fazendo? ou seja, mesmo que esteja enviando seus dados para o mundo, você sabe disso? seu leitor permite investigar se ele está vazando informação sobre você para algum ouvinte externo?…
3. o que acontece às adições feitas por você [comentários, anotações…] aos seus livros digitais? você é o dono e guardião delas, podendo controlar quem e como tem acesso às mesmas?
4. você é o dono do livro que lê ou só alugou ou licenciou o mesmo? você pode emprestar seu e-book? pode revender? seu livro pode ser editado ou deletado pelo vendedor por alguma razão?…
5. seu e-book é resistente à censura? quão fácil é tirar os livros dos leitores em função de alguma decisão de governo, justiça ou outra qualquer? os seus livros, “no” leitor, são controlados por uma entidade única, sujeita a pressão política ou qualquer outra, que venha a implicar na censura aos seus e-books como consequência?
6. seus livros digitais são “protegidos” por algum tipo de DRM [gestão de direitos digitais]? como DRM limita seu uso do livro? seu livro digital, em particular, só “funciona” no seu dispositivo atual? o que acontece se você trocar de dispositivo? vai ter que comprar seus livros “de novo”?…
7. sua escolha de “sistema” de livro digital promove o amplo acesso ao conhecimento? os autores podem, ou não, usar licenças do tipo creative commons ou doar o material ao domínio público? em que condições?
8. um particular sistema de livros digitais promove ou inibe a competição e inovação? ao comprar um sistema, você casa para sempre com um tipo de leitor e um formato de livro? seu provedor de literatura digital depende de ou promove acordos que limitam a competição?…
muitas boas perguntas, muitas delas sem nenhuma resposta de nenhum dos sistemas hoje no mercado, o que as torna um ponto de partida para a especificação de um conjunto de alternativas futuras, interoperáveis e transparentes, dos sistemas que realmente queremos usar.
de qualquer forma, as nossas esperanças de não perder o controle sobre nossas vidas e hábitos, da periferia para o centro e mesmo no confuso cenário atual, são muitos: alguém hackeou o iPad logo no primeiro dia e abriu as entranhas da coisa pra gente mexer no que quiser, correndo o risco que quiser. esta vai ser uma longa luta da comunidade, na periferia, contra os provedores, no centro, que querem ter nas mãos cada um dos nossos bits e, quem sabe, neurônios.
não é por acaso que o título da minha palestra era… literatura digital: o passado recente e o futuro próximo, vistos de um presente confuso… pois ainda falta muita, muita definição, padrões e, quem sabe, regulação, além de muito tempo e recursos investidos em tentativas, erro e aprendizado, até que a coisa toda fique mais ou menos normal, daqui a alguns anos, uma década, quem sabe. até lá, trate tudo deste mercado experiência.