EUA vigia todo mundo: e agora?

O texto de sexta passada, neste blog, sobre a notícia que o governo dos EUA está possivelmente conduzindo uma operação massiva de captura de informação em servidores web que todos usamos, como faceBook, google, apple e microsoft causou grande impacto, como era de se esperar. também não é de se estranhar que muitos entendam que não têm nada a esconder e por isso pouco importa quem os está bisbilhotando.

o argumento falacioso do não tenho nada a esconder, quase uma acusação aos que defendem privacidade na rede, de estar fazendo alguma coisa imoral ou ilegal, não faz, nunca fez, o menor sentido. você não tem nada a esconder? então porque não deixa o vizinho tirar fotos suas tomando banho ou na cama, com sua mulher, numa daquelas noites quentes, e publicar na internet? imagine o milhar de outras situações que não queremos ver disseminadas, na rede ou qualquer outro meio. de repente, temos tudo a esconder. simples assim.

a privacidade é um dos princípios essenciais da vida e um dos direitos humanos fundamentais. daniel solove, da GWU law school, escreveu um paper precioso [‘I’ve Got Nothing to Hide’ and Other Misunderstandings of Privacy], onde o argumento "nada a esconder" é desmontado passo a passo. se você quiser saber realmente porque, vá ler, antes de ir lá nos comentários e dizer que sua vida é um livro aberto. o blog não acredita nisso; perca sua ingenuidade, também.

ao escrever o texto na quinta, o blog disse que muito mais se saberia nos próximos meses. neste fim de semana, o guardian, jornal inglês que descobriu a história [pela via da captura de dados de ligações da verizon, operadora americana], vazou mais um pouco do que sabe, um texto sobre boundless informant, a ferramenta que a NSA usa para capturar informação das redes [abertas, só?…] mundiais. pra você saber, só em março passado foram capturados 97 bilhões de itens de informação. o mapa abaixo mostra a temperatura dos países em relação à atenção americana por informação: verde é  baixo risco, vermelho é risco total. estamos no meio.

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agora se sabe quem botou a boca no trombone: um carinha de 29 anos, edward snowden, e a um jornal ingles, o guardian, que talvez seja um dos últimos em que se pode confiar entre UK e EUA. interessante é que um americano abra uma caixa de pandora do porte de PRISM a um jornal inglês e não americano. e fazer isso a partir de hong kong e não europa ou brasil, por exemplo, talvez esperando que a china não vá extraditá-lo para os EUA. eu não apostaria um pirulito nisso, até porque os líderes americanos e chineses, agora, são amiguinhos para sempre.

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bem… a história não acaba aqui e as consequências vão rolar por anos, décadas. e isso deveria levar a uma reflexão sobre o estado de coisas e o brasil, agora, pra que a gente se prepare para o futuro. foi isso que fez cristina murta [twitter, web] em emeio para o blog, sobre o primeiro texto desta história. com permissão da autora, o material é publicado ipsis litteris abaixo, com a sugestão de uma leitura cuidadosa e consideração das implicações [que são muitas…] para periferias como nós. o comentário é longo, cuidadoso; vá com calma, pra não perder nada.

Em relação ao post, há dois aspectos que eu gostaria de comentar. O primeiro comentário é relativo à questão da privacidade no mundo digital. O pensador Larry Lessig advertiu há alguns anos: em informática, o código é a lei. Em outras palavras, o que pode e o que não pode ser feito é ditado pelas possibilidades ou impossibilidades da computação. Até o momento, a computação tem apenas uma solução para a privacidade, que é a criptografia. Você criptografa toda a sua comunicação digital? Provavelmente não. Nem eu. Não é prático fazer isso.

Eu não posso acessar seu email e vice versa. Essa impossibilidade mútua cria a ilusão de privacidade. Mas os administradores de sistemas podem tudo. Se o superusuário de um sistema (root) pode acessar tudo, então não há privacidade. Ou você confia no root? Eu já vi um root entrar na minha conta com a intimidade de quem entra em sua própria casa. Não podemos esquecer que aplicações de software locais ou remotas usam o espaço em disco (HD) do seu computador, que é de sua propriedade, como se fosse delas. Elas nos espionam usando nossos próprios recursos!

Assim, não é a constituição federal que vai garantir a privacidade e sim o código. A privacidade nos sistemas digitais só será realidade quando for implementada em software. É ingenuidade pensar que haverá privacidade ordenada por lei. Os fluxos computacionais são em volume gigantesco. É muito difícil controlar legalmente o que ocorre na rede. O que pode ser feito em termos computacionais será feito. Precisamos garantir a privacidade via software.

Meu segundo comentário é acerca da propriedade da informação. Como pode ser visto nos comentários do post, muitas pessoas não ligam para o fato de serem espionadas, algumas brincam com esse fato e outras até acham correto. Parece que há um sentimento geral de que elas não tem nada a esconder, nada de interessante a compartilhar. Portanto, podem espiar à vontade. A justificação do terrorismo para a espionagem é de certa maneira inquestionável principalmente porque não há saída, não há opção de ação a não ser espionar a rede. Podemos concordar que as pessoas individualmente não são interessantes (exceto os procurados terroristas) mas não há como negar que o que interessa são as ideias, a informação compartilhada, o agregado dinâmico e fluido das ansiedades e da sabedoria mundial que circula na rede. O conhecimento agregado do mundo todo tem grande valor.

É aí que entra a questão da propriedade dos fluxos e da informação. Quem é dono da informação que circula na rede? O geógrafo brasileiro Milton Santos propôs uma teoria que merece reflexão profunda. Ele diz que a posse efetiva de um espaço é de quem o opera e não de quem o possui formalmente. Segundo o pensador [veja este link], o domínio sobre um território aumenta à medida que empresas e governos operam, gerenciam e provêem a infraestrutura necessária aos fluxos que trafegam nesse território, sejam esses fluxos de pessoas, de bens ou de informação.

Podemos levar esse raciocínio para as redes. Quem opera os serviços digitais? Quem são os donos dos cabos? Onde estão localizados e de quem são os servidores que armazenam as informações? A que legislação estão sujeitos? É no mínimo surpreendente pensar que informações tão domésticas como número do telefone da farmácia da esquina, a receita de feijoada ou informações sobre o maracatu "a cabra alada" estão indexadas e armazenadas em território estrangeiro. As empresas digitais operam em nosso território e coletam nossa informação como se estivessem em seu próprio território. Além disso, nós, como nação, não temos a nossa própria informação. Dependemos dos estrangeiros. Então, quem possui quem? Em última análise, a Web brasileira não é nossa, pois está em grande parte armazenada fisicamente em servidores estrangeiros e indexada por máquinas de busca estrangeiras.

Por que a comunidade de computação não questiona? Possivelmente porque, mesmo sem saber, estão pensando nos termos da teoria da propriedade do professor Milton Santos. A informação não é de quem a produz e sim de quem opera e comanda seus fluxos, de quem a armazena em seus recursos físicos. Para sermos proprietários de nossa Web, teríamos de ter nossos próprios sistemas de armazenamento e nossa máquina de busca.

edward snowden fugiu justamente pra onde a preocupação de cristina foi levada a sério e onde google, faceBook, twitter e outros não arranham nem a superfície da rede [os equivalentes, na china, são baidu, renren e sina weibo]. os chineses, claro, não estão seguros em “seus” sites; o governo de lá  é famoso não só por vigiar todo mundo mas por ir bem à frente e censurar a expressão individual em rede, o que ainda não dá pra imaginar no –segundo snowden e muitos outros- estado policial digital em que os EUA parecem estar se tornando. quem sabe, em breve…

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