Este é o quarto de uma série de cinco posts sobre o assunto do título. O primeiro estabelece o contexto para esta conversa e está no link bit.ly/4F5P20L; o segundo trata da primeira fundação para os futuros figitais, a flexibilidade combinatória, e está em bit.ly/3rYYOzo; o terceiro trata de plataformas figitais, sem as quais não há ecossistemas figitais, e está no link bit.ly/3lMn1rN. O último post trata de transformação estratégica como uma fundação essencial para futuros figitais, no link… bit.ly/384K210..
Para entender este texto, sugiro fortemente a leitura dos textos anteriores, que dão o contexto para a discussão que se segue.
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Logo depois da chegada da internet comercial, Manuel Castells publicou a trilogia The Information Age: Economy, Society and Culture [há exatos 25 anos, em 1996, veja em bit.ly/2TQzeQz], onde dizia, logo no primeiro volume, que a sociedade em rede seria um espaço de fluxos, em seu próprio tempo [timeless time…] numa certa oposição a um espaço de lugares [legado], que também tinha seu tempo [clock time, o tempo legado]. Um quarto de século depois, se refrasearmos a tese de Castells para o espaço figital, que inclui o espaço de lugares físicos, digitais e sociais, e as conexões, relacionamentos e interações [físicas, digitais e sociais… também], é possível reescrever e unificar os fluxos de Castells como sendo…
…sequências de trocas e interações propositais, repetitivas e programáveis, realizadas por agentes [independentes] em rede [pessoas, organizações, coisas… aplicações] situados em posições [potencialmente] disjuntas, sobre as estruturas econômicas, políticas e simbólicas do espaço figital, em tempo quase real.
Não por acaso, as plataformas figitais [nesta série, veja bit.ly/3lMn1rN] são parte das estruturas simbólicas, econômicas e políticas da sociedade. Ainda mais, quando levamos em conta que o futuro [o presente!…] figital engloba as dimensões física, digital e social…
…todas as organizações são fluxos, governados por algoritmos, executados sobre plataformas figitais em rede, formadoras e partícipes de ecossistemas figitais. E a competição entre negócios se dá entre fluxos, e sua efetividade e sustentabilidade dependem de efeitos de rede.
O tempo quase real, acima, nem é o tempo –que não passa– dos fluxos de Castells, nem um que passa –mas não vem de e não vai a lugar nenhum– de Bauman [veja Zygmunt Bauman on Time…, de Elżbieta Tarkowska, em bit.ly/3CyxCfJ]. O tempo das experiências fluidas é um tempo que vem do futuro e passa, condicionado pelas conexões, relacionamentos e interações entre as pessoas e delas com outros agentes no espaço figital.
Se um agente está sendo levado por um fluxo homogêneo e sua percepção é de que tudo ao redor está parado… a ele parecerá que nem o tempo passa nem está indo a lugar algum. Mas nosso agente inconsciente está sendo levado por um fluxo causado por outro[s] agente[s] e, soubesse o que está acontecendo, estaria muito preocupado.
Quando um agente cria um fluxo, produz seu próprio espaço-tempo no mundo figital. Cada fluxo pode causar mudanças nos arranjos internos de um ou mais conjuntos de agentes e, claro, ser um ecossistema ele próprio e alterar os arranjos entre conjuntos de agentes. Grandes negócios são ecossistemas per se. Se você pensar bem, pequenos, também. E pessoas. Na vida real, mesmo um fluxo visto como homogêneo -de longe- é quase sempre uma combinação mutuamente interferente de muitos fluxos, causados por conjuntos de agentes cuja interseção não é necessariamente vazia.
O tempo das experiências é o tempo das pessoas, dos negócios, o tempo pragmático. E flui do futuro para o passado, passando por um presente que pode ser tratado como uma máquina que consome -numa certa ordem- um cone virtual de possíveis eventos que vêm do futuro. A capacidade do presente é finita, do ponto de vista de processamento de eventos, o que significa que não há como muitos possíveis futuros acontecerem como um todo, ao mesmo tempo, de repente.
O futuro é de possibilidades. Quando um evento do futuro é consumido pelo presente ele se torna realidade -enquanto é consumido- e, imediatamente após, se torna realização, história, e fará parte do passado. A máquina do presente, qual o rotor da imagem, cria e altera o tempo, afetando o agora e os futuros imediatos, e até passados distantes…
Tudo flui, e tudo flui turbulentamente, e às vezes rapidamente, mesmo quando parece calmo e estável. É só chegar mais perto, observar em mais detalhe. Aí, todo e qualquer agente verá o tempo passando e estará indo a algum lugar, mesmo que não queira, e ainda que não note. A realidade ignora, quase sempre e solenemente, a percepção de quem quer que seja. Mas é possível desenhar pelo menos parte dos fluxos dos quais queremos participar e, sim, não é impossível desenhar fluxos que levam à participação de muitos outros agentes em experiências das quais nós também participamos como agentes de primeira classe. E isso está relacionado às experiências que podemos criar.
Desenhar experiências passou a ser um papel fundamental dos [novos] negócios figitais e das organizações em transformação. E não se trata de “descobrir” e|ou redesenhar uma certa jornada do usuário que existe agora. Porque é muito provável que o comportamento atual de seus clientes não seja o que eles desejam para o futuro, nem que você resolva todas as “dores” do que se poderia entender como a jornada atual.
A experiência que queremos criar para tornar um negócio sustentável está sempre vindo do futuro, e são os cenários e personas que desenharmos para trazer tais futuros para o presente que irão possibilitar a descoberta das oportunidades de conceber experiências que encantam, engajam, se transformam em cultura da rede e do ecossistema. E estão sempre evoluindo, como todos nós. Experiências dos, nos, com os e para os fluxos. Experiências fluidas.
A noção de experiência não está relacionada apenas à usabilidade [no sentido de user experience], mas a aspectos [socio]cognitivos da experiência das pessoas em suas relações com o contexto, eventualmente mediada por artefatos que precisam ser usados para a realização de alguma ação. Para pensar muito além dos limites… imagine criar, do zero, experiências para quem não pudesse usar nenhuma ferramenta do espaço físico, a não ser cérebros-como-plataformas. Foi isso mesmo que você leu. Em caso de dúvida, volte e leia sobre as lógicas das plataformas figitais e os princípios que servem de base para todas as fundações. Será que, entre as experiências que se poderia desenhar, neste cenário, estaria aprender mandarim com um amigo que sabe, por intermédio de downloads-seletivos-de-consciência?
Não estamos falando de desenhar interfaces para as pessoas terem a experiência de usá-las para atingir algum objetivo, mas de experiência como um fenômeno que emerge de um complexo de percepções, ações, motivação e cognição em um todo que está imerso, é afetado por e afeta os fluxos no espaço figital.
Muito se diz e faz sobre as facetas digital e social das experiências das pessoas com as instituições, a ponto de se desprezar ou mesmo descartar a dimensão física do espaço figital e, na mesma viagem, tudo o que acontece ou poderia acontecer lá. Isso era -ou parecia que funcionava- quando omnicanalidade queria dizer que o negócio se comportava mais ou menos da mesma forma [e não necessariamente como parte do mesmo fluxo…] nas dimensões física, digital e social mas… uma coisa quase nunca tinha nada a ver com a outra. Ainda é quase sempre assim em quase todo canto. E o problema do futuro -ou do presente, já- é desenhar experiências figitais, fluidas.
Uma experiência fluida envolve de desejo e prazer a estética e novos modelos mentais, necessários para realizar algo ou causados pela sua realização. Como se isso fosse pouco, uma experiência fluida deve ser tratada como um episódio, um pedaço de tempo em que se vive[u], visões e sons, sentimentos e pensamentos, motivos e ações entrelaçados, armazenados na memória, rotulados, revividos e comunicados a outros. Uma experiência fluida é uma história, emergindo do diálogo de pessoas com o mundo por meio ds ações.
Aqui cabe uma reflexão sobre a gigantesca diferença entre pessoas e usuários [ou clientes]. Pessoas não podem ser reduzidas a meras facetas de seus comportamentos. Empresas não têm clientes, nem usuários. Mas há pessoas cujos comportamentos, num dado espaço-tempo, levam a transações do tipo cliente-fornecedor com “nossa” empresa. E cada um de nós deveria usar o Princípio de Copérnico [veja o link… bit.ly/3iPbchk] para assumir que “nosso” negócio não é especial: a vasta maioria das mudanças de comportamento das “pessoas como clientes” começa a acontecer nas interações que elas realizam com outros negócios… que nada têm a ver com o “nosso”.
Não é comum pensar que o desenho de experiências seja um tipo de filosofia para o desenho e operação de um negócio qualquer, mas é. Basta você pensar uma vez sobre o assunto. Para desenhar experiências nas bordas, com as pessoas, e para influir no comportamento delas, dentro e fora do negócio… não é uma arquitetura centralizada, de pirâmide de poder, que vai dar conta da tarefa. E, claro, não é só ter uma filosofia para tal; é ter estratégia, transformada em cultura, arquitetura, organização e operações que vão agir assim. Experiências fluidas exigem organizações em rede, e fluidas, também.
Um dos maiores problemas a tratar nas relações entre nosso negócio e as pessoas externas a ele é como usar dados e algoritmos para combinar produtos com serviços e experiências, para substituir venda e entrega por resultados para as pessoas [como clientes]. Já seria complicado o suficiente se não houvesse experiência na equação. Mas há. É por isso que o [re]desenho do negócio para futuros figitais exige experiências fluidas, figitais, que são, exatamente, nossa terceira fundação.
- A conectividade e diversidade de uma rede são as bases para o potencial de complexidade, sofisticação e impacto das experiências fluidas que podem ser desenhadas nela. Um objetivo do desenho de experiências fluidas ab initio é criar redes diversas e conectadas o suficiente para habilitar a complexidade, sofisticação e impacto potencial das experiências.
Todo fragmento do espaço figital que abriga um volume de agentes minimamente interessante é suficientemente conectado e diverso para habilitar experiências fluidas de alta complexidade, sofisticação e impacto.
- Experiências fluidas se dão em fluxos no espaço figital e seu entendimento, desenho e evolução deve levar em conta a turbulência de todos os tipos de fluxos, em especial em situações de aceleração ou interação entre fluxos.
A dinâmica dos fluxos deve guiar a dinâmica das experiências; quase todos os fluxos de interesse, no espaço figital, são turbulentos. O desenho e evolução de experiências, em tal contexto de incerteza, exige elaboração e experimentação contínua de hipóteses sobre o comportamento atual e futuro dos fluxos.
- A natureza das experiências fluidas é imprevisível e impermanente. Em que pese os poderes de rede dos agentes que habilitam ecossistemas figitais, a desintegração das instituições, a diversidade de agentes, a multitude de conexões, relacionamentos e interações na rede e a programabilidade do espaço figital demandam uma permanente reavaliação do conhecimento sobre o ecossistema, baseado na incerteza como norma.
O que parece caótico e aleatório nos fluxos figitais às vezes pode ser explicado -mesmo quando não previsto nem controlado- usando regras e padrões, cuja descoberta, para o desenho de experiências fluidas, depende de um esforço de contínuo de aprendizado realizador, da criação de hipóteses e das tentativas de validá-las, em tempo e contexto quase real, no espaço figital.
- Experiências fluidas devem ser desenhadas a partir um conjunto minimalista de padrões. A natureza turbulenta e imprevisível dos fluxos figitais quase sempre impede quem os provoca de exercer um papel efetivo de coordenação e|ou controle. O melhor caso é desejar que um desenho minimalista provoque uma auto-organização de|em fluxos de experiências que demande o menor esforço possível de todos os agentes participantes.
A flexibilidade combinatória obtida pela desintegração e reintegração das organizações, associada aos relacionamentos e interações possibilitados por protocolos abertos deve passar por um processo permanente de simplificação, para reduzir o esforço cognitivo, de desenvolvimento e operacional de quem provê e participa das experiências fluidas criadas pela organização.
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Toda experiência verdadeiramente fluida é criada de forma incremental e iterativa, o que demanda organizações capazes de aprender continuamente, de forma distribuída, em todo ponto de contato e relacionamento onde seja necessário entender e atender pessoas.
As competências e habilidades das organizações que aprendem e são capazes de criar experiências fluidas estão principalmente nas bordas, onde as pessoas de dentro se encontram com as [aspirações, demandas, problemas… das] pessoas de fora -mas perto- da organização.
Quando as competências e habilidades para criar e manter experiências fluidas se deslocam para as bordas e se tornam um fator essencial da criação, entrega e captura de valor em um negócio, as decisões começam a -e devem ser- tomadas pela rede social das bordas da organização, que necessariamente inclui pessoas dentro e fora do negócio. Na medida em que tal evolução se dá, uma de duas coisas acontece: ou a burocracia dos mínimos detalhes do negócio começa a se tornar supérflua, descobre que tem outros papéis e distribui o poder para a rede… ou, ao descobrir que está se tornando supérflua, reage -se conseguir, mata as bordas e, com elas, a organização como um todo, no curto ou médio prazos. Acontece.
É por isso que a combinação das fundações discutidas até agora… flexibilidade combinatória, plataformas figitais e experiências fluidas só acontece de fato em organizações que passam por uma transformação estratégica, que é exatamente nossa quarta e última fundação, no link… bit.ly/384K210.