no episódio anterior desta série, vimos que sistemas de informação, simulando o mundo ao qual estamos acostumados, começam a determinar o que podemos fazer de concreto em um ambiente controlado, cada vez mais, pelo abstrato. além do mais, mostramos que “sistema”, na interpretação dada aqui, é mais que software, que é só parte da parada. no caso da portaria do prédio, o sistema tem catracas, crachás, elevadores, sensores [na escada de incêndio, por exemplo] e humanos: recepcionistas, supervisores, guardas, o visitante. todo mundo que está “no sistema”, ou que interage com ele, faz parte do sistema de alguma forma.
aliás, considerando que os humanos podem realizar certas sequências finitas de instruções bem definidas, é possível desenhar algoritmos que sejam computados apenas por humanos, sem auxílio de hardware, software e/ou outros artefatos. antes da computação estar associada a computadores [as máquinas, hoje digitais], o termo computador era usado para descrever humanos que calculavam, quase sempre trabalhando em grupo para realizar cálculos complexos.
hoje, human computing é o estudo do desenho e uso de esforço humano para realizar tarefas que computadores [aqui, combinações de hardware e software] ainda não podem realizar [e fazendo as quais os humanos, ainda por cima, podem se divertir]. isso não tem quase nada a ver com crowdsourcing; enquanto esta substitui [no trabalho] trabalhadores comuns por humanos que fazem parte de alguma comunidade, aquela substitui ações que seriam realizadas por hardware e/ou software pelo esforço humano.
para um número de coisas, human computing faz [muito] sentido, especialmente daqui pra frente. algoritmos e sua implementação como software, e o “sistema” resultante, vão eliminar muitas posições de trabalho onde um humano, hoje, faz pouco mais que um trabalho repetitivo que poderia ser realizado por um robô. quando [e aqui não há um “se”] reescrevermos estes trabalhos em software, o que será feito dos humanos que o realizavam? um desenho de computação humana compatível com a natureza essencialmente humana de trabalhadores como nós pode ser uma saída de curto prazo para quem perdeu o emprego para software.
mas… quem vai perder o emprego para software, e em que ordem?…
primeiro, a tese que sustenta a argumentação, baseada em cinco marcos essenciais da história da informação em qualquer cenário onde haja vida inteligente.
vamos lá: se há algum 1. código da vida [como DNA, aqui] em algum planeta, no universo, além do nosso, este “software” [sim, somos, no fundo, software], dentro de condições ambientais apropriadas [isto é, contexto “calmo” o suficiente para vida e aprendizado], será a base de um processo evolucionário que resultará em organismos complexos como os nossos. os corpos destes seres terão 2. cérebros capazes de entender e intervir no ambiente. as primeiras intervenções, em ordem de complexidade, estarão relacionadas ao corpo, quase certamente codificando informação e conhecimento na forma de 3. ferramentas. na terra, DNA existe há 3.5 bilhões de anos, e cérebros como os nossos surgiram há cerca de 4 milhões de anos; as ferramentas elementares para aumentar a capacidade de ferir [garras, ao invés de unhas] são datadas de 3.4 milhões de anos atrás, obra da família de lucy, o australopithecus afarensis, em dikika, etiópia. as primeiras ferramentas, pelo que se acredita até aqui, são ossos pontiagudos, possivelmente modificados para tal aspecto, vistos na imagem abaixo.
ao certo, nunca saberemos exatamente onde e quando as primeiras ferramentas foram desenvolvidas ou “capturadas”. pois parece que a capacidade de estender o próprio cérebro, registrando fatos relevantes da vida de forma externa ao corpo, na forma de 4. texto, leva muito mais tempo para acontecer. da forma como usada hoje na maior parte do planeta, a escrita baseada em alfabetos como o nosso tem menos de 3.500 anos e vem da grécia, ao redor de 1.400AC.
comparado a seres rudimentares, sem acesso a ferramentas e linguagens escritas [sim, muitas: da poesia à ciência e tecnologia], h. sapiens está no topo da cadeia do conhecimento. no séc. 17, começou a descrever o mundo de forma muito mais precisa do que até então e, ao mesmo tempo, a linguagem de descrição o tornou capaz de começar a prescrever mudanças antes inimagináveis. a sistematização da ciência e seus efeitos na técnica criaram, na prática, a indústria e sua revolução.
textos para descrever e prescrever a fabricação e uso de ferramentas e sistemas [fábricas…] inteiros foram essenciais para codificar e disseminar conhecimento. a industrialização do texto [gutenberg, meados do séc. 15] precede watt por mais de três séculos. o texto industrial, barato, commodity, possibilitou boa parte do que aconteceu nos séculos a partir dele. é difícil imaginar uma mudança da ordem da revolução industrial a partir de monges copistas… não é?
não demorou muito até que, ainda no séc. 17, fosse possível começar a projetar e construir sistemas cujo propósito era substituir o cérebro, ainda mais quando o problema a ser resolvido envolvia muitas repetições de operações elementares. as calculadoras de leibniz construídas entre 1674 e 1694, foram as primeiras máquinas a fazer as 4 operações sem auxílio humano ao calcular… mas era um humano que emprestava a força motriz para que o engenho funcionasse. olhe a manivela, na imagem…
a máquina de leibniz é primária, mas representativa de tecnologia como o domínio das possibilidades. há 350 anos, leibniz [e outros] já tentavam transferir o cálculo aritmético [que só humanos e talvez um cavalo realizam…] para as máquinas. leibniz, babbage e todos os que atacaram o problema do cálculo automático até a primeira metade do séc. 20 olhavam para o lugar certo… e viam as ferramentas e sistemas erradas. era preciso criar uma nova classe de ferramenta, precedida por toda a teoria que a sustentasse.
e foi só na década de 30 que o princípio da máquina computacional universal, que consegue computar qualquer função que, em tese, pode ser computada, abriu caminho para a construção dos computadores “programáveis” e para a noção que temos, hoje, de programas e 5. software. a máquina “de turing” [dos anos 1930] é a abstração que originou os computadores “de von neumann” [de 1945], cuja arquitetura ainda serve de base para quase todos os sistemas computacionais que usamos hoje.
então, via 1. DNA, 2. cérebros, 3. ferramentas, 4. texto e 5. software, chegamos onde queríamos. software é o que especializa computadores universais para que seja possível, neles, computar tudo o que pode ser [eficientemente] computado. programar computadores –ou “fazer software”- é o que possibilita a criação de sistemas de informação que usamos para simular [ou reimplementar] o mundo. a figura abaixo está lá no primeiro episódio da nossa série…
a partir deste ponto, você já pode começar a concluir o que só vamos escrever no próximo episódio: ao atingir o estágio software de sua sofisticação informacional, o que uma civilização vai fazer?… primeiro, software vai processar texto, porque, afinal, o próprio software é um tipo de texto; depois… bem, no próximo episódio [que está no link… bit.ly/3r9rOF3]a gente vai saber. até lá.