OS INVASORES

ontem, neste espaço, rolou um texto sobre o novo coração artificial [“smart”] que está sendo desenvolvido na frança por grupos da UMPC e da EADS [empresa que faz o airbus]. a idéia, no médio prazo, é ter um coração artificial total que possa ser implantado [temporariamente] em pacientes muito graves que não podem esperar transplantes. e, no longo prazo, ter um coração que possa substituir de vez o coração humano que carregamos no peito. com um coração "inteligente"… quem sabe homens e mulheres farão menos besteiras na vida.

escrever o texto de ontem me lembrou de um outro, de ficção, que publiquei em em 29 de setembro de 2000 na extinta revista eletrônica NO. a história abaixo é sobre a relação entre um sujeito ranzinza e uma galerinha de um mega condomínio no futuro próximo. leia. assuste-se [ou não]… um dia vai ser verdade e está oito anos mais perto… com o coração do dr. carpentier e outros desenvolvimentos que andam rolando, está muito e cada vez mais perto.

ah, sim: o texto abaixo também serve pra mostrar a alguns contumazes [e renitentes] leitores deste blog que eu sei usar letras maiúsculas e minúsculas. não as uso mais, em textos na web, porque é mais prático: economizo montes de "shifts".  e também porque quem quer ler lê mesmo com as letras todas minúsculas… boa leitura.

OS INVASORES

Um dia, teve uma dor de matar, aliás de quase. Acordou no hospital sentindo o peito e tendo um médico à cabeceira, perguntando, pausadamente, se estava a se sentir bem. O sim, meio trêmulo, demorou. Mas saiu. Recuperado, aprendeu que tinham reconstruído seu coração, agora composto, em parte, por um dos novos modelos IntelliBeat, que já incorporava um pequeníssimo servidor web para monitoração, avaliação e controle cardíaco. E isso há três anos.

Depois que se acostumou, a vida ficou normal, ou quase. Pouco se lembrava que seu corpo recebia (às vezes) comandos de um servidor, em algum hospital, e enviava (sempre) bio-dados para a rede. O femto-server instalado no seu coração e a antena pico-cel mais próxima faziam às vezes de sua ligação com a vida, o mantinham no ar, o tempo todo. Como se fosse um rádio na rede. Como a fonte de energia tinha deixado de ser um problema, os novos IntelliBeat eram um sucesso fenomenal: a manutenção e evolução do software podia ser feita, remotamente, sem qualquer tipo de intervenção local, muito menos cirúrgica. Você nem sentia nada quando mudava de versão.

Fruto do casamento de várias tecnologias, as novas próteses inteligentes eram naturalmente ligadas à rede. Houve uma oposição muito forte, no início, mas as vantagens eram tantas, e as penalidades pelo uso indevido dos dados, inclusive de localização, tão severas, que ninguém nem se lembrava, mais, que estava em rede. Ou questionava se ia ficar, quando, por alguma razão, tinha que receber uma delas.

Nas primeiras semanas, redivivo ao sair do hospital, tinha se tornado mais ouvinte, mais paciente e cordato. Mais simpático. Apesar de biônico, mais humano. Durante algum tempo, agüentava até choro de bebê com dor de ouvido no avião, sorrindo e compartilhando a agonia da mãe desesperada. Mas com o tempo foi se achando imortal, principalmente quando analisava na rede os dados do IntelliBeat, seu coração de mais que leão. Indomável.

A irritação voltou, reacesa na chama da suficiência. Fechou a cara pra todos, emburrava-se com tudo, do trip-hop do vizinho do lado, desorganizando seu sono, até o cantarolar da garota de baixo, aspirante a estrela de rede-pop. Seus limites, porém, eram dizimados mesmo pelo pestinha do 7L2S, o hiper-ativo cabelo espetado que parecia nunca dormir ou cansar, sempre observando, perguntando, gritando, correndo pra todo lado com o filhote Akita, terraplanando a paz do condomínio. E sempre muito mais perto do que deveria estar.

Um fim de dia, irritado da vida, incendiado pelas perdas no mercado e pelo trânsito, trombou com o diabo e o cão, ao ignorar o elevador e subir a rampa entre os 5L e 6L. Ficou acuado, quase descompensado entre latidos, reclamações e o alumplast repicando no chão, talvez destruindo os C3. Como os C3? A peste também tem um? Por que e para que teria um dos novos clientes de comunicação, computação e controle? Entre tantos ruídos, ouviu-se dando um bicudo no Akita, transformando a ameaça em ganidos, em fuga, de dor. E lançando o pivete numa série interminável de palavrões, entremeados por você-vai-ver e não-perde-por-esperar.

Um menino, com um C3… prá que? Só se fizesse parte (mas naquela idade?!…) de um bando de… invasores! Será? E esta mensagem no C3, agora, de Ran… junto com a listagem dos seus bio-dados no visor, sem ter pedido? Desorganizada, sua rede de pensamentos se torna cada vez mais aleatória, à medida em que o IntelliBeat enlouquece e sai, quase instantaneamente, de 80 para 120 para 160 para 40bpm, várias e várias vezes, até que, oscilando ao redor de 80, permite que o canto do olho enxergue, desesperado, os comandos que estão sendo executados no femto-server.

O penúltimo encerrou, definitivamente, o processo que ouve os comandos do servidor do hospital. O último está parando, de vez, o gerador do IntelliBeat… Depois, a assinatura da galera que invadiu seu coração, detonou o femto-server e está determinando seu fim. Ran. O nome do Akita. Os pivetes do condomínio. Se pudesse… mas é muito…

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Silvio Meira é cientista-chefe da TDS.company, professor extraordinário da CESAR.school e presidente do conselho do PortoDigital.org

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