Imagine um provedor de infraestrutura e serviços de informação tomando a decisão de não trabalhar para “um cliente incapaz de identificar e remover conteúdo que incentiva ou incita à violência”. Ou uma rede social que “suspende, em caráter permanente” a conta de um dos dez maiores usuários “devido ao risco de mais incitação à violência”. O “mais” leva em conta muitas publicações provocando uma insurreição – pateticamente executada, aliás. Se fossem suas empresas, o que você teria feito nos dois casos?
Tanto provedores de infraestrutura quanto redes sociais são agentes intermediários na internet. Categorias que não existiam no princípio da rede, agora são essenciais para seu funcionamento, se tornaram negócios gigantescos que cuidam de milhões de empresas e bilhões de usuários e lidam com problemas inimagináveis há 25 anos.
A Amazon -que cessou o contrato com Parler- e Cloudfare -provedor de segurança como serviço que descartou 8chan como cliente em 2019 – usaram seus termos de serviço para demitir clientes cujos propósitos e ações representavam riscos inadministráveis quando considerados seus impactos sociais. É difícil encontrar similares analógicos, mas é como alguém alugar um canal de TV para, 24 horas por dia, transmitir mensagens de ódio contra etnias ou crenças -ou instituições- e promover ações violentas dos espectadores contra seus alvos.
Pra quem não sabe, 8chan está ligado à origem de QAnon, teoria conspiratória de extrema-direita refutada e desacreditada -mas que tinha milhões de membros em grupos de Facebook até outubro passado- de que uma seita de canibais pedófilos adoradores de Satanás estaria por trás de uma rede global de tráfico sexual infantil e conspirando contra John Barron, também conhecido como Donald Trump, que estaria lutando contra o esquema. É mole ou quer mais?
Outros intermediários são plataformas sociais, como Twitter, que tem tomado atitudes e decisões cada vez mais severas para proteger a sanidade de sua rede social, marcando tweets como ofensivos, suspendendo contas e banindo usuários, alguns definitivamente, como o já mencionado John Barron. Algo parecido acontece nos games online há uma década; em League of Legends, a Riot Games usa contextos e algoritmos para tentar influenciar gamers a agir de forma mais cooperativa nos times e se comportar de forma menos rude ou tóxica em relação a outros jogadores. E suspende e bane os recalcitrantes, para manter a sanidade da rede.
As infraestruturas de comunicação – como os provedores de acesso- também são intermediários, com menos deveres legais do que as infraestruturas de informação. Estas só são isentas de responsabilidade quando não têm conhecimento de fatos ou circunstâncias associados a ação ou informação ilegal em seus domínios ou quando, ao ter conhecimento, agem rapidamente para remover ou desativar o acesso às informações ou sistemas envolvidos em atividades que ferem a lei. Além de uma certa dose de responsabilidade social corporativa -parte oriunda da pressão de acionistas e representações sociais- o que levou Amazon, Cloudfare, Apple, Google, Facebook, Twitter e muitos outros a banir e se recusar a prestar serviços de rede e infraestrutura a certas entidades e pessoas foram as implicações legais de, sabendo -porque público- do ocorrido e promovido em suas plataformas, ser tratado como cúmplice quando da apuração dos fatos.
Claro, até nos espaços legais mais frágeis, há o direito constitucional à liberdade de expressão. Que tem limites, claros. E se há uma coisa com a qual temos que ser intolerantes, é com os intolerantes, odiosos, supremacistas de origem e ocasião e de resto com o autoritarismo e totalitarismo de toda laia. O único lamento, no caso de Trump e outros, é que os intermediários agiram na undécima hora, quase quando não havia mais tempo para tal. Porque isso era problema das instituições do país, você diria. Talvez… mas e se as instituições estivessem -como pareciam e parecem estar, até agora- intimidadas e/ou dominadas, pelo menos em parte, pelos sediciosos?
O populismo e, principalmente, a radicalização de posições pessoais e políticas, o golpismo, autoritarismo e totalitarismo dependem essencialmente de quem se sente desconectado da e desrespeitado pela sociedade. Problemas -profundos- no tecido e integração social, a diminuição da confiança nos outros e no todo levam à raiva e ressentimento que energizam o populismo -e radicalismo- e põem a democracia em risco. Boa parte do problema vem, como sabemos, do capitalismo e do que as corporações, nas últimas décadas e no mundo inteiro, fizeram para enviesar, manipular e controlar o sistema a seu favor e em detrimento do todo –e principalmente do povo. Especialmente nos países periféricos, há 50 anos, mas, hoje, em quase todo o mundo.
A saída? Voltar aos princípios da democracia verdadeiramente representativa. E a iniciativa privada tem um papel fundamental nesse processo: depois de muito tempo financiando agendas a seu favor, e quase sempre só para o lucro a qualquer custo, chegou a hora de articular -e financiar, e promover- as agendas para o todo, para todos, inclusive para os mercados. O capitalismo precisa entender, de uma vez por todas, que mercados livres dependem essencialmente da democracia. Ou alguém defenderia a transposição, para qualquer lugar, das condições para a livre [?!?…] iniciativa na Rússia?… Numa linguagem que empresas, empreendedores, investidores, o capital e o capitalismo entendem, há um Business Case for Saving Democracy [ouça a professora Rebecca Henderson sobre o assunto neste link].
Na última vez que a democracia quase morreu para sempre, antes e durante a Segunda Guerra Mundial, empresas de tecnologia de informação da época -notoriamente IBM e KODAK- colaboraram com os nazistas sabendo muito bem o que estava acontecendo e qual era seu papel no apocalipse. Dessa vez, pode muito bem ter sido o caso que a iniciativa privada -e de tecnologia- tenha sido essencial para salvar as instituições públicas -e a democracia. Mas ainda é cedo demais para cantar vitória. A hora é de luta, não de comemoração. E a longa luta pela democracia já é global, precisa de todos nós, o tempo todo, em toda parte. Inclusive no Brasil. Agora.
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Uma versão editada e reduzida deste texto foi publicada no ESTADÃO em 13/01/21.