…não é o livro digital: são os games, redes sociais e mobilidade. este era um de meus slides para um debate com muniz sodré, mediado por arnaldo niskier, no congresso rio de educação, na semana passada. a tese não é nova; foi tratada neste blog ao comentar declaração de jennifer egan [de que “não podemos chorar diante do videogame”] dada lá na flip. veja a conversa completa neste link.
no rio, sugeri que dante alighieri andou trabalhando num “game”, a comedìa, ele no script e priamo della quercia e giovanni di paolo, muitas dezenas de anos depois, no story board. parte do resultado está na imagem abaixo.
a “colaboração” aparece no famoso yates thompson 36, manuscrito da comedìa que se encontra na british library. o contexto da obra de dante é tomístico, e o “game” trata das óbvias punições para as ações condenáveis [acima, falsificadores no inferno… por della quercia] e recompensas para os que cumprirem as normas da vida pura, como di paolo mostra abaixo, na representação dos anjos.
dante usou o que tinha à mão, à época, e escreveu o livro fundador da literatura italiana. pra comparar, a odisséia, um poema gigantesco [12.110 linhas], não foi originalmente “escrito”, mas composto no séc. 8AC sobre eventos que podem ter ocorrido no séc. 12AC. transmitido pela repetição oral por séculos, a odisséia foi “sistematizada” no séc. 6AC por um comitê criado por um tirano ateniense. os primeiros manuscritos datam do séc. 3DC e a primeira edição impressa foi feita na itália em 1488. uma verdadeira odisséia, a história do texto da odisséia.
entre os dois “livros”, uma grande diferença: a Ὀδύσσεια era originalmente uma performance e a comedìa, por seu lado, uma composição. que até podia ser representada. ao contrário, alguma hora, passou a existir uma codificação padrão do primeiro livro, de certa forma tirando a liberdade de sua oralidade original.
voltando ao “game” de dante: as imagens do inferno foram usadas por séculos como admoestação para os pecadores. será que o mesmo conteúdo funcionaria, hoje, para o mesmo fim? pra começar, o inferno perdeu, há muito, o cartaz que teve no seu auge, na idade média. por sinal, a vida de dante, à época da escrita da comedìa, era um inferno na terra. com o tempo, o inferno se mudou pra terra e não há muita dúvida, hoje, que a imagem abaixo é mesmo de um passado distante. cada tempo, época, cada lugar no tempo, tem seu inferno particular.
que “saga” contemporânea tem o mesmo impacto de dante e seu inferno? não será, certamente, o game baseado na obra do grande florentino, que foi um fracasso. até porque não era original, como argumento e mecânica. e ninguém lamentou.
mas um dos games mais vendidos e jogados de nossos tempos pode representar o inferno das grandes cidades, suas periferias e seus conflitos. como obra literária, não existe em forma que possa ser comparada com qualquer outra. como game, é um atrator indiscutível de atenção e debate. pra entender, veja um pouco de GTA, grand theft auto, no vídeo abaixo. será que o inferno, de dante, chega a tanto?
[aviso: as cenas abaixo são de gameplay de GTA IV, parte de uma série com mais de 130 milhões de cópias vendidas, inclusive no brasil. há muita violência virtual envolvida, e não é recomendado para pessoas sensíveis. veja a seu critério.]
qual é um dos problemas com GTA? gente pequena, tipo 10 anos de idade, não vê “nenhum problema” em jogar GTA. e não há qualquer evidência de que quem joga games como GTA se torna mais violento do que a média das pessoas de sua idade, no seu contexto sócio-econômico, cultural, escolar e familiar. será que o “inferno” moderno não tem qualquer impacto sobre seus usuários [e não mais leitores…] ou GTA não é forte o suficiente [ou não carrega uma mensagem, ou “lição] que leve os gamers a refletir sobre sua vida pregressa e se preparar para um futuro melhor?
GTA é entretenimento. harry potter também. que o digam 450 milhões de livros vendidos. o último da série vendeu 11 milhões de exemplares em 24 horas. ao todo, “potter” vendeu quase quatro vezes mais livros do que todos os GTA. e sete vezes o alquimista, o livro brasileiro mais vendido.
as obras de dante, homero, j. k. rowling e paulo coelho –ao contrário deste blog- existem sobre uma “plataforma de compatibilidade” chamada livro impresso, que é toda uma rede de valor, de autores a livrarias e bibliotecas, desenvolvida de gutenberg pra cá, que serve de base para a literatura e educação em escala global.
antes do livro, ou antes de gutenberg, estávamos na época da oralidade, de onde veio a odisséia. sem uma plataforma industrial para registro das composições, os autores tinham que confiar na repetição oral, na recriação coletiva da obra, nos métodos tradicionais, contextuais e instáveis de performance, para garantir a sobrevivência de sua história. segundo tom pettitt, este é o espaço anterior ao parêntesis de gutenberg, chamado de performance na imagem abaixo.
assim como o texto escrito “cria” a história, a plataforma de gutenberg “cria” o autor e tira a centralidade da obra da performance para composição. este “novo” espaço, no qual vivemos nos últimos 500 longos anos, preza pelo original [e pelo “direito autoral”], pelo individual, pela estabilidade da obra. mesmo interpretado, o texto [dentro do parêntesis de gutemberg] reina indisputado, autônomo. a cópia, aqui, é crime ou quase em quase toda economia minimamente codificada. o plágio, inaceitável. o autor e sua obra reinam, perenes, sobre a plataforma de gutenberg.
depois dos parêntesis de gutenberg, tempo que estamos vivendo agora, os novos modos de tratar, receber, perceber e promover informação desarranjam o espaço canônico da composição e nos levam a processos de cópia+mistura+cola [ou rip+mix+burn] oferecendo novas e gigantescas possibilidades e, ao mesmo tempo, pondo em risco todo um arranjo [cultural, de negócio e poder] outrora [ou ainda] centrado no autor e sua obra. a tese de pettitt, quase de uma volta à oralidade ou à performance, diz que estamos saindo do parêntesis para um um espaço onde tomar material emprestado, recombiná-lo [às vezes com material próprio], talvez numa nova forma, é a nova norma. daí, bye, bye, gutenberg. você foi um hiato.
sabemos das consequências, pois vivemos os conflitos no dia a dia. o embate sobre propriedade intelectual vem desta transição para fora do parêntesis. e muito ainda vai rolar como consequência da desarticulação da plataforma de gutenberg,
no rio, o debate era sobre o livro, impresso versus digital. mas este não é –mesmo-o debate. o que há –agora, de fato- é um embate é entre as experiências lineares e as não lineares; entre a recepção e repetição [perfeita?…] do conteúdo estável do livro, usado como base para a “escola” e novos modos de criação, distribuição, tratamento, percepção e interação com informação, sobre novos ambientes como o dos games, por exemplo. a escola, como a conhecíamos, também está saindo do “parêntesis de gutenberg”… vivendo hoje em um limite…
…onde estão o livro, a música, o filme, a TV e os próprios games. esta não vai ser, e não está sendo, uma transição trivial. afinal de contas, não é todo quarto de século onde uma plataforma de compatibilidade de 500 anos se torna obsoleta. o mimimi repetido, ad nauseam, pelos beneficiários do parêntesis [inclua também as viúvas da indústria da música de vinil e CD…] é uma proposição para preservar o passado.
não que o “livro” vá ter o mesmo destino do toca discos e se tornar peça de museu e colecionador em meros 25 anos. vai demorar um pouco mais a sumir de vez. mas há de se lembrar que o toca discos, como plataforma de compatibilidade, durou pouco mais de 100 anos.
o parêntesis de gutenberg, que tem fundações, funcionalidades e formatos simples e universais, é meio de representação de todas as culturas, e precisa de algo muito mais elaborado [e ao mesmo tempo, simples e universal] para substituí-lo. o livro digital é –em suas atuais proposições e formatos- apenas parte do caminho que leva ao inevitável fim do “livro impresso”.
o “fim do livro” ainda leva algum tempo, mas já é, só, uma questão de tempo.