este é o terceiro post de uma série sobre a pergunta-título do acontece educação, evento do C.E.S.A.R e instituto singularidades, em são paulo. eu fui um dos responsáveis, junto com muita gente boa, pelas provocações por lá. e o evento, sabiamente, não permitiu apresentações visuais. mas eu tomei umas notas pra guiar minha fala, e é a partir delas que este texto foi escrito. eu anotei dez pontos, abordados em sequência, numa intervenção de vinte minutos. a primeira parte está neste link, a segunda neste; vá ler antes de entrar nesta aqui, senão é bem capaz de nada –aqui- fazer sentido.
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um sistema, a gente já sabe, é um conjunto de princípios, associados a um conjunto de instituições que os fazem valer para –se possível- todos os agentes que dele fazem parte. essa é a teoria, a abstração. na prática, vão surgir organizações responsáveis pela operação do sistema. e estas organizações serão mais ou menos efetivas, do ponto de vista de adesão aos princípios do sistema, e mais ou menos eficientes na entrega das soluções exigidas para que o sistema funcione a contento. desnecessário dizer que algumas organizações tentarão –com sucesso, por sinal- sequestrar partes inteiras do sistema para si e seus próprios objetivos, criando aberrações institucionais, custos indevidos, empecilhos desnecessários… consumindo sua energia para fins particulares e pondo em risco a sobrevivência do todo. qualquer semelhança com certos tipos de doenças dos seres humanos não é mera coincidência. procure os exemplos ao seu redor, dentro e fora do aparelho de estado.
organismos que sobrevivem à instalação e crescimento, em seu meio, de ameaças potencialmente fatais são os que conseguem detectar as ameaças e tomar providências, a tempo, para se livrar delas com sucesso. são organismos que evoluem. são os sistemas inovadores. também são sistemas inovadores, e mais ainda se houver uma comparação com os primeiros, aqueles que se antecipam às mudanças ao seu redor e mudam suas características para causar as –e não apenas se adaptar às- mudanças no meio, no seu ambiente.
sem muito medo de errar, e sem apontar o dedo para nenhum víés político ou partidário nacional, o status quo da educação brasileira serve à manutenção de um sistema de dominação como muito poucos no mundo. como imaginar, num espaço onde o analfabetismo funcional dos universitários é 38%, que o sistema educacional esteja preparando brasileiros para entender os problemas nacionais, discutir suas potenciais soluções e escolher os mediadores destas entre os candidatos à sua disposição?…
quando se observa o país como um todo, pela ótica da educação e dos resultados do sistema educacional, não se pode ignorar que o descaso da pequena política, das pequenas cidades e grandes periferias, pela educação e sua qualidade, tem todos os sinais de um desenho, um projeto. não é só por falta de recursos que a educação pública brasileira é o que é; o sistema educacional do país, tanto do ponto de vista de seus princípios como de suas instituições, está muito longe do que deveria ser. sabendo disso, como explicar que mais de 80% de nossos estudantes [oitavo lugar, a partir do último, no ranking PISA] estão felizes na escola, contra 60% dos coreanos [quarto lugar no ranking PISA, a partir do topo]? e se o aumento da performance do sistema, talvez pela via de múltiplas ações de inovação, diminuir a felicidade dos estudantes?…
o sétimo ponto da nossa conversa, representado pela nota acima, tem o É, de é possivel, na pergunta, em verde e vermelho. simultaneamente. isso é para indicar que é possível criar sistemas inovadores… e ao mesmo tempo por em dúvida tal possibilidade. e o que pode botar tudo a perder são os pontos de partida e como eles são usados para chegar onde se quer. vamos dizer mais uma vez que sistemas são princípios e as instituições que os põem em prática. príncípios não são as mesmas coisas que regras, ou leis, mas as bases sobre as quais um sistema se assenta e funciona. o começo… como em In principio erat Verbum… ou fundações, como no alemão grundlagen. pra se ter uma ideia de princípios, fundamentais, de um sistema, a constituição da suécia só tem quatro princípios [grundlagar]. para alterá-los, o parlamento tem que aprovar a mudança duas vezes, com uma eleição geral entre as duas votações. quer dizer, dois parlamentos potencialmente diferentes têm que decidir pela mudança. compare com uma PEC daqui, aprovada no afogadilho…
no brasil a gente não costuma fazer muita diferença entre princípios e regras de um sistema, o que nos leva a tratar princípios como regras e vice-versa, levando a uma balbúrdia sem igual quando se tenta discutir mudanças em qualquer dos sistemas fundamentais do país, como o educacional. mas e se a gente fosse, de fato, criar um sistema educacional inovador, é possivel fazer isso? aqui? a resposta curta é sim. e o problema é… como. e a resposta para o como não está nas minhas notas no acontece, mas em uma ideia e método desenvolvido por otto scharmer, e sistematizado na forma da teoria U.
a teoria de scharmer serve para articular possibilidades de mudança através de processos emergentes e tenta fazer isso transformando três pontos de vista destrutivos [que sempre tendemos a ter quando o assunto é mudança…]: primeiro, dúvida e julgamento, que travam a mente; segundo, o cinismo, que fecha o coração, terceiro, o medo, que fecha, ou domina, a vontade [e a coragem]. não é todo mundo que lê scharmer e sai do outro lado achando que valeu a pena; mas eu sugiro que você leia este resumo do livro que explica a teoria, e você talvez se convença de que vale a pena um estudo mais profundo. não acho que scharmer inventou nada disso mas, ao invés, descobriu uma boa formulação para um conjunto de coisas que quase todo mundo que se envolve em processos e caminhos de inovação já faz, de uma forma ou de outra.
a pergunta de partida, para scharmer, é: como injetar energia em sistemas que estão morrendo?… a imagem de resposta, mostrada abaixo e discutida logo depois, resume a teoria.
comece a ler ali em downloading; suspending, logo abaixo, é um sinal de que você deve parar de seguir o passado e começar a ver o mundo com uma vista desimpedida, sem filtros, sem mediação do passado; quando todo o seu tempo é gasto em fazer e processar downloads, que tempo sobra para tentar algo novo, ou mesmo para ver algo novo que alguém está tentando fazer?… este passo é o que deveria abrir sua mente para o novo, e é o começo de todo o processo de mudança, que continua com…
…redirecting, que vai lhe levar a sentir [sensing] o que está acontecendo no seu campo de interesse, é o que vai abrir seu coração e lhe fazer abandonar [letting go] preconceitos e medos, se desapegar de conquistas que parecem grandes e importantes, mas que são irrelevantes… e lhe preparar para uma conexão direta com o que você [e seu time, e todo mundo] deveriam estar fazendo ali, transformando sua vontade. afinal de contas, qual seu papel, qual seu trabalho, o que é que vocês todos deveriam [tentar] fazer?…
aí se chega no fundo do U, e do poço, e se passa por ele: presencing é o ato de fazer com que o futuro [desejado] comece a se encantar no presente, conectando as redes e energias que vão começar a criar o caminho [letting come] para que comecem a se concretizar as intenções e visões de mudança, que só acontecerão ao redor da articulação de mentes [ideias e planos], corações [energia e engajamento] e ações [trabalho, duro…], primeiro como protótipos que devem ser testados e avaliados no mundo real e, depois, como performances no e do todo. ou de pelo menos uma parte suficientemente sustentável do todo em consideração.
se você achou que isso é uma conversa meio “viajada”, saiba que eu também acho; a maior parte das pessoas que “conversa” nestes termos não tem capacidade de “operar” nestes [ou quaisquer outros termos] e esse tipo de discurso holístico serve, em um número de casos, para chamar atenção para um todo supostamente muito mais complexo e deixar, por causa disso, as reais ações de mudança “pra lá” [já que não haveria competência para tratar o tal “todo”]. mas não precisa ser assim. as bases apontadas por scharmer, na teoria, são uma forma eficaz de ver o mundo a ser mudado e a mudança do e no mundo, qualquer mundo. muitas organizações de grande porte têm usado ideias e métodos similares, com bons resultados, especialmente quando milhares [talvez dezenas ou centenas de milhares, no caso de educação] de pessoas estão ou estarão envolvidas no processo. se você pensou que era só “viagem”… volte e leia com calma…
resumindo: é possível criar sistemas inovadores? sim, é. o processo de scharmer, contínuo, quando se conecta performing com downloading, formando um ciclo, deveria fazer exatamente isso, ao evitar que a próxima performance leve a uma nova stasis e o sistema, como um todo ou em parte, comece a morrer [de novo].
o detalhe essencial da imagem acima é que, para que a renovação sistêmica seja verdadeiramente estratégica [e não pontual, ou ocasional, ou periférica], as pessoas no centro do processo têm que mudar, e mudar de verdade, dramaticamente. sem que elas, antes que todas as outras, mudem e tratem de fazer de sua mudança a energia da mudança do sistema, nada mudará. e pessoas “no centro do processo” não quer dizer pessoas no topo da hierarquia, como sabemos muito bem. o topo tem que se comprometer com a mudança mas, muitas vezes, não é ele que faz a mudança, é quem deixa mudar. o que, em muitos casos, já é muito, quase tudo, como se pode imaginar.
no próximo post, uma tentativa de explicar quase a mesma coisa nos termos do desenho/nota que fiz no acontece, explorando a tese de que sociedades [que sobrevivem] são sistemas inovadores. até lá.
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[este é o terceiro de uma série de quatro textos sobre inovação em educação; links pra todos? primeiro, segundo, terceiro e quarto. é só clicar.]