As coisas, seus Dados e as Mudanças na Indústria

Em 1776, no seu hoje histórico “Riqueza das Nações”, Adam Smith escreveu uma das leis fundamentais da evolução da economia e da sociedade. Segundo ele, em tradução livre, “a melhoria mais significativa na produtividade é efeito da divisão do trabalho”. Vista de outro ângulo, a introdução de novas tecnologias e ferramentas no ambiente de manufatura levou à mudança nos métodos e processos obedecidos pelos trabalhadores, que quase necessariamente tiveram que se especializar em uma ou poucas máquinas. Uma versão da “Lei de Smith”, de fato, é que “mudanças realmente radicais, nos negócios, nunca são apenas tecnológicas”. E Smith já percebia isso no princípio da Revolução Industrial, que começara a menos de duas décadas da publicação do seu clássico, e que iria mudar a produção -e a economia e sociedade- muito mais, nos cem anos seguintes à publicação, do que era o caso naqueles primeiros vinte.

Mais ou menos duzentos anos depois da “Riqueza”, outra revolução começou a afetar a economia e sociedade, a da informação e de sua base, a informática. A década de 70 viu os computadores chegarem nas empresas, em alguma escala, criando uma onda de inovação baseada em hardware; os sistemas de controle nas fábricas são da mesma época, criando a terceira revolução industrial, a de automação da produção (a segunda foi a das linhas de montagem). A década de 80 foi dos PCs, nas mesas das pessoas nas empresas e nas casas, e causou uma onda de inovação de -e em, e sobre- software. Nos anos 90, a internet se tornou comercial e inaugurou a era das redes, conectando instituições e estas às pessoas, mas não as pessoas entre si, o que veio a acontecer nos anos 2000 com os smartphones e a computação e comunicação móvel e pessoal. Nos anos 2010 começamos a ver as coisas, em todos os lugares, serem envolvidas por uma camada adicional de hardware e software, aliada a outra, de conectividade, que mudam o caráter de tudo o que nós, pessoas comuns, costumávamos identificar como produtos.

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Os produtos -de carros a camisas, de lâmpadas a turbinas- estão se tornando cada vez mais intensivos em serviços. Coisas, que costumavam ser passivas, estão passando a ter sensores, atuadores e capacidade computacional que não se imaginava há alguns anos e, no topo disso, começam a se conectar não só entre si, mas a tudo o que já estava na rede. Cinco décadas de inovação (hardware, software, redes, móvel, coisas) começam, agora, a funcionar juntas, na sociedade e na economia, com um grande potencial de impacto em tudo ao seu redor.

E um dos maiores impactos desta nova onda de inovação em informática, das coisas e sua internet, será sentida justamente na indústria. Primeiro -e de menor impacto relativo- porque os ambientes e sistemas de produção têm como base redes (ainda não estabelecidas em sua totalidade e intensidade) de coisas; quando tais ambientes e sistemas forem verdadeiras redes, de conexões, relacionamentos e interações entre coisas, o que costumamos chamar de fábrica se tornará um sistema -uma grande “coisa”- com suas interfaces e funcionalidades, programáveis, consumindo e gerando grandes volumes de dados sobre tudo o que faz.

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Em segundo lugar, as novas coisas que as “fábricas” fazem e farão, quando estiverem informatizadas -sim, estamos na era da informatização das coisas, dos objetos-, vão “falar”, e não só entre si e com seus donos (ou avatares deles, em aplicativos e sistemas de informação) mas, e talvez principalmente, com suas “fábricas”. Imagine as consequências: no primeiro caso, da mudança dentro das fábricas, é mais uma revolução industrial, mudando a forma e objetivo da fábrica em si até o que e como ela produz. No segundo, é a mudança na relação entre o sistema de produção e os objetos produzidos, que deixarão de ser apenas produtos -no sentido atual da palavra- para se tornarem fluxos de informação. Muitos fluxos, por sinal. Alguns deles com o que hoje costumamos chamar de fabricante.

Há quase dois séculos e meio, Smith sabia que não eram as tecnologias que tinham causado o maior impacto na primeira revolução industrial. Agora, já é possível imaginar que algo similar vai acontecer, mas numa outra dimensão. Se a primeira revolução industrial criou a fábrica, a quarta vai acabar com ela. Pelo menos no sentido literal de “estabelecimento onde se transforma matérias primas em produtos”, porque o fabricante terá que fazer muito mais do que isso e, como consequência, seu comportamento, agentes, concorrência e modelos de negócio vão mudar. Radicalmente.

Imagine um cenário (simples, em relação ao potencial das interações entre coisas e seus provedores) em que uma “fábrica” constrói, de forma integrada e a partir de múltiplos componentes e interações com sua rede de produção, um objeto qualquer. Ao despachar tal objeto para sua rede distribuição e comercialização, a “fábrica” haverá de manter um relacionamento permanente com o objeto de sua produção e certamente poderá, entre muitas outras ações, ligar e desligar a “coisa”, como parte de sua garantia e, por sinal, para o bem de seus usuários. Por outro lado, entre os dados que a tal coisa enviará à fábrica, haverá medidas de temperatura, por exemplo, em vários de seus pontos.

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Se o sistema de informação que “cuida” dessa coisa, lá no que se costumava chamar de fábrica, descobre que uma ou mais destas medidas (em conjunto com outros parâmetros) estão muito acima do normal (em relação a um grande conjunto de outras coisas do mesmo tipo) e que, quando tal ocorreu no passado, criou-se uma situação de risco (como um incêndio), o que ele -o sistema- deveria fazer? Entre as várias ações possíveis, a mais óbvia é desligar o produto. Se isso acontecer, recorrentemente, com uma porcentagem significativa de tais coisas… alarmes sistêmicos certamente darão conta de que há algo errado não com uma ou outra “coisa”, mas com toda aquela linha de produtos que, antes que algum acidente mais grave aconteça, deveria ser retirada do mercado. Nem que seja apenas para uma revisão.

Nós vimos isso acontecer com algum produto intensivo em eletrônica (há algum que não é, ou não deveria ser?) recentemente. De airbags a smartphones, entre muitos outros. Se já estivéssemos lá na internet das coisas, airbags -e seus sensores e atuadores, online- não funcionariam fora de suas especificações. Nem smartphones entrariam em combustão (não necessariamente espontânea). Porque, na internet das coisas, os produtos são integrados à produção, intensivos em serviços, e nunca saem, de verdade, da fábrica. Pelo menos é essa a tese.

Como engenheiro, pense: o que haveria de mudar, desde o projeto e produção (incluindo testes) de um objeto qualquer, até o fim de seu ciclo de vida e obrigatória reciclagem, para que a fábrica onde você trabalha pudesse ser competitiva num ambiente de internet das coisas, desde a produção integrada a toda a cadeia de valor até o produto integrado, para sempre, à fábrica? Não é apenas a mudança nos princípios e patamares tecnológicos de sua produção que vai lhe trazer para esse novo cenário, é muito mais uma mudança de modelo de negócio do que era uma fábrica e passará a ser uma rede que (produz, mas, principalmente) entende de e atende a produtos intensivos em serviços.

Por trás de produtos intensivos em serviços, em função dos fluxos de informação criados pelos e para os produtos, há grandes volumes de dados. Dependendo do produto e serviço associados, dados de alguma complexidade, e em tempo real. Ou quase. Dados de uma variedade, volume e velocidade que nenhuma fábrica viu antes, até porque esse não era, nunca foi, problema dela. A fábrica, agora e no futuro, interagindo com o cliente e usuário final, que tem seu serviço -e garantia- online. Pense em muitos milhões de produtos no mercado, cada um fazendo algumas medidas por minuto e querendo “falar” com você sobre elas. Dez mil valores por produto por dia não seria nada de anormal. Para cada milhão de produtos no mercado, dez bilhões de valores a tratar. Por dia.

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Haverá, nesse cenário, dois tipos de fábricas. O primeiro são os fabricantes puros, que usarão a internet das coisas apenas dentro das fábricas, pois que terão clientes (quem compra seu produto) mas não usuários (quem usa o produto, quem o tem e manipula no dia a dia). Estes competirão por preço, sobre qualidade e quantidade. Ninguém, no mundo real, saberá quem são. Por isso que serão, aliás, commodities, como as teles de hoje em dia.

Os segundos serão os provedores de serviço: talvez até fabriquem suas próprias lavadoras de roupa, mas isso não será fundamental. Seus produtos farão parte de uma rede que envolve desde fornecedores de partes e peças para sua montagem, quem os montou, fornecedores de insumos para que a roupa seja lavada, fabricantes das roupas, a distribuidora de energia… e, para cada “coisa”, uma grande variedade de possíveis contextos, com um sem número de agentes.

O problema, aqui, não será de engenharia de software ou de informação, o que é certamente complexo mas não complicado e muito menos impossível. O grande problema serão as mudanças de modelo de negócios. Quem descobrir para que, como, onde, quando e a que custo e preço criar valor, para o usuário final, em função de todos estes potenciais fluxos de dados, estará no futuro da internet das coisas. Parte dos outros será apenas fabricante. E todo o resto deixará de existir. Assim como na primeira revolução industrial. Como, aliás, não poderia deixar de ser, porque a Lei de Smith é universal. Só que aqui, agora, a Lei poderia ser reescrita assim: “o impacto mais significativo da internet das coisas será a transformação de produtos em serviços e sua consequência mais visível será o fim das fábricas”.

Se sua fábrica não tem, ou não está trabalhando em, uma proposta de valor para a transformação de seus produtos em serviços e se você ainda tem algum tempo de carreira, trate de mudar de emprego. Enquanto é tempo. Tipo ontem. E leve em conta que as fábricas, na e da internet das coisas, vão precisar de muito mais engenheiros. De software. Aprenda a programar. E boa sorte.

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.*.*.*.*.

Uma versão deste texto foi publicado na edição de novembro de 2016 da Revista Engenharia Brasil/Alemanha, que pode ser encontrada online neste link. A grafia da edição da revista foi mantida neste blog.

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